• Nenhum resultado encontrado

e um contexto musical antiquado: o “milagre” da Sociedade Filarmónica

No documento Um movimento musical FINALt (páginas 89-103)

Taes são as causas da decadencia das Artes e Sciencias, e taes os motivos que determinão os homens de talento, ou a reprimir o vôo de suas luzes, ou a transplantal-las em Paizes estrangeiros, onde encontrarão uma exaltação que Portugal nega, mesmo a seus grandes homens! Diga-o nosso inimitavel Bomtempo, o qual depois de fazer as delicias de Paris e de Londres, e encher a Europa dos altos elogios que a seu ainda maior talento, rendêrão á porfiria os escriptores d’aquéllas duas grandes Nações; veio para a sua Patria viver em constante lutta com a maligna e mordás inveja, do inintelligivel rebanho de Santa Cecilia.

(O oraculo, 14 de Setembro de 1826) Se não há dúvida que o degenerar da situação política foi a causa determinante do fim da Sociedade Filarmónica de Bomtempo, não se deve também deixar de notar o que, já em 1826, insinuava um periódico nas suas considerações sobre a decadência da arte, em que a referência à luta de Bomtempo contra o “inintelligivel rebanho de Santa Cecilia” remete clara- mente para a confraria dos músicos e para a sua acção já referida nos capítulos anteriores. O artigo, que surge num momento no qual, após o período de luto pela morte de D. João VI, tinha sido autorizada a retoma da actividade dos teatros mas não a da sociedade de Bomtempo, parece querer insinuar que nisso terá tido algum papel a inveja que crescia no seio da irmandade.

Mesmo que não existam elementos seguros para confirmar tal hipótese, parece evidente que a Sociedade Filarmónica escapava àquele que era um dos principais objectivos da irmandade, ou seja o controle das actividades musicais em Lisboa, assim como parece evidente que o carácter empreende- dor e autónomo de Bomtempo, reforçado pelo seu prestígio pessoal, deveria estar nos antípodas da concepção proteccionista e monopolista expressa pela confraria e em geral pelos músicos lisboetas da época. Nesse sentido deve

Fig. 11: Henrique José Silva, Retrato de João Domingos

Bomtempo (Museu da Música de Lisboa)

dizer-se que Bomtempo, após o regresso à pátria, não parece ter mantido particulares relações com a Irmandade de Santa Cecília, em cujo seio tinha contudo iniciado a sua carreira de músico. Um dos poucos contactos teve-o em 1821, quando foram necessários alguns músicos para uma função desti- nada a comemorar o juramento da constituição na Igreja de S. Domingos e uma ordem régia assim os requereram:

A Regencia do Reyno em Nome de El Rey o S.r D. João Sexto determina que V. Ex.a como Juiz da Irmandade de S.ta Cecilia mande [ficar?] ás Ordens de João Domingos Bom tempo os Muzicos que elle pedir e julgar necessarios para o bom dezempenho d’execução da Missa Solemne, cuja direção lhe foi hoje encarregada pela mesma Regencia do Reino. Deus Guarde V.a Ex.a Portaria da Regencia em 10 de Março de 1821. Joaquim Pedro Gomes d’Oliveira Sr. Conde de Lumiares.1

1 P-Lisc, 2º livro do termo... cit., fól. 96v, “Registo d’hum Avizo da Regencia do Reyno

em data de 10 de Anno de 1821 aos Ill.mo Ex.mo Provedor da Vossa Irmandade”. A direcção da função, para a qual Bomtempo tinha escrito a música, tinha-lhe sido

Na documentação da confraria que pude consultar não se encontram referências a Bomtempo até 1838, quando a 19 de Julho, sob a presidência do seu amigo e protector barão de Quintela, a quem fora entretanto conce- dido o título de conde de Farrobo, encontramos a assinatura do pianista entre os membros presentes na reunião na qual se ratificou a lei de reforma da Irmandade de Santa Cecília;2 quanto ao resto, durante o reinado de D. Maria

II, como se sabe, o músico não irá participar no grande fermento de iniciati- vas levadas a cabo pela classe dos músicos lisboetas, dedicando-se quase exclusivamente à sua actividade no conservatório.

Fig. 12: Assinatura de J. D. Bomtempo no 2º livro do termo da Irmandade de S. Cecília de Lisboa em 19 de Junho de 1838

(Arquivo da Irmandade de S. Cecília de Lisboa)

A distância existente entre Bomtempo e as lógicas antiquadas da con- gregação dos músicos é também acompanhada pelo seu total alheamento em relação à que, mesmo após a criação do Conservatório de Lisboa, continuava a ser a principal e mais prestigiosa instituição musical da capital, o Teatro de S. Carlos.

