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Dever processual de cumprir as decisões judiciais

3. A BOA-FÉ OBJETIVA NO PROCESSO CIVIL BRASILEIRO

3.2. Fundamento legal da boa-fé objetiva no CPC

3.2.5. Dever processual de cumprir as decisões judiciais

O último inciso do art. 14 foi acrescentado pela Lei 10.358/2001 e preceitua que os sujeitos processuais devem “cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”.

168 Ratifica-se aqui, mais uma vez, a importância da cooperação de todos os sujeitos do processo para o alcance de uma decisão justa no diploma processual civil pátrio.

169 Corrobora com essa posição a atividade judicial mais diretiva e engajada presente no processo civil contemporâneo, que, informado pelo formalismo-valorativo, tem o ativismo judicial como algo irreversível (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Poderes do juiz e visão

Segundo José Roberto dos Santos Bedaque, a segunda parte do inciso engloba a primeira, tendo em vista que “Os provimentos judiciais de natureza cognitiva podem ser meramente declaratórios, condenatórios, constitutivos, mandamentais e executivos lato sensu. Não criar embaraços à efetivação de qualquer deles compreende o dever de cumprir com exatidão os mandamentais.”170, posição com a qual esta autora concorda.

O que se extrai, em suma, do inciso V do art. 14 é que as partes devem colaborar com o juiz no sentido de fazer valer suas decisões, pois o Brasil adota o modelo cooperativo do processo, o que vai ser ainda mais evidenciado no NCPC171.

Por fim, o desrespeito ao dever contido no inciso V do art. 14 do CPC constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, e não hipótese de litigância de má-fé (CPC, art. 17) ou de ato atentatório à dignidade da justiça (CPC, art. 600), consoante previsão do parágrafo único do art. 14172.

Ademais, a sanção aplicada, no caso de descumprimento desse dever, é a imposição de multa, que, se não for paga, será inscrita em dívida ativa da União ou do Estado. Essa sanção processual demonstra claramente que a jurisdição é uma atividade estatal e pública, devendo, assim, todos colaborarem para a tutela efetiva e uniforme do direito por meio do processo.

Por fim, ressalte-se que esse rol do art. 14 é meramente exemplificativo, pois as hipóteses de boa-fé objetiva não se limitam apenas às proposições legais previstas nesse dispositivo, tendo em vista a elasticidade de seu conteúdo173, que permite sua adaptação, pelo intérprete, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.

170 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado. São Paulo: Atlas, 2004, p. 85.

171 Sobre o pro

cesso cooperativo, ver item “2.4.”; e, sobre as mudanças do NCPC, ver item “3.8.”.

172 Parágrafo único do art. 14 do CPC: “Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui

ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais,

civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado” (grifo meu).

173 Discorreu-se sobre a flexibilidade do conteúdo da boa-fé objetiva nos capítulos anteriores, especialmente no item “2.2.” supra.

Logo, a boa-fé objetiva não se sujeita a confinamentos legais estanques. Pelo contrário, por consistir em um princípio constitucional174, a boa-fé objetiva espraia-se por todo o ordenamento jurídico pátrio, ainda que implicitamente, o que possibilita que ela seja invocada por qualquer sujeito processual, ainda que não se encontre configurada uma das hipóteses legais acima elucidadas.

Além disso, fora as hipóteses do art. 14 do CPC, a boa-fé pode ser encontrada, a contrario sensu, em diversos dispositivos legais, nos quais o legislador pátrio catalogou expressamente hipóteses referentes às deslealdades processuais que implicam ilícitos processuais175 (Cita-se como exemplos: o art. 15, que proíbe o emprego de expressões injuriosas pelas partes e seus procuradores no processo; o art. 17, que elenca as hipóteses de litigância de má-fé; o art. 161, que coíbe que se lance nos autos cotas marginais ou interlineares; o art. 340, que colaciona deveres das partes relativos à colaboração com o andamento do processo, em complemento ao art. 14; art. 416, §1°, que versa sobre o dever das partes de tratar as testemunhas com urbanidade; art. 600, que enumera os atos atentatórios à dignidade da justiça).

Diante desse quadro, alguns doutrinadores, como Brunela Vicenzi176, entendem que nem o princípio da lealdade, nem o da boa-fé, tampouco o da veracidade, estão sendo diretamente aplicados ao processo, pois dependem da caracterização da litigância de má-fé e dos atos atentatórios à dignidade da justiça, o que, entretanto, não pode prevalecer, sob pena de constituírem princípios sem conteúdo prático e, portanto, inúteis.

Não se pode, portanto, afirmar que o princípio da boa-fé depende da caracterização da litigância de má-fé ou dos atos atentatórios à dignidade da justiça. Primeiro, porque esses ilícitos processuais constituem apenas algumas das formas de infração à boa-fé objetiva; segundo, porque a boa-fé constitui

174 Sobre a natureza jurídica da boa-fé objetiva,

ver item “2.2.” supra.

175 Cabe aqui registrar a distinção entre ilícitos processuais abusivos e não-abusivos feita por Fredie Didier Jr. Segundo este autor, o ilícito abusivo possui aparência de licitude e decorre do desbordamento de posições jurídicas legítimas, como a litigância de má-fé, o ato atentatório à dignidade da justiça e ao exercício da jurisdição. Já os ilícitos processuais não-abusivos prescindem de uma interpretação cuidadosa pelo julgador, pois é facilmente perceptível sua iliceidade. (DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil, Teoria geral do Processo

e processo de conhecimento, v.1. Salvador: Iuspodium, 2007).

um conceito genérico e aberto, que, ao contrário de lhe tirar eficácia, visa abranger o máximo de casos possíveis, no afã de que o processo cumpra o seu desiderato maior, que é o de lograr a justiça no caso decidendo.

Enfim, é impossível o legislador delimitar aprioristicamente todas as condutas que devem estar de acordo com a boa-fé objetiva, pois o seu conteúdo é aberto e, por conseguinte, dinâmico, devendo o julgador amoldar a lei ao caso concreto, de modo a respeitar a ratio legis do art. 14, qual seja: o dever de todos os sujeitos do processo agirem de acordo com a boa-fé objetiva dentro da relação jurídica processual.