• Nenhum resultado encontrado

Conforme estudado anteriormente, no controle difuso, a arguição de inconstitucionalidade se dá de modo incidental, constituindo questão prejudicial182. Isso quer dizer que a análise de inconstitucionalidade é necessária ao deslinde do feito, mas não constitui objeto principal da ação183.

Desse modo, se na via concentrada-abstrata a declaração de inconstitucionalidade compõe a própria parte dispositiva da decisão, no controle difuso representa apenas a razão de decidir (ratio dicidendi) e, portanto, não obtém autoridade de coisa julgada184 nem se projeta, mesmo que inter partes, para fora do processo na qual foi proferida185.

Paulo Roberto de Figueiredo Dantas conclui que, pela doutrina clássica, o dispositivo faz coisa julgada apenas entre as partes litigantes (limites subjetivos da lide) e a questão prejudicial de constitucionalidade, ainda que importante para determinar a conclusão da lide, não faz coisa julgada material (limite objetivo da lide). A consequência disso seria a possibilidade de a questão de constitucionalidade ser novamente apreciada em outros processos, até mesmo entre as mesmas partes, quando não coincidente o mérito186.

É perceptível, contudo, o esforço doutrinário e jurisprudencial para afastar essa antiga concepção. Defende-se a técnica do transbordamento dos motivos determinantes no controle difuso de constitucionalidade exercido pelo Supremo Tribunal Federal – guardião máximo da constituição –, a fim de atribuir efeitos vinculantes à declaração de inconstitucionalidade dada pela via incidental, como ocorre no controle concentrado. Fala-se, portanto, em abstrativização do controle difuso187.

181 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 282. 182 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 255. 183MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2012. p. 747.

184 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição da doutrina e

análise crítica da jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 223-224.

185 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 256. 186 DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito processual constitucional. 4. ed. rev. e ampliada. São

Paulo: Atlas, 2013.

187LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 256-

Ressalta-se que, em tese, a parte a quem aproveita a declaração de inconstitucionalidade não tem interesse subjetivo na defesa da integridade do ordenamento constitucional, em si considerado. O seu único interesse é a obtenção do bem da vida que disputa com a parte contrária. A apreciação da questão acerca da constitucionalidade de uma norma constituiria apenas um meio para alcançar o objetivo principal188. Todavia, é certo que o controle de constitucionalidade não surgiu para satisfazer com exclusividade os interesses das partes, senão notadamente para resguardar o ordenamento constitucional, configurando-se como “garantia de supremacia dos direitos e garantias fundamentais”189.

A respeito do recurso extraordinário, principal representante do sistema difuso, Gilmar Mendes ponderou, no Processo administrativo nº 318.715, publicado em 17/12/2003, que deixa de ter caráter marcadamente subjetivo para assumir, de forma decisiva, a função de defesa da ordem constitucional objetiva. O processo entre as partes deve ser visto apenas como pressuposto para uma atividade jurisdicional que transcende os interesses subjetivos190.

A máxima abstrativização do sistema difuso – que seria a atribuição de efeitos erga omnes à declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal aos demais órgãos –, realizada com base na teoria da transcendência dos motivos determinantes da decisão, é alvo de muitos debates e é o que se tenta responder com o presente estudo. Porém, inúmeras situações, já amplamente aceitas no ordenamento jurídico pátrio, sinalizam uma revisão conceitual do controle difuso, aproximando seus efeitos aos atinentes à declaração de inconstitucionalidade no controle concentrado.

Nesse contexto, serão estudadas agora tais circunstâncias.

5.2.1 Dispensa da cláusula de reserva de plenário

Já foi estudado no item 4.3 que, nos Tribunais, existe procedimento específico para o reconhecimento da incompatibilidade de uma lei, conhecido como incidente de

188 MENDES, Leonardo Castanho. O recurso especial: e o controle difuso de constitucionalidade. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2006. p. 30.

189 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 28. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2012. p. 733-734. 190 BRASIL, 2003 apud DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil:

meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. v. 3. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 361.

inconstitucionalidade, que foi consagrado pelo art. 97 da CRFB e regulado pelos arts. 480 a 482 do Código de Processo Civil 191.

Assim, quando a inconstitucionalidade for arguida perante tribunal no controle difuso de constitucionalidade – matéria prejudicial, portanto –, os magistrados da turma ou câmara, competentes para a apreciação, deverão submeter a questão ao Plenário ou Órgão Especial caso decidam pela inconstitucionalidade da norma192.

No entanto, Pedro Lenza esclarece que, com o objetivo de enaltecer o princípio da economia processual e da segurança jurídica e na busca da desejada racionalização orgânica da instituição judiciária brasileira, percebe-se inclinação para a dispensa do procedimento enunciado na cláusula de reserva de plenário quando o órgão especial ou pleno do tribunal, ou pleno do Supremo Tribunal Federal já tiver se manifestado sobre a matéria193.

Esse foi exatamente o entendimento da 1ª turma do Supremo Tribunal Federal, em decisão proferida no Recurso Extraordinário nº 190.728. O relator, Ministro Marco Aurélio, afirmou que, na existência de prévio pronunciamento daquela Corte, o julgamento de plano pelo órgão fracionado homenagearia não só a racionalidade, como também implicaria interpretação teleológica do art. 97 em comento, evitando a burocratização dos atos judiciais no que nefasta ao princípio da economia e da celeridade194.

Essa tendência foi consagrada pelo parágrafo único do art. 481 do Código de Processo Civil, incluído pela Lei nº 9.756/98:

Art. 481. Se a alegação for rejeitada, prosseguirá o julgamento; se for acolhida, será lavrado o acórdão, a fim de ser submetida a questão ao tribunal pleno.

