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Kildare Gonçalves Carvalho explica que o controle difuso permite “[...] a qualquer juiz (ainda que não vitaliciado) ou tribunal o reconhecimento de inconstitucionalidade de uma norma e, por via de consequência, a sua desaplicação ao caso concreto. Por isso mesmo é que todos os órgãos judiciários têm o poder-dever de não aplicar as leis inconstitucionais levadas a seu julgamento”104.

O referido instituto se inspirou no modelo norte-americano, consolidado naquele país com o julgamento do caso Marbury v. Madison, em 1803, no qual a Suprema Corte, com a argumentação desenvolvida pelo juiz (Chief Justice) John Marshall, concluiu que é nula qualquer lei incompatível com a Constituição, e os tribunais, bem como os demais departamentos, são vinculados por esse instrumento105.

O episódio histórico que deu origem ao julgamento foi a derrota de John Adams, então presidente dos EUA, por Thomas Jefferson nas eleições presidenciais. Adams resolveu, antes de ser sucedido por Jefferson, nomear diversas pessoas ligadas ao seu governo como juízes federais, destacando-se, dentre eles, William Marbury106.

Ocorre que “os atos de nomeação desses cidadãos foram realizados às pressas”, ou seja, “entre a eleição e a data da posse de Jefferson, Presidente eleito. Não houve por isso mesmo, tempo para que muitos dos nomeados fossem notificados da nomeação”107.

104 CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 20. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2013. p. 434.

105 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 247-

248.

106 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 247. 107 CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 20. ed. Belo

Jefferson, ao assumir o governo, nomeou James Madison como seu Secretário de Estado e, por entender que a nomeação de Marbury estava incompleta, determinou que Madison não lhe entregasse o título da comissão, o que o impossibilitou de tomar posse108.

Marbury ingressou na Suprema Corte com um writ of mandamus a fim de contestar tal situação, com base em lei federal que conferia àquele órgão a competência para julgar originariamente a ordem impetrada (seção 13 do judiciary act, de 1789109)110.

Por outro lado, a Constituição dos EUA estabelecia que o Supremo Tribunal teria jurisdição originária em todas as causas concernentes a embaixadores, outros ministros públicos e cônsules, e nos litígios em que for parte um Estado. Em todas as outras, como a do caso em análise, o Supremo Tribunal teria jurisdição apenas recursal. Percebe-se, então, que havia conflito entre a Constituição e a mencionada lei federal no que concerne à competência para julgar o writ of mandamus111.

Pedro Lenza afirma que “até então, a regra era a de que a lei posterior revogava a lei anterior”. O questionamento era, portanto, se “teria a lei revogado o artigo de Constituição que tratava das regras sobre competência originária”112.

Após dois anos do curso do processo, a Suprema Corte enfrentou a matéria em 1803, indeferindo a ordem, com voto de Marshall113. Segundo sua linha de raciocínio, a Constituição ou é uma lei superior, predominante e imutável pelas formas ordinárias ou está no mesmo nível juntamente com as resoluções ordinárias da legislatura e, como as outras resoluções, é mutável quando a legislatura houver por bem modificá-la – não haveria meio termo entre as alternativas. Partindo do pressuposto de que a Constituição advém da vontade originária e suprema de organizar os poderes e fixar certos limites, não haveria lógica em admitir sua alteração pelas vias ordinárias justamente por aqueles a quem se quis inicialmente refrear114.

108 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 247-

248.

109 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 247-

248.

110 CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 20. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2013. p. 424.

111 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 247-

248.

112 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 247-

248.

113 CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 20. ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2013. p. 423-424

114 CARVALHO, Kildare Gonçalvez. Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 20. ed. Belo

Luís Roberto Barroso explica que Marshall, ao expor suas razões, enunciou os três grandes fundamentos que justificam o controle judicial de constitucionalidade:

Em primeiro lugar, a supremacia da Constituição: “Todos aqueles que elaboraram constituições escritas encaram-na como uma lei fundamental e suprema da nação”. Em segundo lugar, e como consequência natural da premissa estabelecida, afirmou a nulidade da lei que contrarie a Constituição: “Um ato do Poder Legislativo contrário à Constituição é nulo”. E, por fim, o ponto mais controvertido de sua decisão, ao afirmar que é o Poder Judiciário o intérprete final da Constituição: “É enfaticamente da competência do Poder Judiciário dizer o Direito, o sentido das leis. Se a lei estiver em oposição à Constituição a corte terá de determinar qual dessas normas conflitantes regerá a hipótese. E se a Constituição é superior a qualquer ato ordinário emanado do legislativo, a Constituição, e não o ato ordinário, deve reger o caso ao qual ambos se aplicam”115

Apesar de a tese de Marshall ser classificada muitas vezes como pioneira pela doutrina, há outros precedentes identificáveis em períodos diversos da história:

[...] nos Estados Unidos o argumento já havia sido deduzido no período colonial, com base no direito inglês. Além disso, no plano teórico, Alexander Hamilton, no

Federalista n° 78, havia exposto analiticamente a tese, em 1788. Todavia, foi no

caso Marbury v. Madison que ela ganhou o mundo e enfrentou com êxito as resistências políticas e doutrinárias”116.

Extrai-se do julgado, portanto, que o juiz, apreciando casos concretos, jamais poderia dar cumprimento a determinações normativas legais que fossem contrárias às normas constitucionais. Estava sendo construído o sistema difuso de controle de constitucionalidade, em que se outorga a cada órgão judiciário a prerrogativa de examinar, na análise do caso concreto, a compatibilidade orgânica entre a lei ordinária e a Lei Maior, a que todos devem obediência117.

Inspirada no modelo norte-americano, a Constituição de 1891 – superando o dogma da soberania do parlamento consagrado na constituição de 1824118 – inaugurou o sistema jurisdicional de controle de constitucionalidade no Brasil, acolhendo como critério o controle difuso por via de exceção119, que será estudado mais profundamente neste momento.

115 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição da doutrina e

análise crítica da jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 29-30.

116 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição da doutrina e

análise crítica da jurisprudência. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 27-28.

117 MENDES, Leonardo Castanho. O recurso especial e o controle difuso de constitucionalidade. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2006. p. 35.

118 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 15. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 226. 119 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35. ed. rev. e atual. até a emenda