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Necessidade de compatibilização da boa-fé objetiva com as

3. A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

3.7. Necessidade de compatibilização da boa-fé objetiva com as

Os valores consagrados na CF de 1988 imprimem no campo do direito processual civil os fundamentos éticos do processo, em razão da força normativa da Constituição no Estado Constitucional.

320 Note-se que, nos incisos III, IV, V, VI e VII, há referência à intenção do sujeito processual de utilizar o processo de forma maliciosa (III: “objetivo ilegal”; IV: “resistência injustificada”; V: “modo temerário”; VI: “manifestamente infundados”; VII: “intuito manifestamente protelatório”), enquanto, nos incisos I (“deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso”) e II (“alterar a verdade dos fatos”), o que se verifica é a contrariedade à boa-fé objetiva, apesar de constar no caput do art. 17 “litigante de má-fé”, pois não é necessário que o sujeito atue no processo com algum propósito ardil, mas apenas que se constate objetivamente que o processo foi utilizado para fim diverso daquele previsto pelo legislador.

321 Sobre a prescindibilidade do elemento subjetivo na caracterização do abuso processual, Helena Najjar Abdo faz importante observação: “A opção pelo critério objetivo não corresponde, todavia, à afirmação de que a conduta processual abusiva deva ser totalmente desprovida de qualquer caráter doloso ou culposo. Ou seja, eventual dolo ou culpa pode ou

não estar presente no ato cometido por qualquer dos sujeitos processuais, sem que isso retire

da conduta o seu caráter abusivo. O que a lei dispensa é a perquirição do elemento subjetivo no caso concreto.” (ABDO, Helena Najjar. O Abuso do processo. São Paulo: RT, 2007, p. 121).

Nesse cenário, o direito processual civil surge como importante instrumento de concretização dos valores e princípios constitucionais, visando a “construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, consoante preconiza o art. 3.° da CF.

Desse modo, o processo civil perde sua feição privatista, que é substituída pela face publicista do processo, pois o processo, para ser justo, deve atender aos direitos e garantias fundamentais estatuídos na CF, o que é de interesse tanto da sociedade como do Estado.

As garantias processuais constitucionais funcionam, portanto, como vetores que orientam o comportamento dos sujeitos do processo, incluindo entre estes o Estado-juiz, que deve sempre vislumbrar a realização da justiça no caso concreto em conformidade com a CF.

Nessa quadra, desenvolve-se o formalismo-valorativo, que torna evidente o imbricamento existente entre a CF, o processo civil e a cultura, sendo o método mais adequado para estudar o direito processual civil contemporâneo322. Em síntese, o processo deixa de ser visualizado como mera técnica e passa a ser compreendido como instrumento ético.

O processo deixa, pois, de ser encarado como um duelo entre as partes, porquanto a finalidade última do processo é a pacificação social com justiça, o que interessa a todos. Em outras palavras, o escopo público do processo desborda os limites dos interesses das partes que são discutidos na lide.

A cláusula geral da boa-fé inserida no inciso II do art. 14 do CPC evidencia a influência dos fundamentos éticos contidos na CF sobre o diploma processual civil.

A eficácia do ordenamento jurídico processual está condicionada à observância da boa-fé objetiva, pois é a boa-fé objetiva que permite extrair a essência do conteúdo da norma processual para a sua aplicação no caso concreto, podendo alargar ou restringir o seu conteúdo, a depender da situação posta.

Consoante observa Leide Maria Gonçalves Santos, a boa-fé objetiva funciona como otimizadora dos valores éticos em todo o sistema processual,

322 MITIDIERO, Daniel Francisco. Elementos para uma teoria contemporânea do processo

pois promove a ordenação da aplicação das normas processuais, bem como estabelece uma aplicação prospectiva das mesmas, na busca da efetividade do processo323.

Outrossim, a releitura que se deve fazer do diploma processual civil com base no texto constitucional implica a ruptura da absolutez dos direitos fundamentais, como garantias liberais, pois os valores e os princípios constitucionais devem ser analisados caso a caso, não sendo possível estabelecer previamente prioridade entre eles.

A título de exemplo, a garantia constitucional da ampla defesa não significa defesa desmedida, sem limites, pois “amplo” remete a “extenso”, e não a “ilimitado”. Assim, referida garantia constitucional tolera mitigações no caso concreto, o que deve ser feito com supedâneo na boa-fé objetiva.

