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CONTRATOS ALEATÓRIOS

12. Princípio da Boa Fé

12.3. Abuso de Direito

A figura do abuso de direito encontra-se prevista no artigo 334.º do CC, onde se estipula que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda

manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O próprio artigo desafia o intérprete a alcançar, na prática, aquilo que considera um limite imposto pela boa fé. Entre outro Autores179, António Menezes Cordeiro define-

177 O dever de melhor execução encontra-se previsto no artigo 330.º n. 2 do CVM, segundo o qual “na falta

de indicações do ordenador, as ordens devem ser executadas nas melhores execuções que o mercado viabilize, imediatamente ou no momento mais adequado”.

178 Paulo Câmara, Manual de Direito dos Valores Mobiliários, Almedina, 2016, 3ª Edição, p. 423

179 Segundo Orlando de Carvalho, em Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2012, p. 45 “O abuso

de direito existe quando há um exercício do direito fora do âmbito do exercício do poder de autodeterminação que é próprio fundamento do reconhecimento de direitos subjetivos, propondo, como critério para o apurar a falta de interesse no exercício do direito a apreciar em abstrato ou concreto, e a transcendência do prejuízo em relação ao agente. Esta conceção implica, pois, uma distinção em relação à boa fé entendida enquanto norma de conduta: enquanto nesta está em causa uma regulamentação da conduta dos particulares, um problema de atuação contra legem, no abuso de direito o que é relevante não é a violação do direito objetivo, e sim a falta de interesse conjugada com a “transcendência do prejuízo”; Para Antunes Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”, cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, Almedina, 6.ª Edição p. 516; Para

o como “uma designação tradicional para o que se poderia dizer «exercício disfuncional de posições jurídicas»”180.

O abuso de direito não se encontra especificamente consagrado no Código dos Valores Mobiliários, no entanto, isso não implica que este ramo do Direito o instituto seja alheio ao instituto, pelo contrário, várias vozes se têm levantado em defesa da aplicação judicial deste instrumento jurídico aos negócios celebrados pelos intermediários financeiros no âmbito da sua atividade.

A questão surge nos casos polémicos em que, por alteração das condições de execução do contrato, geradora de desproporcionalidade entre as partes, a parte beneficiada continua a exigir da parte prejudicada o cumprimento de obrigações que se tornaram insuportáveis ou mesmo impossíveis de cumprir. Pergunta-se se é legítimo considerar a conduta do intermediário financeiro como abusiva, nos casos em que se verifique um desequilíbrio entre o benefício auferido por este e o prejuízo causado aos investidores.

Vejamos por exemplo o caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26- 01-2016, em que o investidor, recorrente, que tinha celebrado contrato de swap com a instituição bancária, invocou o abuso de direito para que fosse declarada a resolução daquele contrato. Para o efeito, alegou que o contrato tinha uma estrutura desequilibrada que não cobria o risco, pelo contrário, criou-o, gerando-se uma desproporção entre os riscos assumidos. Refere, portanto, o supracitado acórdão que “a desproporção enorme entre as margens de risco que cada uma das partes assumiu com a outorga do contrato, para além de violar o principio da boa fé e da equivalência que subjaz ao direito das obrigações e, em especial, aos contratos de ‘troca’, é em si mesma ilustrativa de que muito dificilmente o dito objetivo de cobertura de risco seria alcançado. (…) sempre se poderá perspetivar a situação à luz do abuso de direito na modalidade do ‘desequilíbrio no

Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”, cf. Manuel de Andrade,

Teoria Geral das Obrigações, com a colaboração de Rui de Alarcão, 3.ª Edição, Coimbra, Almedina, 1966,

p. 63-63;

180 António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. V, 3.ª Edição Atualizada, Almedina, 2018, p.

exercício jurídico’, em cuja categoria se integra «a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem» a que alude Menezes Cordeiro, em manifesta desconformidade com os princípios da boa fé objetiva e da justiça contratual e suscetível, de acordo com esse Autor, de integrar a previsão do art. 334.º do CC na medida em que há um exercício que manifestamente ultrapassa os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (…) O efeito do abuso de direito é a declaração da anti-juridicidade do mesmo, pelo que a sua consequência deverá ser a nulidade do contrato dos autos com todos os seus legais efeitos”181.

Por seu turno, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, na senda de uma decisão proferida pelo Tribunal da Cassação Italiano de 18/09/2009, que “o abuso do direito longe de pressupor uma violação no sentido formal delineia, pois, uma utilização alterada do esquema formal do direito, finalizada pelo conseguimento de objetivos ulteriores e diversos aos que estavam indicados pelo legislador”. Por referência ao entendimento de

Gianluca Falco e Rui Alarcão, o Supremo Tribunal de Justiça acrescenta que “o uso

anormal do direito pode conduzir o comportamento particular fora da esfera do direito subjetivo, tornando-o, por conseguinte, ilícito segundo as normas gerais do direito material”182, concluindo que o abuso de direito implica que haja uma utilização do direito,

de forma diversa da legalmente prevista e que tal se mostra ilegítimo. Assim, pronunciou- se o STJ no sentido de que as partes, ao terem acordado, aceite, e acolhido determinado contrato, conscientes do seu carácter aleatório, não podem, no decurso do contrato, pedir a sua resolução, criando uma situação contraditória de venire contra factum proprium, por ter uma parte constatado que o contrato se revelou desfavorável. Ora, a execução desfavorável, não pode, no entendimento daquele Tribunal, justificar a conduta dos contraentes como conduta de má fé, não se podendo desencadear o instituto do abuso de direito183.

181 Acórdão do STJ, de 16/01/2016, Relator: Gabriel Catarino, Processo n.º 876/12.9TVLSB.L1.S1, in

www.dgsi.pt

182 Acórdão do STJ, de 16/01/2016, Relator: Gabriel Catarino, Processo n.º 876/12.9TVLSB.L1.S1, in

www.dgsi.pt

183 Neste sentido cf. acórdão do STJ, de 16/01/2016, Relator: Gabriel Catarino, Processo n.º

A conclusão do douto Tribunal parece apropriada dadas as circunstâncias do caso concreto. No entanto, como regra geral, o Direito dos Valores Mobiliários tem de garantir a defesa dos investidores e a eficiência do mercado. Os intermediários financeiros e os investidores, enquanto sujeitos do mercado de valores mobiliários, têm conhecimento e consciência que o mercado tem oscilações diárias entre valores positivos e negativos, pelo que os resultados que daí advierem para os investidores tanto podem ser favoráveis ou desfavoráveis, e este facto é aceitável para os intervenientes do mercado.

O que não se concede, e que merece ser alvo de tutela são as desvantagens que se revelam insuportavelmente onerosas, injustas ou descontextualizadas para uma das partes e, ainda assim, a contraparte continua a exigir o cumprimento da obrigação assumida, sem dar margem de abertura para renegociação que permita a adaptação do contrato financeiro às novas condições do mercado e às possibilidades do contraente prejudicado. Esta renegociação é uma diligência ética de boa fé, de busca pelo equilíbrio, pela busca da proteção dos legítimos interesses do cliente.

Perante esta reflexão é bem patente o que menciona Carneiro da Frada184 ao referir

que a autonomia privada e a justiça têm que andar de mãos dadas, do mesmo modo que o Direito dos Valores Mobiliários deve ser complementado pelo direito comum, nomeadamente no que concerne ao princípio da boa fé e respetivos institutos jurídicos positivados no Direito Civil.