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a acção da Irmandade de Santa Cecília como reflexo das condições do músico lisboeta

No documento Um movimento musical FINALt (páginas 39-47)

A muito antiga admissão em Portugal de talentos estrangeiros, bem longe de produzir os preciozos effeitos da propagação das luzes, parece obter um resultado retroactivo: de onde provém uma tão avessa marcha? Será do Governo, ou de um sentimento natural aos

Genios Portuguezes? O Governo [...] escassos momentos tem para providenciar [...] os melhoramentos que urgem [...]. A segunda cauza, tem seu maior fundamento na invejóza intriga que a presen- ça de um sábio estrangeiro promove em algumas classes, d’artistas ou litteratos: Estes, quase sempre divididos, se coalição desde logo contra o intruso, e só visão a suffocar ou abatter seu talento, quan- do surpassa os que elles possuião.

(O oraculo, 14 de Setembro de 1826) Nos documentos de arquivo e nas fontes jornalísticas da época, e em particular nos anúncios de concertos, é dada frequentemente uma ênfase especial à nacionalidade portuguesa dos elementos de volta em volta men- cionados. As próprias indicações do governo referentes ao aluguer do Teatro de S. Carlos em 1822 indicam explicitamente a exigência de se preferirem empresários portugueses, enquanto que em 1825 são os próprios músicos da orquestra do teatro italiano a requerer a D. João VI que seja sempre dada preferência aos músicos nacionais no momento da contratação dos instru- mentistas; facto este que se reflecte de imediato no plano apresentado por Marrare, no qual o empresário declara que em condições iguais preferirá sempre elementos nacionais entre “os empregados de qualquer classe que sejam ocupados no referido theatro”.1 Como se verá na segunda parte deste

livro, mesmo após a afirmação definitiva do liberalismo esta exigência

1 V. ESPOSITO, “Lisbona 1822...” cit., p. 49 e segs., assim como VIEIRA, op. cit., vol. I,

p. 342. O plano de Marrare e o requerimento dos músicos da orquestra conservam-se por sua vez respectivamente em P-Lan, MR, l. 1223, p. 49 e l. 333, fol. 59.

continuará a ser frequentemente enfatizada pelos músicos lisboetas, e especialmente pelos instrumentistas da orquestra do teatro italiano. Se tal elemento por si só não parece particularmente estranho, integrando-se de facto na típica retórica nacionalista do século XIX comum a uma boa parte da Europa, não deixa contudo de adquirir um significado especial quando é visto no particular contexto lisboeta; tal contexto era de facto caracterizado, desde os finais do século XVIII, pela presença, para além de numerosos e por vezes prestigiosos músicos estrangeiros ligados ao serviço da Real Câmara, dos diversos elementos das companhias italianas que se sucediam no principal teatro da cidade e que, no centro das atenções da opinião públi- ca, gozavam de uma posição de privilégio sem paralelo na cidade. Não sur- preende assim que a partir da Revolução de 20 se registe também uma inten- sificação da acção desenvolvida pela principal organização de músicos da capital, a Irmandade de Santa Cecília, para além da defesa e socorro dos seus membros necessitados, a fim de exercer também um controle monopolístico mais eficaz sobre o exercício da actividade musical na cidade.2

A acção desta confraria, sob o modelo de instituições análogas italianas, traduzia-se essencialmente em fazer respeitar com o maior rigor a obrigação de a ela pertencer, imposta por decreto régio desde 1760, a quem quer que pretendesse exercer qualquer tipo de actividade musical lucrativa na capital. Essa obrigação permitia à Irmandade financiar-se através da imposição de uma taxa, o famoso “tostão da Santa”, que os confrades tinham de pagar por qualquer função musical realizada, tanto sacra como profana, função essa que, obviamente, só podiam efectuar se possuíssem uma “patente de direc- tor” que a própria Irmandade concedia.3

2 VIEIRA, op. cit., vol. I, p. 68 e segs., para onde remetemos pelo que se refere a

informações de carácter geral relativas à Irmandade de Santa Cecília. É talvezinteres- sante notar que os dois temas recorrentes a partir dos quais se parece desenvolver a acção da confraria dos músicos nestes anos, dependência dos estrangeiros e proteccio- nismo pelo que se refere aos próprios membros, reflectem temáticas que se observam a nível geral da sociedade portuguesa da época; encontramo-las, por exemplo, nas discus- sões de natureza económica de que se ocupam as Cortes em 1821-22, onde emerge a necessidade de estabelecer medidas destinadas à protecção do mercado interno e à emancipação da dependência económica em relação à Inglaterra (cf. Miriam Halpern PEREIRA, Política e economia: Portugal nos séc. XIX e XX, Lisboa, Livros Horizonte, 1979, em particular o capítulo “Sobre a adequação dos conceitos de Antigo Regime e Capitalismo – Portugal de Oitocentos”, pp. 9-15).

