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2.3 A Ordem Econômica e o desenvolvimento científico e tecnológico

2.3.2 O abuso do poder econômico por meio dos direitos de propriedade intelectual

O desenvolvimento científico e tecnológico, transformado em direitos de propriedade industrial, intelectual ou de tecnologia, pode ser utilizado diretamente como meio de infração à Ordem Econômica, dada a íntima ligação entre a exploração exacerbada de propriedade industrial, intelectual e tecnologia e a posição dominante de mercado. Seria, neste caso, o abuso da característica ínsita da inovação, qual seja, a de criar certa ruptura no equilíbrio de mercado.

A importância da propriedade industrial e intelectual na dinâmica de mercado (através das mencionadas rupturas criativas) e na manutenção da livre concorrência é inquestionável, tornando o disposto no §4º do artigo 173 da CF uma regra fundamental para a estabilidade da Ordem Econômica. O abuso do poder econômico afigura-se como prática excepcional àquela conduta desejada dos agentes, muitas das vezes alcançado (o abuso) através da exploração indevida de questões vinculada ao desenvolvimento científico e tecnológico. Disso decorre a importância do mencionado §4, ao afirmar que, “a lei reprimirá o abuso do poder econômico

que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.”

A repressão ao abuso do poder econômico é medida imperativa para a saúde de todo o sistema social. A dominação de mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros são apenas os gêneros básicos de atividades reprováveis dos agentes econômicos, cujas diversas espécies encontram-se arroladas na legislação infraconstitucional, especialmente na Lei nº 12.529 de 30 de novembro de 2011, que reestruturou, recentemente, o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. O artigo 36 de referida Lei menciona:

Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:

I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;

II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e

IV - exercer de forma abusiva posição dominante. ...

§3º. As seguintes condutas, além de outras, na medida em que configurem hipótese prevista no caput deste artigo e seus incisos, caracterizam infração da ordem econômica:

...

V - impedir o acesso de concorrente às fontes de insumo, matérias-primas, equipamentos ou tecnologia, bem como, aos canais de distribuição;

...

VIII - regular mercados de bens ou serviços, estabelecendo acordos para limitar ou controlar a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico, a produção de bens ou prestação de serviços, ou para dificultar investimentos destinados à produção de bens ou serviços ou à sua distribuição;

...

XIV - açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia;

...

XIX - exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, tecnologia ou marca.

Verifica-se que o ato de “(...) açambarcar ou impedir a exploração de direitos de propriedade industrial ou intelectual ou de tecnologia” e o de “(...) exercer ou explorar abusivamente direitos de propriedade industrial, intelectual, de tecnologia ou marca”, nos termos dos incisos XIV e XIX do §3º do art. 36 da Lei 12.529/2011, constituem-se infrações da Ordem Econômica, além dos atos que visem controlar de qualquer forma a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico.

Pode-se imaginar uma série de práticas nefastas ao bom funcionamento do mercado obtidas através do uso de tecnologia, afigurando-se os direitos intelectuais, industriais ou de tecnologia como instrumentos de possível prática ilegal de abuso do poder econômico. A prática de impedir o acesso de concorrentes à tecnologia é um exemplo cabal desta configuração da tecnologia enquanto bem particular apreendido do conhecimento humano do inventor. Assim também, em relação ao controle inadvertido da pesquisa e do desenvolvimento tecnológico, na vertente de que o livre exercício das atividades inventivas é salutar para o desenvolvimento em geral do país, não cabendo à iniciativa privada o controle dos aspectos relevantes da própria pesquisa.

Além disso, as práticas de açambarcar ou impedir a livre exploração da propriedade industrial, intelectual ou de tecnologia, ou o abuso no exercício deste direito, demonstram que a detenção da titularidade de tais direitos configura-se como elemento determinante na prática comercial e no posicionamento da empresa no mercado, dada a importância da tecnologia nos

dias atuais, podendo o exercício destes direitos ser abusivo. Inclusive, é justamente por esta ampla possibilidade de exercício abusivo de direito que a própria Lei 9.279/1996, que regula a propriedade industrial no país, estabeleceu a possibilidade de licença compulsória de patentes, nos termos do artigo 68 e seguintes, que diz:

Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico, comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou judicial.

§ 1º Ensejam, igualmente, licença compulsória:

I - a não exploração do objeto da patente no território brasileiro por falta de fabricação ou fabricação incompleta do produto, ou, ainda, a falta de uso integral do processo patenteado, ressalvados os casos de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação; ou

II - a comercialização que não satisfizer às necessidades do mercado.

