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2 COMPONDO A TESSITURA NECESSÁRIA PARA UMA PROPOSTA

2.3 Abu’l-Wafa e sua colaboração com os artesãos

A interação entre matemática e arte envolvida na construção dos padrões geométricos, para os ornamentos do mundo islâmico medieval, tem uma rica história de ligações entre matemáticos e artesãos. Essas colaborações apontam as semelhanças e as diferenças nas maneiras pelas quais esses indivíduos criativos abordaram seus trabalhos. Por um lado, os geômetras usavam provas e rigor para verificar se as construções estavam exatas; por outro, os artesãos valorizavam o senso estético.

Considerando a seguinte situação-problema: uma construção simples de um certo triângulo retângulo isósceles com lados medindo uma unidade de comprimento. O geômetra apelaria ao teorema de Pitágoras para concluir que a hipotenusa tem um comprimento de √𝟐. Já o artesão poderia desconhecer completamente esse fato e,

além disso, o próprio ato de construir um triângulo desse tipo, em argila, madeira ou algum outro material, torna essa precisão de pouca importância (TENNANT, 2003).

A história do desenho geométrico contém muitos exemplos de colaborações entre matemáticos e artistas e a evolução contínua da ornamentação islâmica não é exceção, como veremos, agora, com o exemplo de Mohammad Abu'l-Wafa16 al- Buzjani, estudioso islâmico do século X.

Abu'l-Wafa (940- 998 DC) foi um matemático e astrônomo persa que nasceu em Buzjan, atual Irã e, seguindo o caminho de outros estudiosos de sua época, foi morar em Bagdá, no Iraque, que, àquela altura, era a sede do Império Islâmico. Lá, em torno de dois séculos antes, a dinastia dos Abássidas, sob o reinado de seu segundo califa, Abu Jafar al-Ma’mum, havia construído uma grande biblioteca, denominada Casa da Sabedoria17.

Figura 14: Abu’l-Wafa

Fonte: <https://muslimheritage.com/albuzjani/>

16 Estamos utilizando o nome do personagem conforme descrito pelo relevante site Mactutor , devido

à sua melhor adaptação aos caracteres da língua portuguesa. Contudo, encontramos, em um site especialista em transliteração, uma descrição mais próxima do nome original do personagem, ver: <https://ismi.mpiwg-berlin.mpg.de/person/52681>. Último acesso em: 03 set. 2020.

17 O objetivo dessa instituição, segundo Lyons (2011, p. 88), era de “acomodar a vasta escala do

trabalho necessário para traduzir, copiar, estudar e guardar o volume crescente de textos persas, sânscritos e gregos”. Em consequência disso, “ao longo de 150 anos, foram traduzidos todos os livros gregos disponíveis de ciência e filosofia. O árabe substituiu o grego como língua universal da pesquisa científica” (LIONS, 2011, p. 90). Para isso, o califa “mandou observadores à procura dos homens mais eminentes e sábios, dentro ou fora das fronteiras, para que fossem se juntar a ele” (Al-FLAYLI apud DEWDNEY, 2000, p. 73). Desse modo, muitos estudiosos, islâmicos ou não, migravam de toda parte, inclusive da Pérsia, trazendo os principais conhecimentos do mundo clássico e, desse modo, financiados, alocaram-se em Bagdá, promovendo um intercâmbio de culturas.

De acordo com Lyons (2011), talvez, nem todas as consequências da grande expansão islâmica tenham sido tão grandiosas quanto a confluência de algumas grandes tradições intelectuais do mundo centralizadas, em Bagdá, no período medieval. Lá, Abu'l-Wafa trabalhou na corte do califa Adud ad-Dawlahse e se tornou o último grande representante da escola de matemática-astronômica, que surgiu por volta do início do século IX, logo após a fundação de Bagdá. Com seus colegas, ele conduziu observações astronômicas no observatório construído no jardim da Casa da Sabedoria e continuou a tradição de seus antecessores, combinando trabalhos científicos originais com comentários sobre os clássicos, ou seja, os trabalhos de Euclides e Diofanto. Ele, também, teria escrito um comentário para a álgebra de al- Khwarizmi, todavia, nenhum desses comentários foi encontrado ainda.