O princípio da boa-fé promove, portanto, o equilíbrio entre os valores constitucionais aplicáveis à situação concreta, pois conforma as garantias constitucionais aos interesses das partes discutidos no âmbito processual. Por exemplo, a boa-fé permite o equacionamento entre os valores da ampla defesa e da duração razoável do processo.

Desse modo, nas palavras de Célia Barbosa Abreu Slawinski, a boa- fé objetiva é “regra que vem instrumentalizar valores constitucionalmente previstos”324.

A interpretação do art. 14, inciso II, do CPC deve ser feita, portanto, à luz da CF, afastando-se da concepção liberal das garantias constitucionais processuais, ao mesmo tempo que se aproxima da conotação objetiva da boa- fé e do modelo de processo cooperativo, tratado no segundo capítulo (item “2.4.”).

Dessa sorte, a boa-fé objetiva representa a máxima do comportamento correto e funciona como baliza das garantias constitucionais processuais, pois referidas garantias não são absolutas, haja vista que devem respeitar outros princípios constitucionais e observar as circunstâncias do caso concreto.

323 SANTOS, Leide Maria Gonçalves. Boa-fé objetiva no processo civil: teoria dos modelos

de Miguel Reale aplicada à jurisprudência brasileira contemporânea. Curitiba: Juruá, 2012,

p. 39.

324 SLAWINSKI, Célia Barbosa Abreu. Contornos dogmáticos e eficácia da boa-fé objetiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 191.

Portanto, a garantia da ampla defesa deve ser compreendida como defesa necessária, e não ilimitada; a garantia do contraditório deve ser entendida como garantia de participação efetiva no processo, e não apenas no seu aspecto formal; e, a garantia do devido processo legal deve remeter à lealdade e à justiça, equivalendo ao “devido processo justo”.

A boa-fé objetiva é, portanto, uma norma cogente, de ordem pública, que atua “independentemente da vontade dos interessados e mesmo contrariando tais vontades, que são impotentes (irrelevantes) para impedir a sua incidência, a qual é, assim, inexorável”325.

Dessarte, a boa-fé objetiva constitui uma metanorma, que orienta a aplicação correta e leal de outras normas processuais, com o fito de alcançar a justiça no caso concreto, por vezes, otimizando e, em outras, limitando a aplicação das garantias constitucionais.

Por isso, deve-se ter cuidado na aplicação concreta dos direitos constitucionais, de modo que não sejam utilizadas de forma desmedida, ao ponto de afrontar o dever de lealdade e de boa-fé, pois, como já afirmado, as garantias constitucionais não são absolutas e não podem servir de “armaduras para legitimar condutas que afrontem a boa-fé objetiva dos sujeitos processuais”326.

Parafraseando Cândido Rangel Dinamarco, a boa-fé objetiva busca no processo civil “satisfazer o senso do justo e do razoável [...] Ousar sem açodamento de quem quer afrontar, inovar sem desprezar os grandes pilares do sistema”327.

Nesse diapasão, vale mencionar importante decisão do STF, em que versa claramente da necessidade do processo civil contemporâneo observar a boa-fé objetiva, in litteris: “[...] A máxima do fair trial é uma das faces do devido processo legal positivada na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais

325 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil: parte geral. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, v. I, p. 122.

326 SANTOS, Leide Maria Gonçalves. Boa-fé objetiva no processo civil: teoria dos modelos

de Miguel Reale aplicada à jurisprudência brasileira contemporânea. Curitiba: Juruá, 2012,

p. 44.

327 DINAMARCO, Cândido Rangel. A nova era do processo civil. 2. Ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 31.

e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e da lealdade dos sujeitos que dele participam [...]”328.

Em suma, o princípio da boa-fé objetiva deve ser realizado, de forma harmônica, com os demais princípios constitucionais, na relação jurídica processual.

Consequentemente, a teoria do abuso do processo, que deriva da aplicação da boa-fé objetiva no processo, também deve estar em harmonia com as garantias constitucionais, devendo o intérprete do direito analisar detidamente as peculiaridades do caso concreto a fim de adequar o processo à realidade social presente.