§ 2º A licença só poderá ser requerida por pessoa com legítimo interesse e que tenha capacidade técnica e econômica para realizar a exploração eficiente do objeto da patente, que deverá destinar-se, predominantemente, ao mercado interno, extinguindo-se nesse caso a excepcionalidade prevista no inciso I do parágrafo anterior.

§ 3º No caso de a licença compulsória ser concedida em razão de abuso de poder econômico, ao licenciado, que propõe fabricação local, será garantido um prazo, limitado ao estabelecido no art. 74, para proceder à importação do objeto da licença, desde que tenha sido colocado no mercado diretamente pelo titular ou com o seu consentimento.

...

Art. 70. A licença compulsória será ainda concedida quando, cumulativamente, se verificarem as seguintes hipóteses:

I - ficar caracterizada situação de dependência de uma patente em relação à outra; II - o objeto de a patente dependente constituir substancial progresso técnico em relação à patente anterior; e

III - o titular não realizar acordo com o titular da patente dependente para exploração da patente anterior.

Logo, o exercício dos direitos protegidos, pelas leis aplicáveis de acordo com a natureza jurídica do bem tutelado, deve ser pautado pelos demais dispositivos legais e, em especial, pelos princípios constitucionais já referidos, sempre com vistas ao alcance dos objetivos fundamentais e de sorte a reprimir quaisquer abusos perpetrados em razão de direito de propriedade industrial.

Neste sentido já me manifestei em outra oportunidade, em conjunto com Juliana Ferreira Antunes Duarte, quando asseveramos que,

(...) a interpretação dos atos dos agentes econômicos sob a ótica das infrações à ordem econômica previstas no artigo 36 da Lei 12.529/2011 deverá ser realizada a partir da concretização de todos os princípios da ordem econômica, ainda que não listados no artigo 1º desta lei em comento. O parágrafo 4º do artigo 173 da Constituição Federal de 1988 direciona expressamente que a ‘lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.’ A redação conferida a este parágrafo do artigo 173, inserido na topografia do Título VII (Da Ordem Econômica

e Financeira), no Capítulo I (Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica), demonstra claramente a intenção do legislador de se vincular a repressão ao abuso do poder econômico como papel do Estado na perspectiva da redação do caput do mesmo dispositivo, que limita a intervenção do Estado na exploração direta da atividade econômica, mas imediatamente antes da redação do caput do artigo 174, que prevê o Estado como agente normativo e regulador da própria atividade econômica. Este último citado papel – regulador – exige a atuação direta do Estado na efetivação de todos os princípios da ordem econômica. 181

Em complementação, diga-se que o mercado interno é integrante do patrimônio nacional nos termos do artigo 219 da CF/88, e que será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, o que será apreciado, em pormenores, no subcapítulo seguinte. Conclui- se que a Ordem Econômica na CF/88 é juridicamente estruturada para permitir o alcance dos objetivos da República, sem se descuidar da proteção dos direitos individuais e sociais, sempre na perspectiva de fornecer a todos uma existência digna com justiça social. A visão histórica dos institutos da propriedade privada e da livre iniciativa, bem assim, o princípio da legalidade, permite a conclusão de que, nos dias da hoje, não cabe uma análise do ser humano como ente individual, na exata proporção de que a função social da propriedade é consagrada constitucionalmente e a livre concorrência não pode ser estribo para a busca de dominação de mercado e a apuração de lucros arbitrários, o que, com frequência, se pode alcançar pela exploração indevida do conhecimento científico e tecnológico consubstanciado em direitos de propriedade industrial, intelectual ou de tecnologia.

Com tais fundamentos, entende-se que a interpretação constitucional dos dispositivos que regem a Ordem Econômica há de ser feita para permitir, como instrumento de justiça social, a construção de uma sociedade justa, livre e solidária que promova o bem de todos, restando o papel do desenvolvimento – e na sua espécie, o desenvolvimento científico e tecnológico – fundamental para a concretização destes objetivos, sem se esquecer que há direitos e garantias fundamentais que se correlacionam com o desenvolvimento científico e tecnológico e que devem ser amplamente prestigiados, em especial por força do §1º do artigo 5º da CF/88, que prevê a aplicação imediata de tais dispositivos, os quais serão analisados a seguir.

                                                                                                                         

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SILVA, Thiago de Carvalho e Silva e; DUARTE, Juliana Ferreira Antunes. O novo sistema brasileiro de defesa da concorrência e a proteção ao meio ambiente pela via do jus-humanismo normativo. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3368, 20 set. 2012. Disponível em: <HTTP://jus.com.br/revista/texto/22650> . Acesso em: 01 out. 2012.  

2.3.3 Os direitos e garantias fundamentais relacionadas ao desenvolvimento científico e