Na revista eletrônica MacTutor History of Mathematics archive18, verificamos algumas informações sobre Abu’l-Wafa: 1. é mais conhecido pelo uso da função tangente e por compilar tabelas de senos e tangentes em intervalos de 15’; 2. sua tabela trigonométrica tem precisão até a oitava casa decimal (convertido na notação decimal), enquanto que a de Ptolomeu tinha precisão até a terceira casa; 3. em algum momento, ele escreveu um Livro sobre o que é necessário do conhecimento da aritmética para escribas e negociantes e parece ser esse o único lugar onde o número negativo pode ser encontrado na Matemática Árabe Medieval; 4. em sua homenagem, uma das crateras da lua recebeu seu nome.

Segundo Yushkiévitch19, pelo que tudo indica, Abu'l-Wafa era descendente de persas. Já Tennant (2003) é mais incisivo, em detalhes biográficos, ao dizer que o estudioso nasceu na província de Khorasan, na Pérsia (Irã) e se mudou para Bagdá aos vinte anos. Entretanto, é preciso compreender que, devido a esse processo de aglomeração de povos, o império islâmico se tornara cada vez menos arábico, tendo que ser esclarecido, por exemplo, que Abu’l-Wafa era islâmico por ser oriundo das terras dominadas pelo império e não árabe, pois, nesse caso, necessitaria que fosse natural da península arábica. Porém, muitos estudiosos, como já dito, não eram árabes, mesmo assim, converteram-se e se empenharam em fortalecer a religião islã.

18 Criada por John J. O’Connor e Edmund F. Robertson, da Escola de Matemática e Estatística

da Universidade de St. Andrews, na Escócia. Disponível em: <http://mathshistory.st- andrews.ac.uk/Biographies/Abul-Wafa.html>. Acesso em: 24 mar. 2019.

19 YUSHKIÉVITCH, A. P. Abū’l-Wafāʾ Al-Būzjānī, Muḥammad Ibn Muḥammad Ibn Yaḥyā Ibn Ismāʿīl Ibn

Al-ʿAbbās. Complete Dictionary of Scientific Biography. Disponível em: <https://www.encyclopedia.com/science/dictionaries-thesauruses-pictures-and-press-releases/abu->.

Nesse mundo islâmico em que viveu o estudioso, os monumentos arquitetônicos produzidos pela arte islâmica se revelaram como grande marca do sistema político, social e religioso, tendo por característica construções que, em muitos casos, eram compostas tradicionalmente de painéis ornamentais, formados a partir de padrões geométricos ricos em proporções e simetrias. De acordo com Leite (2007, p. 14), esses padrões “carregavam valores simbólicos capazes de retratar a forma como o mundo é criado e como é organizado”. Conforme Barison e Póla (2007), os padrões geométricos islâmicos não moviam apenas a arte, mas também a matemática. Sendo assim, logo percebemos a existência de uma relação entre matemática e arte nas bases da identidade cultural do islã.

Nesse contexto, Abu”l Wafa teria participado de reuniões que serviram de fórum para artesãos e matemáticos discutirem métodos para a construção de desenhos ornamentais em madeira, azulejo e outros materiais. Ainda, sobre essas reuniões colaborativas, Ozdural (2000, p. 171) aponta que “eram fenômenos generalizados no mundo islâmico”.

Embora os registros sobre essas reuniões sejam escassos, Ozdural20 (2000) traz uma revisão de citações contidas em trabalhos do período, que fazem referência aos encontros, destacando a obra de Abu’l-Wafa, o livro On the Geometric

Constructions Necessary for the Artisan (Construções geométricas necessárias

para artesãos).

Hogendijk (2012) fala sobre esse livro dizendo que consiste em onze capítulos sobre (1) a régua, a bússola e o esquadro; (2) construções euclidianas fundamentais de régua e compasso e, além disso, uma construção de duas proporções médias, uma trissecção do ângulo e uma construção pontual de um espelho (parabólico); (3) construção de polígonos regulares, incluindo algumas construções por uma única abertura do compasso; (4) inscrevendo figuras em um círculo; (5) circunscrever um círculo em torno de figuras; (6) inscrevendo um círculo nas figuras; (7) inscrição de figuras uma na outra; (8) divisão de triângulos; (9) divisão de quadriláteros; (10) combinar quadrados em um quadrado e dividir um quadrado em quadrados, todos por construções recortadas e coladas e (11) os cinco poliedros regulares e alguns semirregulares. Abu'l-Wafa não menciona ornamentos geométricos.

20 Na produção intitulada “Mathematics and Arts: Connections between Theory and Practice in the

Medieval Islamic World” (ou Matemática e Artes: Conexões no ensino entre teoria e prática no mundo islâmico medieval).