3 VIEIRA, op. cit., vol. I, p. 72. Em relação aos modelos italianos da Irmandade de Santa

Cecília, parece evidente que estes se podem procurar no âmbito do Estado Pontifício, em cujo território, entre tantas outras, se destacaram, e apresentam particulares analogias con a corporação lisboeta, a Accademia Filarmonica de Bolonha – uma corporação de músicos profissionais fundada em 1666 com a finalidade de salvaguardar

Além disso, a seguir à revolução assistimos a uma primeira tentativa da confraria de estender também o próprio controle à actividade teatral, que até ali lhe era essencialmente alheia, tentando entrar nela pela única via possível, ou seja a da orquestra, visto que esta era composta na sua maior parte por músicos com residência estável na cidade, prenunciando assim o que será uma tentativa mais eficaz concretizada nos anos 40 com a instituição da Associação Música 24 de Junho. Na reunião de 8 de Fevereiro de 1821 estabeleceu-se de facto que no rol das diversas funções que determinavam o pagamento do “tostão” entrassem também as récitas teatrais e que o papel do primeiro violino, na prática o chefe hierárquico da orquestra, fosse equipara- do ao de director de função. Os próprios dois primeiros violinos do Teatro de S. Carlos e do Teatro da Rua dos Condes, respectivamente Caetano Jordani e José Pinto Palma, no papel igualmente de “Segundo Thesoureiro” e de “Segundo Assistente da Meza da Irmandade”, parecem ter-se encarregado desta interpretação, fornecendo ao mesmo tempo, graças ao seu prestígio, um exemplo eficaz para todos os outros músicos. É o que podemos deduzir do termo redigido naquela ocasião, que conclui:

elles sobreditos primeiros Rebecas [José Pinto Palma e Caetano Jordani] se obrigavão a pagar de cada huma das Recitas dos ditos Theatros hum testão desde a sua abertura deste referido anno, assim como de todas as funções profanas que houvessem de fazer, ou dirigir; no que se obrigavão d’aqui em diante, e assignavão-se: e bem assim supplicavão á Meza que em observancia do Compromisso nesta parte chamassem aquelles Irmãos o prestígio e o profissionalismo dos seus membros, que exerceu durante muitos anos o controle da actividade musical nas igrejas de Bolonha – assim como a “Congregazione dei musici sotto l’invocazione di Santa Cecilia” de Roma, depois Accademia di Santa Cecilia, instituição ainda hoje activa que teve durante muito tempo “o poder de controle e de interdição no mercado da música sacra” (“il potere di controllo e di interdizione sul mercato della musica sacra”): cf. Laura CIANCIO, “Accademie, Congregazioni, Società musicali a Roma tra rivoluzione e restaurazione (1803-1856)”, in Quaderni

dell’archivio delle società filarmoniche italiane, 2, Trento, 1999, pp. 7-80: 7. A este propósito remetemos o leitor para a panorâmica geral traçada por Alberto BASSO,

“Accademie, conservatori, sale da concerto”, in Jean-Jacques NATTIEZ (direcção),

Enciclopedia della musica, 5 vols., Turim, G. Einaudi, 2001-2005, vol. IV (2004), pp. 479-497 (em particular pp. 487-488); sobre as instituições individuais v. Arrigo QUATTROCCHI, Storia dell’Accademia Filarmonica romana, [Roma], Presidenza del

Consiglio dei Ministri, [1991], e Osvaldo GAMBASSI, L’Accademia filarmonica di

Bologna: fondazione, statuti e aggregazioni, Florença, Olschki, 1992. Un aviso de um concerto em 1846 no Teatro de D. Maria do violinista Cesare Rossi sublinha que o músico era “membro das academias de Santa Cecilia de Roma, da de Bolonha” (cf. A

Revolução de Setembro de 20 de Julho de 1846), parecendo assim confirmar o prestígio que ainda tinham estas duas instituições italianas no meio lisboeta.

