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1. NOÇÕES PRELIMINARES

1.3. Abuso de direito

O abuso de direito somente foi abordado expressamente pela legislação civil brasileira com o advento no novo Código Civil em 2002, notadamente no seu art. 187, que preceitua: “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”59.

Percebe-se, desse modo, que o abuso de direito relaciona-se com a boa-fé objetiva, uma vez que comete abuso de direito aquele que age em desconformidade com o princípio da boa-fé. Ademais, a caracterização do abuso de direito independe do estado psicológico do agente, ou seja, sua verificação se dá de forma objetiva, o que se coaduna com as características da boa-fé objetiva.

58 CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina. 2001, p. 18.

59 A legislação brasileira inspirou-se no art. 334 do Código Civil português, in verbis: “Art. 334. Abuso do direito. É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito”.

A esse respeito, Mariana Pretel assevera: “A teoria objetiva do abuso de direito é relacionada à aplicação do princípio da boa-fé objetiva, através da cláusula geral da boa-fé”60.

Tendo em vista que a aferição do abuso de direito prescinde da comprovação do elemento subjetivo (dolo ou culpa) do agente, diz-se que o legislador brasileiro optou pelo critério objetivista ou finalista.

Na expressão abuso de direito, o direito aqui vislumbrado é o direito subjetivo, que constitui o objeto do abuso de direito. Para fins deste estudo, pode-se dizer que o direito subjetivo equivale à faculdade ou ao poder conferidos ao indivíduo pela norma de direito positivo. Quando os limites deste direito são ultrapassados, ocorre o abuso.

Por isso, diz-se que o direito subjetivo é relativo, haja vista que ele tem que ser exercido dentro de certos limites, ou seja, de acordo com os fins previstos para ele no sistema.

Desse modo, conforme anota Helena Abdo61, o ato abusivo tem inicialmente aparência de legalidade, mas seu exercício revela-se irregular a partir do momento em que se observa o desvio de finalidade com que é movido o agente. Dessa afirmativa, extraem-se os elementos caracterizadores do abuso de direito: aparência de legalidade, titularidade de um direito subjetivo, que é, por sua natureza, relativo, e desvio de finalidade no exercício desse direito.

Acrescente-se também que, quando do abuso do exercício de direito, há o desrespeito aos valores da norma (boa-fé objetiva, ética, dignidade da pessoa humana, função social, dentre outros), e não ao objeto e ao conteúdo do direito.

A esse respeito, aclara Nelson Rosenvald:

No abuso de direito a leitura é diversa. Aqui, alguém aparentemente atua no exercício de um direito subjetivo. O agente não desrespeita a estrutura normativa, mas ofende a sua valoração. Conduz-se de forma contrária aos fundamentos materiais da norma, por negligenciar o elemento ético que preside a sua adequação ao ordenamento. Em outras palavras, no abuso de direito não há desafio

à legalidade estrita de uma regra, porém à sua própria legitimidade,

60PRETEL, Mariana Pretel e. A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 90.

posto vulnerado o princípio que fundamenta e lhe concede sustentação sistemática62 (grifo da autora).

Com efeito, todo aquele que tem uma conduta em desconformidade com a boa-fé objetiva, comete abuso de direito, implicando, ainda, tal conduta a reparação dos danos morais e materiais causados à parte prejudicada, à semelhança do que ocorre quando da verificação de um ato ilícito63.

Assim, há abuso de direito quando se viola a norma sob o seu aspecto axiológico, infringindo os valores da boa-fé, dos bons costumes, da função social e econômica dos direitos, nos termos do art. 187 do Código Civil. Neste ponto, vale fazer breves considerações a respeito da “teoria do adimplemento substancial”64, estabelecida por Lord Mansfield em 1779, no caso Boone v. Eyre, que decidiu que, em certos casos, se o contrato já foi adimplido substancialmente, não se permite a sua resolução, com a perda do que foi realizado pelo devedor, mas atribui-se um direito de indenização ao credor.

Assim, se o inadimplemento for mínimo e não atingir a substância da obrigação, o direito à resolução dá espaço a outro direito, como, por exemplo, o direito à reparação por perdas e danos.

No direito privado pátrio, admite-se a aplicação da teoria do adimplemento substancial, especialmente em virtude do art. 187 do Código Civil, que trata da cláusula geral do abuso de direito, e do art. 422 do mesmo diploma, que versa sobre a cláusula geral da boa-fé.

Com relação à aplicação dessa teoria no processo civil, defende-se aqui o seu emprego também nesse ramo do direito, tendo em vista que ela decorre diretamente do princípio da boa-fé e, como já mencionado, este princípio vige em todo o ordenamento jurídico, por ser um princípio constitucional. Além disso, por ter relação intrínseca com a boa-fé objetiva, a

62ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 123.

63Ressalte-se que, apesar de o legislador pátrio ter qualificado o ato abusivo como ato ilícito, eles não se confundem, pois ato ilícito é aquele que transgride os limites inerentes à própria natureza do direito e o abuso de direito transgride os valores axiológicos da norma jurídica. 64 A doutrina do adimplemento substancial surgiu na Inglaterra, no século XVIII, quando os tribunais ingleses, desejosos de fazer justiça entre as partes contratantes, relativizaram a exigência do exato e estrito cumprimento dos contratos, tendo como precedente histórico o julgamento do caso Boone v. Eyre.

vedação do abuso de direito também tem emprego nas relações processuais, denominando-se, neste caso, abuso do direito processual, sendo que as implicações da teoria do abuso do direito e da teoria do adimplemento substancial, no âmbito do direito processual civil, serão abordadas, com maior profundidade, na última seção deste trabalho.