A maioria das informações sobre os métodos de trabalho dos artesãos está contida no capítulo 10. Nesse capítulo, Abu'l-Wafa relata acerca dos problemas geométricos discutidos nas reuniões com os artesãos. Estas, ao que parece, tinham o intuito de apresentar soluções mais simples e práticas para as construções ornamentais dos artesãos. Baseados no método de “corte e colagem”, os padrões geométricos construídos, quando sobrepostos, deveriam ser providos de capacidade de repetição infinita.

Dos problemas que vamos apresentar aqui, os dois primeiros, o Problema I e o Problema II têm solução bastante simples, sem necessidade de grande argumentação. Já o Problema III, citado neste artigo e na reunião entre geômetras e artesãos, não é tão trivial.

PROBLEMA I: Construir um quadrado a partir de dois iguais

Solução

Para montar um quadrado a partir de dois quadrados unitários, divida cada um dos dois quadrados unitários ao longo de uma de suas diagonais e monte os quatro triângulos obtidos em que as diagonais se tornam os lados do quadrado desejado (OZDURAL, 2000).

Figura 15: Um quadrado a partir de dois iguais

Fonte: Adaptação do autor com base em Ozdural (2000)

Sendo dois quadrados iguais, logicamente, suas diagonais também são iguais. Levando-se em consideração a solução acima, em que cada lado do novo quadrado

se refere à diagonal, conclui-se que todos os lados são iguais, resultando exatamente na formação de um quadrado. Nesse caso, é relevante destacar que não foi preciso medir as diagonais, em si, para poder garantir que os lados configurassem um quadrado, tampouco que as áreas entre o quadrado gerado e a soma de seus geradores fossem equivalentes.

PROBLEMA II: Construir um quadrado a partir de cinco iguais

Solução

Para compor um quadrado a partir de cinco quadrados unitários, teremos de formar retângulos com comprimento de duas unidades e largura de uma unidade. Cortando os retângulos ao longo de suas diagonais, obter-se-á quatro triângulos congruentes. Montando os triângulos ao redor do quadrado da unidade restante, unindo os lados ao redor dos ângulos retos. Assim, obtém-se o quadrado requerido. O lado do quadrado requerido é a diagonal do retângulo.

Observando cada parte após o corte e notando os números que foram inseridos em cada uma, é fácil perceber que a área do quadrado desenvolvido é igual à soma das áreas dos cinco quadrados. Novamente, não é necessário provar através de cálculos.

Figura 16: Um quadrado a partir de cinco iguais

Segundo os comentários de Ozdural (2000), a elegância e a simetria rotacional dessa construção, provavelmente, atraíram a atenção dos artesãos, que sempre procuravam novos padrões para acrescentar ao seu repertório. Ao unir quatro triângulos retangulares congruentes ao longo de suas hipotenusas ao quadrado igual a cinco quadrados unitários, obtém-se um quadrado maior igual a nove quadrados unitários. Os quatro novos triângulos congruentes podem ser posicionados de duas maneiras. Se eles são colocados de modo a formar quatro amêndoas com os outros quatro triângulos congruentes, um padrão dinâmico encantador resulta (figura 17). Numerosas versões desse padrão são encontradas em superfícies de paredes, portais, minaretes, portas, baús e outros, de diferentes períodos e de diferentes países.

Figura 17: Um quadrado a partir de nove iguais

Fonte: Adaptação do autor com base em Ozdural (2000)

PROBLEMA III: Construir um quadrado a partir de três iguais

Ozdural (2000) relata que Abu’l-Wafa, em seu livro, evidencia que havia entre os artesãos soluções que pareciam corretas, mas que, na verdade, continham erro matemático. Uma de tais soluções é a que consta na figura 18.

Figura 18: Solução proposta pelos artesãos para o Problema III

Fonte: Adaptação do autor com base em Ozdural (2000)

Nessa última figura, é possível visualizar que o quadrado unitário A não sofreu alterações, o quadrado que contém os pontos B e G foi dividido pela diagonal e o quadrado que contém os pontos Z, D e E foi dividido, de tal modo, que o ponto D é o encontro das diagonais, além de que, do ponto D, foi traçada uma reta perpendicular ao lado oposto ao lado ZE dividindo-o na metade.