Nesse diapasão, as garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do acesso à justiça, dentre outras, devem ser aplicadas conforme previsto pelo constituinte e pelo legislador ordinário, ou melhor, sem desvio de finalidade, pois não podem ser invocadas como pretexto à má-fé e à deslealdade. Desse modo, extrai-se que as garantias constitucionais estão limitadas pela boa-fé objetiva.

Em outras palavras, a aplicação dessas garantias constitucionais no processo possuem limites na CF e no próprio CPC,329 uma vez que não pode ser efetivada com fins diversos daqueles previstos pelo sistema, sob pena de se cometer abuso processual.

Em contrapartida, não se pode afirmar, a priori, que a repressão ao abuso processual (decorrência do respeito à boa-fé objetiva) deve prevalecer

328

“O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência do fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais. A máxima do fair trial é uma das faces do devido processo legal positivada na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição voltado para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu pleno funcionamento, da boa-fé e da lealdade dos sujeitos que dele participam, condição indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos jurisdicionais e administrativos. Nesse sentido, tal princípio possui âmbito de proteção alargado, que exige o fair trail não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os sujeitos, instituições e órgãos, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente, funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à justiça. [...].” (STF, 2ª T., RE 464.963-2/GO, Rel. Min. Gilmar Mendes, un., j. 14/02/2006, DJ 30.06.2006).

329 Dinamarco cita como limites processuais naturais às garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do acesso à justiça os prazos prescricionais, as condições da ação, as regras sobre competência e os pressupostos processuais (DINAMARCO, Cândido Rangel.

sobre a aplicação das garantias constitucionais, pois o caso concreto que determinará a melhor forma de conciliação entre a teoria do abuso do processo e o respeito às garantias previstas na Constituição. Assim, a aplicação da boa- fé objetiva imprescinde da análise do contexto social em que o processo se encontra inserido.

Na lição de Helena Abdo, a teoria do abuso do processo pode conviver perfeitamente com tais garantias constitucionais e com outros direitos fundamentais, sem que se possa falar em incompatibilidade330.

Neste sentido, tem se pronunciado a jurisprudência pátria: o STJ tem reconhecido que deve se dar proteção às garantias constitucionais, desde que não se cometa abuso331.

Em síntese, não se pode aplicar o princípio da boa-fé de forma irrestrita no processo e, assim, repreender autoritariamente o abuso no processo, prejudicando o exercício regular das demais garantias constitucionais pelos sujeitos processuais, bem como não se pode utilizar dessas prerrogativas constitucionais de forma distorcida e contrária à finalidade do processo e da jurisdição: deve haver uma compatibilização entre a boa-fé objetiva e os demais princípios constitucionais, conforme as circunstâncias do caso concreto.

Dessarte, o juiz tem o poder-dever de analisar, com razoabilidade, as reais circunstâncias do caso concreto, a fim de perquirir se houve abuso no uso das garantias constitucionais - o que enseja a aplicação de sanções - ou se essas prerrogativas foram usadas de modo legítimo e leal pelas partes, ou seja, conforme o princípio da boa-fé.

Conclui-se, portanto, que a boa-fé objetiva é uma manifestação do

fair trial, que, de seu turno, é corolário do devido processo legal, no sentido de

que promove uma comportamento leal, correto e equânime de todo o aparato jurisdicional, com o fito de se obter a pacificação social por meio de um processo justo. Ademais, a boa-fé objetiva representa também um limite moral ao exercício das garantias constitucionais processuais, pois serve de norte

330 ABDO, Helena Najjar. O Abuso do Processo. São Paulo: RT, 2007, p. 169.

331 “Processual Civil. Recurso procrastinatório. Multa. O recurso é direito da parte, constitucionalmente referendado. O abuso do exercício é ilegal. Aplica-se multa. A reiteração atrai a mesma sanção. Ademais, vedado o recebimento de qualquer petição, sem o comprovante do pagamento das sanções aplicadas” (STJ, Corte Especial, AgRg em EDiv 38273-MT, rel. Min. Luiz Vicente Cernichiaro, j. 18.12.1998, v.u., DJ 29.03.1999).

para a aplicação delas, haja vista que tais valores não são absolutos e, por conseguinte, devem respeitar as outras garantias constitucionais também aplicáveis em determinado caso concreto.

3.8. Reflexos da boa-fé objetiva no Novo Código de Processo Civil