Tem os Italianos garganta mais bem formada para cantar que os Portu- guezes? onde ha’ mais gosto em Muzica que aqui? que tocadores melho- res nos tem vindo de fòra, que assombrem os bons instrumentistas Portu- guezes? que falta pois?3

perguntava-se com veemência e indignação um leitor de O liberal em 1820 a propósito do regresso à pátria de Bomtempo, confirmando a dicotomia exis- tente entre companhias italianas e músicos locais, e oferecendo-nos indi- rectamente uma imagem particularmente eficaz do papel completamente subalterno reservado à maioria dos músicos locais, ao descrevê-los como “muzicos de pandegas, e baptizados” por falta de “premio, incentivo, e hum certo ar de independencia”.4 Ora, justamente nesta carta em que se afirma

confiada formalmente pela Regência, como consta do anúncio publicado no Diario do

Governo e referido em VIEIRA, op. cit., vol. I, pp. 132-133.

2 P-Lisc, 2º livro do termo... cit., fól. 110 e 111. 3 O liberal de 8 de Dezembro de 1820.

também, numa perspectiva anti-italiana, a necessidade de uma escola de música, o autor não hesita em augurar que um “talento tão acreditado” como Bomtempo seja posto “a’ testa do Theatro Italiano”, ou seja naquele que era entendido evidentemente como o papel musical mais importante e prestigio- so da cidade. Sabe-se ao contrário que durante toda a sua vida Bomtempo se manteve sempre afastado do Teatro de S. Carlos, do qual, no dizer de Vieira, nunca se tentou aproximar por uma decidida orientação estilística sintetizada numa “inclinação para Haydn e affastamento das fòrmas italianas”.5

Se esta inclinação parece evidente em muita da sua produção, diga-se no entanto que o músico, que se tinha já dedicado à composição de diversas obras vocais e tinha até tentado compor uma verdadeira ópera, não aparenta ser tão radical nas suas escolhas estético-profissionais, nas quais parecem de qualquer modo ter também um certo peso motivos de conveniência prática. Por outras palavras, a distância existente entre o estilo das suas principais composições e o gosto rossiniano dominante em Lisboa, confirmado, além de pelo próprio Bomtempo, também por alguns testemunhos da época, poderá não ter sido o único motivo de ele se ter mantido quase totalmente alheio ao S. Carlos.6

Bomtempo parece também ter tentado mais tarde atenuar, pelo menos em parte, essa distância, procurando por exemplo adaptar o repertório da Sociedade Filarmónica ao gosto dominante, ou deixando emergir traços de ascendência operática em obras como a sua Segunda sinfonia, justamente posterior ao seu regresso definitivo à pátria, ou ainda prestando-se a dirigir em 1840 um conjunto de “66 instrumentistas e 46 cantores”, com a partici- pação extraordinária como solistas dos principais cantores do S. Carlos, na execução de uma Missa e um Te Deum de Marcos Portugal, um músico que parece incarnar tradicionalmente uma posição social e escolhas estéticas decididamente nos antípodas das de Bomtempo.7

Neste sentido o próprio “humoristico trecho” de uma carta do pianista e compositor escrita de Londres em 1820 a propósito do sucesso de Rossini,

utilizada por Vieira para “corroborar quanto elle era adverso á musica do

5 VIEIRA, op. cit., vol. I, p. 122.

6 Sobre a recepção da música de Bomtempo após o seu regresso definitivo à pátria v.

ESPOSITO, “Lisbona 1822...” cit., pp. 38-40.

7 A notícia desta função dirigida por Bomtempo pode-se inferir de um documento

proveniente de uma colecção privada reproduzido in ALVARENGA, op. cit., p. 151. Já no programa de um concerto em Paris em 1804 no qual ele tinha tomado parte, uma cantora tinha interpretado uma ária de Marcos Portugal, compositor que figura também no repertório da Sociedade Filarmónica: cf. Joseph SCHERPEREEL, João Domingos

Bomtempo, musicien portugais (XIXe siècle), Paris, Fundaç. Calouste Gulbenkian – Centro Cult. Português, 1982, p. 43-44, assim como BRITO-CRANMER, op. cit., p. 25.