Para montar o quadrado grande a partir dos três menores, os artesãos propunham:

1. Deixar o quadrado A em seu próprio lugar;

2. Ajustar a lados opostos do quadrado A os dois triângulos obtidos da partição do quadrado que contém B e G, de modo que um dos ângulos agudos do triângulo coincidisse com um ângulo do quadrado. Observando a figura formada, o triângulo, ajustado pela diagonal, ficaria, digamos assim, com “uma ponta sobrando”;

3. Encaixar pela diagonal o triângulo ZDE na parte inferior do quadrado A; 4. Por último, encaixar os trapézios unindo os pontos Z e E no quadrado maior

No entanto, nessa construção, esconde-se um erro apontado por Abu’l-Wafa, com auxílio do que ele dispunha na época. Tal percepção do erro leva a crer que ele tenha participado das reuniões com os artesãos, conforme demonstra a passagem abaixo:

[...] Estive presente em uma reunião na qual participou um grupo de geômetras e artesãos. Eles foram questionados sobre a construção de um quadrado a partir de três quadrados. Um geômetra construiu facilmente uma linha tal que o quadrado dele é igual aos três quadrados, mas nenhum dos artesãos estava satisfeito com o que ele havia feito. O artesão quer dividir esses quadrados em pedaços a partir dos quais um [outro] quadrado pode ser montado, como nós descrevemos para dois quadrados e cinco quadrados. (ABU’L-WAFA apud OZDURAL, 2000, p. 174).

Com relação ao erro cometido na construção, recorrendo aos instrumentos que hoje manejamos com maior facilidade, isto é, os cálculos, é suficiente mostrar que os trapézios obtidos da partição do segundo quadrado são maiores do que o vazio deixado pelo ajuste dos três triângulos isósceles nos três lados do quadrado maior.

Observemos que os quadrados são unitários e, portanto, seus lados medem 1. Sendo assim, os trapézios têm lados perpendiculares medindo ½, ½ e 1, enquanto que o espaço vazio a ser preenchido tem medidas (√𝟐 − 𝟏), 𝟏𝟐 e [(√𝟐 − 𝟏) + 𝟏𝟐 )]. Abu’l- Wafa apresentou sua solução para o Problema III:

[...] Nós dividimos dois dos quadrados ao longo de suas diagonais. Cada uma [das diagonais dos triângulos obtidos] é colada ao lado do terceiro quadrado de modo que a um ângulo agudo do triângulo retângulo coincida com o um ângulo do quadrado. Obviamente, parte do triângulo vai sobrar lá no outro canto do quadrado. Juntamos então os ângulos retos dos triângulos por meio de linhas retas e estas serão os lados do quadrado desejado. De cada grande triângulo, um pequeno triângulo (a parte que ficou sobrando) é cortado por nós, e nós o transferimos para a o espaço que ficou vazio do triângulo que é produzido em outro ângulo (ABU’L-WAFA apud OZDURAL, 2000, p. 184).

Podemos observar (Figura 19) que Abu’l-Wafa solucionou o problema acima tracejando linhas abstratas, isso nos mostra que chegar a tal raciocínio não é uma tarefa tão fácil. Entretanto, percebe-se que tal solução, por mais que possua uma natureza teórica complexa, sua parte prática consegue atender aos anseios dos

artesãos, ou seja, formar um padrão com cortes simples e com potencialidade de expansão tendendo ao infinito.

Figura 19: Solução proposta por Abu’l-Wafa para o Problema III

Fonte: Adaptação do autor com base em Ozdural (2000)

Essa relação interdisciplinar entre matemática e arte, também, serve como uma ferramenta poderosa para os professores em sala de aula. Esses projetos visuais elaborados fornecem exemplos motivadores para estudantes e para o desenvolvimento de maravilhosas aplicações artísticas de simetria e geometria. É, com esse pano de fundo, que nos concentramos em um exemplo histórico dessa colaboração.

Neste capítulo, apresentamos alguns dos principais conceitos da teoria que elegemos como base orientadora de nossas ações pedagógicas, ou seja, da TO. Descrevemos, na sequência, a ornamentação no islã medieval, dando ênfase à ornamentação geométrica. Por fim, finalizamos evidenciando aspectos do trabalho matemático, discutido por Abu’l-Wafa (940-998), no âmbito das reuniões que teria participado junto com artesãos dessa época. No próximo capítulo, descrevemos sobre o ensino de geometria no Brasil, conversando sobre parte de sua história, sua relação com documentos oficiais, tecnologias, tendências atuais e outros. Além disso queremos deixar evidente o modo como estamos recorrendo a esse importante ramo da matemática em nosso trabalho.