que fossem de principios Rabecas nos mais Theatros, e aquelles q_ diri- gissem funções profanas, para que como elles se obrigassem, e assignas- sem, o compromisso d’aquellas obrigações, a fim de se augmentarem os recursos dos nossos Irmãos pobres, e enfermos, de cuja antiga omissão tantos prejuizos tem resultado a nossa Irmandade [...].4

Fig. 5: “Termo de obrigação para os Primeiros Rebecas dos Theatros pagarem hum tostão pra cada Recita nos ditos, e funções profanas”

(Arquivo da Irmandade de S. Cecília de Lisboa)

Na mais rígida aplicação neste período da acção de controle da Irman- dade podemos ler talvez, não só uma medida proteccionista destinada a contrabalançar os privilégios de que gozavam tradicionalmente os músicos

4 Cf. Arquivo da Irmandade de S. Cecília de Lisboa (daqui em diante P-Lisc), 2º livro de

Termos (1766-1851), fol. 95, “Termo de obrigação para os Primeiros Rebecas dos Theatros pagarem hum tostão pra cada Recita nos ditos, e funções profanas” (re- produzido na Fig. 5). Os primeiros violinos dos principais teatros da cidade, na época o Teatro de S. Carlos e o Teatro da Rua dos Condes, encontravam-se de qualquer modo entre os mais prestigiados músicos locais e exerciam um papel central na mesma Ir- mandade, tendo presumivelmente adquirido já há algum tempo a qualificação de “di- rectores das funções”.

estrangeiros, e em especial os cantores italianos, mas também o resultado do desenvolvimento de uma consciência da precariedade da condição de músico num contexto que no início dos anos 20 estava ainda em larga medida dependente de factores relacionados com o patronato aristocrático e religioso.5

Em geral, o músico nesta terra é tido em pouca conta: ninguém se preo- cupa com ele, ninguém se dá com ele ou lhe demonstra as cortesias mais correntes, excepto quando precisa dele e na medida em que precisa dele. Os mesmos que hoje o convidam, que hoje o adulam, a fim que ele vá animar a sua reunião, já não o conhecem logo que ele acabou de o fazer.6

Mesmo sem querer tomar demasiado à letra esta descrição de 1816, não é difícil imaginar que muitos dos músicos que tinham permanecido na cidade – passando pela experiência das invasões napoleónicas e da ausência da corte, dos contínuos períodos de encerramento dos teatros por causa da difícil conjuntura política e dos habituais problemas de gestão, que viam agora também ameaçada, com a instauração de uma revolução de caracterís- ticas inicialmente anticlericais, a fonte de rendimento representada pelo serviço musical de igreja – experimentassem na própria pele a precariedade da sua condição profissional.

A quarenta anos de distância do famoso “pontapé sacrílego” recebido por Mozart, com o qual “‘o músico moderno’ entra de uma vez na condição da livre profissão artística”,7 penso que num dos primeiros actos da Irmanda-

de de S. Cecília logo após a revolução se pode ler, para além da defesa corporativa, também uma tomada de posição contra o estatuto social arcaico do músico, obrigado a “servir” qualquer capricho do seu empregador. É o que parecem pretender os directores da Assembleia Nacional por ocasião do

5 A importância e a ramificação na vida musical de Lisboa dos diversos tipos de

“patrocínio musical” individual e colectivo, para além do da corte, no período entre 1771 e 1832, foram sublinhadas sobretudo por Joseph SCHERPEREEL, “Patrocínio e ‘Perfor-

mance Practice’ em Lisboa e proximidades na segunda metade do século XVIII e começo do século XIX”, Revista Portuguesa de Musicologia, 9, Lisboa, 1999, pp. 37-52.

6 Assim se exprimia o autor da crónica da Allgemeine musikalische Zeitung de 1816

(v. Manuel Carlos de BRITO – David CRANMER, Crónicas da vida musical portuguesa

na primeira metade do século XIX, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, p. 40, onde a pp. 27-28, se coloca também a hipótese de que os seus juízos severos fossem ditados por particulares motivos pessoais).