Parágrafo único. Os órgãos fracionários dos tribunais não submeterão ao plenário, ou ao órgão especial, a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamento destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão (grifou-se)195.

Nota-se que esse dispositivo autoriza que a questão incidental de inconstitucionalidade apreciada em outras ações – cuja decisão, pela regra do art. 469, I, do CPC, não faz coisa julgada – surta efeitos para fora daqueles processos, desobrigando o órgão

191 DANTAS, Paulo Roberto de Figueiredo. Direito processual constitucional. 4. ed. rev. e ampliada. São

Paulo: Atlas, 2013. p. 204-205.

192 LEAL, Saul Tourinho. Controle de constitucionalidade moderno. 2. ed. Niterói: Impetus, 2012. p. 175. 193 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 250-

251.

194 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE n. 190.728, SC. Relator: Min. Marco Aurélio, 26 de junho de 1995.

Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=1613511>. Acesso em: 27 maio. 2014.

195 BRASIL. Planalto. Lei n. 5.869/73. Disponível em:

fracionário de observar a cláusula de reserva de plenário. Logo, os motivos determinantes de outras decisões transcendem e deixam de possuir efeitos apenas inter partes para permitir que a inconstitucionalidade seja reconhecida de plano196.

Segundo Gilmar Mendes:

Esse entendimento marca a evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, que passa a equiparar, praticamente, os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto. A decisão do Supremo Tribunal Federal, tal como colocada, antecipa o efeito vinculante de seus julgados em matéria de controle de constitucionalidade incidental, permitindo que o órgão fracionário se desvincule do dever de observância da decisão do Pleno ou do Órgão Especial do Tribunal a que se encontra vinculado. Decide-se autonomamente, com fundamento na declaração de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade) do Supremo Tribunal Federal, proferida incidenter tantum197.

Araken de Assis sustenta que representaria flagrante despropósito submeter questão resolvida pelo Supremo ao pleno ou órgão especial. Acrescenta, ainda, que manifestação contrária do tribunal inferior atentaria contra a autoridade da Corte Máxima198.

Assim, a dispensa da obrigação de observância da cláusula de reserva de plenário é claramente resultado da abstrativização do controle difuso e da aplicação da teoria da transcendência nos motivos determinantes da decisão.

5.2.2 Adoção da súmula vinculante

O art. 103-A da CRFB, introduzido pela EC nº 45/2004, determina que o Supremo Tribunal Federal pode, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta199.

Tendo em vista a realidade dos litígios em massa e as enormes divergências jurisprudenciais, passou-se a exigir a racionalização e simplificação do processo decisório. A

196 DIDIER JR, Fredie, BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: teoria da

prova, direito probatório, teoria do precedente, decisão judicial, coisa julgada e antecipação dos efeitos da tutela. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 360-361.

197 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito constitucional. 8. ed.

rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1093.

198 ASSIS, Araken. Manual dos recursos. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 766. 199 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado

súmula vinculante permite, assim, a celeridade e eficiência da administração da justiça, bem como a redução dos recursos que chegam ao Supremo Tribunal Federal200.

A adoção do enunciado em situação que envolva a declaração de inconstitucionalidade, afirma Gilmar Mendes, acabará por dotar de efeito vinculante os fundamentos da decisão. É inequívoca, portanto, a eficácia geral que se quis atribuir às decisões do Supremo. Como consequência, fica enfraquecido o já debilitado instituto da suspensão da execução pelo Senado Federal (art.52, X, da CRFB), uma vez que é possível aferir a inconstitucionalidade de norma em sede de controle difuso sem nenhuma interferência desse órgão201.

Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha corroboram esse entendimento ao afirmarem que a criação da súmula vinculante é manifestação do fenômeno de abstrativização do controle difuso202.

5.2.3 Possibilidade de Amicus Curiae e a repercussão geral

A mitigação da natureza essencialmente subjetiva do controle difuso pode ser percebida também pelo implante da possibilidade de intervenção de amicus curiae no recurso extraordinário, prevista no art. 482 e parágrafos, à semelhança do que já ocorre na ação direta de inconstitucionalidade203.

Afirma-se que, diante dos múltiplos aspectos que envolvem a própria argumentação relacionada com os fundamentos da inconstitucionalidade, é razoável que se reconheça a participação de todos aqueles que possuam demandas semelhantes no primeiro grau, assim como do Ministério Público e de outros órgãos interessados. Essa opção legislativa demonstra a aceitação de um processo de controle incidental aberto e plural, aproximando-o dos processos de natureza puramente objetiva, como as ações diretas de inconstitucionalidade204.

200 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição da doutrina e

análise crítica da jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 103.

201 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito constitucional. 8. ed.

rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1101.

202 DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de

impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. v. 3. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 360-363.

203 DIDIER JR, Fredie. CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de direito processual civil: meios de

impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. v. 3. 10. ed. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 361.

204 MENDES, Gilmar Ferreira. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de direito constitucional. 8. ed.

Além disso, a EC n° 45/2004 acrescentou ao art. 102 da CRFB o § 3º, impondo à parte, quando da interposição de recurso extraordinário, demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, a qual deve ser entendida como a existência de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa, nos termos no art. 543-A, § 1º, do Código de Processo Civil205.

O incidente para a apuração de repercussão geral por amostragem é um procedimento de caráter objetivo, semelhante ao procedimento da ADI, ADC e ADPF, e de profundo interesse público, pois se trata de uma questão que diz respeito a um número indeterminado de pessoas. Assim, fica demonstrado, mais uma vez, o fenômeno de objetivização do controle difuso de constitucionalidade das leis206.