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3. A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

3.2. Fundamento legal da boa-fé objetiva no CPC

3.2.1. Dever processual de agir conforme a verdade

O dever de veracidade versado no inciso I do art. 14 do CPC é apontado pela doutrina como uma das facetas mais relevantes do dever de agir com boa-fé, por possuir contornos mais definidos que a boa-fé, representando o dever dos sujeitos processuais de fazer corresponder as suas alegações à realidade158.

De acordo com o dever de veracidade, as afirmações das partes dentro do processo referem-se a fatos ou a direitos, e não a declarações de

157 Tal fato se dá especialmente porque todos devem colaborar com a administração da justiça, tendo em vista que o processo civil brasileiro se enquadra dentro do modelo cooperativo do processo, conforme foi pontuado no item “2.5” supra.

158BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidade das partes por dano processual no direito brasileiro. Temas de direito processual civil. Primeira Série. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 17.

vontade, como se entendia outrora, dado o reconhecido caráter publicístico do processo hoje em dia. Ou seja, a parte é instrumento do processo e deve zelar, portanto, pelo interesse público de que este se encontra revestido.

Nesse diapasão, assevera Arruda Alvim159 que basta à parte fornecer uma versão veraz dos fatos principais, podendo, legitimamente, deixar de aludir a certos fatos, desde que, com isso, não comprometa a verdade da narração como um todo.

Assim, o dever de veracidade previsto atualmente na lei brasileira não veda a omissão dos fatos pela parte160, desde que não implique inveracidade das alegações da parte em juízo nem se refira a fato essencial ao julgamento da causa. Em outras palavras, a possibilidade de omissão constitui um limite ao dever de veracidade dos sujeitos processuais.

Obviamente a parte atua no processo a fim de alcançar interesse particular e não pode ser compelida a fornecer ao seu adversário ou ao juiz elementos que lhe prejudiquem no litígio, o que seria contrário à própria natureza humana. Desse modo, a parte, ao utilizar-se da garantia de liberdade que lhe é inerente, deve vislumbrar um equilíbrio entre essa liberdade e o dever de veracidade, com espeque na boa-fé objetiva.

Destaque-se também que o dever de veracidade pregado pelo Código de Processo Civil brasileiro corresponde ao dever a uma verdade subjetiva, e não objetiva, ou seja, a parte tem que acreditar que a sua afirmação é verídica, mesmo que não corresponda à realidade. Daí falar-se que o dever de veracidade versado no inciso I do art. 14 do CPC equivale ao dever de verdade subjetiva.

Outrossim, frise-se que a verdade constitui um dos objetivos ideais da prova judiciária, tendo em vista que o processo visa alcançar sobretudo decisões justas. Entretanto, deve-se ter em mente que a verdade no processo se resolve em um juízo de verossimilhança, pois, como já dito, não há verdade absoluta no processo.

159 ARRUDA ALVIM, José Manoel. Deveres das partes e dos procuradores no direito

processual civil brasileiro (a lealdade no processo). RePro, São Paulo: RT, v. 69, jan.-mar.

1993, nota 53, p. 19. 160

Antes da Lei 6.771/80 que alterou o inciso I do art. 17 do CPC, a lei brasileira vedava a omissão, pois reputava litigante de má-fé aquele que omitia “intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa”. Atualmente, porém, consta deste dispositivo legal que se reputa litigante de má-fé aquele que “deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso”.

Nesse ponto, é muito importante observar que a valoração161 da prova pelo juiz, no modelo cooperativo de processo, no qual se enquadra o direito processual civil brasileiro, prestigia a igualdade efetiva entre as partes. Desse modo, o juiz, mesmo podendo tomar iniciativa no terreno probatório, tem o dever de submeter o resultado da prova às partes interessadas, bem como de fundamentar a sua decisão sobre o material probatório colhido no processo, uma vez que todos os sujeitos processuais, inclusive o magistrado, têm que agir com lealdade no âmbito do processo.

O descumprimento do dever de lealdade, incluindo-se neste o dever de veracidade, dentre outros, pode implicar abuso do processo, caso este descumprimento ocorra com desvio de finalidade. Por exemplo, o autor que pede indenização a determinado sujeito, por supostos danos causados em seu veículo após acidente de trânsito, não pode acrescer no valor da indenização danos preexistentes ao acidente, sob pena de infringir o dever de lealdade (inclusive o dever de veracidade).

O autor não pode, pois, sob o pretexto de agir com lealdade processual, demandar em juízo com desvio de finalidade, objetivando o pagamento de valor superior aos danos efetivamente causados em seu veículo em decorrência do acidente de trânsito.

Na verdade, a infração de qualquer dever processual com desvio de finalidade, e não apenas do dever de lealdade, viola a boa-fé objetiva e acarreta abuso processual, sendo que este pode se manifestar de diversas formas, não havendo um rol exaustivo das hipóteses de abuso do processo no ordenamento jurídico brasileiro, como será visto adiante.

O desvio de finalidade, por sua vez, pode ser verificado pelas noções de instrumentalidade e de escopos do processo, devendo ser legítimos não apenas os fins do processo como também os meios utilizados para se alcançar a decisão judicial.

Partindo da premissa que a descoberta da verdade é uma das principais finalidades do processo, a infração aos deveres de lealdade processual e de veracidade acarreta quase que automaticamente a prática de

161 Note-se que a valoração da prova ocorre, durante a instrução do processo, antes de formado o convencimento do juiz sobre o caso sub exame. Logo, valoração e convencimento judicial são conceitos que não se confundem.

abuso processual, tendo em vista a íntima ligação entre tais deveres e as finalidades do processo e do próprio ordenamento jurídico, consoante observa Helena Abdo162.

Sobre o repúdio do ordenamento jurídico pátrio ao desvio de finalidade no descumprimento dos deveres de lealdade e veracidade, sintetiza, de forma brilhante, Barbosa Moreira que se deve impedir que a falta consciente à verdade, o uso de armas desleais, as manobras ardilosas tendentes a perturbar a formação de um reto convencimento do órgão jurisdicional, ou a procrastinar o andamento do feito, embaracem a administração da justiça e

desviem do rumo justo a atividade jurisdicional163.

Note-se, ainda, que o dever de veracidade contido no inciso I do art. 14 relaciona-se diretamente com o inciso II do art. 17, que reputa litigante de má-fé aquele que alterar a verdade dos fatos, o que será analisado no item “3.5.2.” infra.