7 É Pestelli quem relaciona a “sacrilega pedata” recebida por Mozart com o facto de que

o “‘il musicista moderno’ entra d’un tratto nella condizione della libera professione artística”: cf. Giorgio PESTELLI, “L’età di Mozart e Beethoven”, in Storia della musica

(a cura della Società Italiana di Musicologia), 12 vols., Turim, EDT, 1991, vol. VII, p. 151.

baile de encerramento do Carnaval de 1821, exigindo que a música conti- nuasse ainda depois da uma e meia da manhã (ou seja uma hora e meia após o início da Quaresma e do habitual horário de encerramento da Assembleia) e reagindo à recusa dos músicos com insultos, injúrias e até com ameaças de defenestrações. A resposta enérgica da confraria foi a de proibir aos seus inscritos, e deste modo a todos os músicos profissionais da cidade – profes- sores “de uma Arte tão nobre, tão estimada e tão necessaria” – de exercerem a qualquer título a sua actividade naquela Assembleia, recomendando ao mesmo tempo aos próprios sócios responsáveis por todas as funções análo- gas de carácter profano de vigiarem pelo “bom, decente e honroso trata- mento dos Professores seus Irmãos” e pelo “fiel e exacto desempenho de suas convenções, e irreprehensivel conducta”.8 Se neste caso a intervenção

de algumas personagens influentes conseguiu fazer revogar esta decisão drástica, a Irmandade de S. Cecília continuou no entanto a intensificar a sua função de controle sobre as actividades musicais durante todo o período aqui examinado, mesmo se com algumas dificuldades, como demonstra o facto de em 1827 o músico cego José Joaquim Lodi ter feito publicar o seguinte anúncio num jornal local:

Tendo-se espalhado o falso boato, que José Joaquim Lodi, não pode dar licções de pianno, como do aviso que mandou inserir no Portuguez n. 78, por não ter a honra de pertencer à nobre irmandade de Sancta Cecilia; declara que não lhe é necessario pertencer áquella irmandade para dar licções, por quanto, é uma arte liberal; por isso previne o publico, que se quizer utilizar do seu prestimo, que continua a dar licções de piano e canto, em casas particulares, ou em casa, rua de S. João da Praça nº 29 1º andar.9

8 Cf. VIEIRA, op. cit., vol. I, pp. 330-331, para onde se remete pelo que se refere a toda

esta questão e onde se sublinha que a acção da Irmandade de S. Cecília pretendia também salvaguardar a honorabilidade da classe, chamando à pedra os sócios que não tinham um comportamento digno assim como defendendo os que eram injustamente vexados por estranhos. Mesmo admitindo um certo grau de exagero no relato deste caso, fornecido pela própria confraria que já no passado tinha tido conflitos com aquela associação, parece-me mesmo assim que se pode tomar como verdadeira a questão de fundo levantada por esta tomada de posição. Podemos identificar a Assembleia Nacional com a que era conhecida como Assembleia Portuguesa e cujos estatutos reformados em 1822 previam de facto o encerramento da casa à meia-noite (cf. Novos Estatutos da

Assemblea Portugueza, M. P. Lacerda, Lisboa, 1822).

9 O portuguez, 19 de Maio de 1827. O anúncio anterior deste músico tinha aparecido

neste mesmo periódico a 1 de Fevereiro de 1827. Como se verá na segunda parte deste livro, a contradição entre liberalismo e conservação de monopólios estará no centro das ásperas polémicas musicais que caracterizam o reinado de D. Maria II.

O facto de o mesmo músico continuar nos anos seguintes a anunciar a venda das suas composições nas principais lojas de música da cidade deixa em aberto a hipótese de que a acção da Irmandade de S. Cecília não terá sido eficaz neste caso, ou de que talvez o músico tenha posteriormente cedido e se tenha inscrito na confraria.10 O que Vieira recorda é que a Irmandade de

S. Cecília retomou vigor e prestígio com a acção de João Alberto Rodrigues Costa, o qual, tendo-se tornado cerca de 1824 secretário da mesa e em 1828 tesoureiro, conseguiu dar também novo impulso às celebrações em honra da santa padroeira, passando sistematicamente a multar os sócios que nela não participavam, e conseguindo até obter, pelo menos formalmente e apesar de pertencer ele próprio à maçonaria liberal, a protecção de D. Miguel.11

É no entanto legítimo colocar a hipótese de que o tirano não deveria ser particularmente sensível aos problemas do mundo musical, visto que não foi possível, sob o seu regime, fazer aprovar a desde há tempos desejada refor- ma do compromisso da irmandade, e que a própria confraria sentiu a neces- sidade de fazer publicar na Gazeta de Lisboa, ainda em 1831, um anúncio onde se esclarecia

10 Vejam-se por exemplo os anúncios publicados no Diario do Governo de 29 de Agosto

de 1829 e de 14 de Janeiro de 1830.

11 Cf. VIEIRA, op. cit., vol. I, p. 332 e segs.; antes da eleição de João Alberto uma crónica

da Allgemeine musikalische Zeitung de 1823 parece indicar a existência de uma certa turbulência na instituição: “Ainda reinam por toda a parte intrigas e favoritismos, inclusive na Irmandade de Santa Cecília” (cf. BRITO-CRANMER, op. cit., p. 56). João

Alberto Rodrigues Costa, como se verá na segunda parte deste livro, tornar-se-á o lider da classe dos músicos lisboetas e o principal inspirador das suas iniciativas no reinado de D. Maria II. Um documento de 1825, no entanto, revela já uma forte oposição por parte de pelo menos um membro da mesma confraria, um tal José Miguel, que acusa os componentes da mesa da Irmandade de S. Cecília de serem “fogo de egoísmo, e monopólios, por isso que apoiam a peito discoberto os monopolistas, tornando-se odiosos ao resto dos Irmãos” e chega a propor até a extinção da mesma confraria, preanunciando assim algumas das críticas que serão endereçadas aos líderes da classe dos músicos lisoetas no reinado de D. Maria II (cf. P-Lisc, expediente enviado de 18 de Novembro de 1825); aproveito esta ocasião para agradecer à Direcção do Montepio Filarmónico de Lisboa, na pessoa do Senhor Luciano Franco, a autorização para consultar este arquivo de imprescindível importância para o estudo da vida musical portuguesa, assim como para prestar homenagem à memória do Professor Joseph Scherpereel, que o deu a conhecer à comunidade científica e com quem partilhei muitas horas de estudo no Montepio Filarmónico. Finalmente, à Dr.ª Ana Paula Tudela, que teve a amabilidade de me disponibilizar este documento e que nos últimos tempos se dedica, com generosidade, a preservar e tornar acessível aos investigadores este im- portante património documental.

que, se acha em pleno vigor o Compromisso da Irmandade, e o Decreto de 15 de novembro de 1760, que prohibe expressamente a todos os que não forem Irmãos da dita Confraria exercitar a arte da Musica lucrativa- mente, debaixo da pena imposta no mesmo Decreto; e que ElRei Nosso Senhor Se dignára de a tomar na Sua perpetua e Real protecção por Seu Regio Alvará de 27 de Abril de 1831.12

Numa conjuntura política que não favorecia as condições necessárias à solução estrutural dos problemas e um desenvolvimento em sentido moderno da vida musical lisboeta, a atitude proteccionista em defesa dos interesse dos profissionais nacionais parece ser assim a reacção quase natural dos músicos locais num contexto como era o lisboeta, dominado pela ópera italiana – em cujo âmbito as saídas profissionais mais prestigiadas eram quase fisiologicamente apanágio de artistas estrangeiros – e no qual faltavam algumas das alternativas representadas noutras capitais pelo prestígio do ensino conservatorial ou pela possibilidade de exercer com regularidade e proveito a actividade concertística.

No entanto, o agravamento da conjuntura política tornará impossível tam- bém esta acção protecionista, e, de acordo com os dados até hoje disponíveis, não se encontra mais alguma referência à confraria dos músicos na imprensa do tempo, o que parece confirmar a afirmação, contida numa memória escrita em 1848 pelo mesmo João Alberto, de que “em 1832 esta Irmandade de facto dei- xou d’existir” voltando a ser “instalada em 3 de Outubro de 1838”.13 Todavia, é

curioso que Vieira não fale da cessação da actividade da Irmandade de S. Cecília enquanto os jornais lisboetas, entre a Guerra Civil iniciada em 1828 e os pri- meiros anos do reinado de D. Maria II, se referem a algumas ocasiões musicais em que participaram os “Professores” da capital, termo com o qual normalmente se indicavam, no contexto lisboeta, os próprios membros da confraria. O que é certo, como se verá na segunda parte deste livro, é que, em 1834, aquando da primeira polémica entre membros da orquestra e o empresário do Teatro de S. Carlos, os músicos apelavam ainda a uma norma do compromisso da Irman-

No documento Um movimento musical FINALt (páginas 39-47)