Fig. 13: João Domingos Bomtempo, A paz da Europa, cantata a quatro

vózes, com côros, e acompanhamênto de orchéstra ó forte piano obrigado,

London, Clementi & Ca, [ca 1815] (Biblioteca Nacional de Portugal)

theatro italiano”, não deixa de parecer confirmar no seu fecho um certo pragmatismo lúcido:

A experiencia que tenho do mundo, me tem ensinado que tudo é segundo a moda; por exemplo, ha occasiões em que é moda não ter juizo, não ter talento, não ser homen de bem, e finalmente, o mau ser bom e o bom ser mau. Mas o peior, meu amigo, é que não vejo esperanças de melhoria, e portanto, il faut prende le monde comme il est ...8

Fig. 14: João Domingos Bomtempo, 2.de Symphonie [1822] (Biblioteca Nacional de Portugal)

Pode-se deste modo colocar a hipótese de que o que o levou a manter-se afastado do Teatro de S. Carlos não foi somente uma orientação estilística específica, mas também a lúcida consideração de que nem mesmo os suces- sos prestigiosos recolhidos nos mais importantes centros musicais da época e os apoios influentes com que podia contar entre a melhor sociedade portu- guesa seriam garantias suficientes para lhe poder consentir, além de preser- var a própria independência e de se subtrair aos abusos dos empresários, manter um papel de primeiríssimo plano na vida musical de Lisboa: no interior do teatro de ópera, como parece confirmar a difícil convivência entre João Evangelista Pereira da Costa e Saverio Mercadante a que já nos referi- mos, Bomtempo teria facilmente corrido o risco de ser relegado para uma posição subalterna em relação aos compositores e prime donne das várias companhias italianas.

Se tal hipótese poderá explicar porque é que o músico não terá sentido nenhum desejo de se envolver no campo do melodrama, os mecanismos de funcionamento da exibição em concerto no contexto lisboeta da época ajudam-nos a compreender porque é que ele, ao contrário por exemplo de um colega com uma carreira até então sob muitos aspectos análoga como Canongia, nunca terá sequer utilizado o palco do S. Carlos para aí realizar as suas próprias exibições, sobre as quais, de resto, se tinha baseado até aí o seu sucesso no estrangeiro.

Não lhe faltando evidentes dotes de iniciativa e contactos com as personalidades mais influentes da época, poder-lhe-ão ter faltado por outro lado aquelas motivações que levavam um artista exterior ao S. Carlos a arcar com o pesado encargo da organização de um concerto. De facto, não parece ter tido necessidade de fazer mais publicidade a si próprio dado que, uma vez regressado definitivamente à pátria, ascendeu rapidamente à posição de “músico da revolução” a quem eram confiadas todas as principais celebra- ções oficiais do período; nem tampouco tinha necessidade de dar passos no sentido de obter um cargo nas principais instituições musicais existentes na cidade, das que estava à partida excluído pela sua própria qualidade de pianista e provavelmente também pela sua intolerância em submeter-se à rígida hierarquia que presidia à classe dos músicos locais. Além disso, mesmo que quiséssemos considerar de um modo optimista a realização de academias no Teatro de S. Carlos como uma possível fonte de rendimento, tal fonte, dado o carácter irregular e fortuito dos concertos na Lisboa da época, nem sequer teria constituído de qualquer modo nenhum tipo de segurança económica.

Como demonstram os extractos de cartas suas citados por Vieira, o pro- blema de tornar a própria actividade “lucrativa” tinha sido uma das preocu- pações de Bomtempo desde o início da sua actividade de concertista, o que, além de ser legitimamente compreensível, não parece ser de nenhum modo um traço redutor da sua personalidade artística, mas antes pelo contrário um indi- cador da modernidade da sua maneira de interpretar o próprio papel de músico como o de um livre empresário de si próprio, segundo um modelo exempli- ficado de modo incisivo e com sucesso pelo seu amigo Clementi em Londres.9

Um papel que se traduzia frequentemente para o músico europeu na difícil tarefa de dever conciliar a própria liberdade com as expectativas e as exigências de gosto do novo público, em especial do público de concerto, mas que, no caso de Bomtempo, assumia traços ainda mais problemáticos no choque com um ambiente e uma organização da vida musical substancial- mente atrasados e ligados a estruturas e concepções ainda firmemente enrai- zadas no Antigo Regime.

9 Ibid., vol. I, pp. 127-128 (“E como me acharei eu atroado com tal barulho? Sem fazer

nada de lucrativo [...]”), p. 130 (“Até agora não appareci em publico, nem vejo disposições para o poder fazer com vantagem pecunaria [...] e o meu genio que, como sabe, é incansavel, me fará augmentar o peculio para em favoraveis tempos tirar o partido que espero”). Scherpereel (SCHERPEREEL, João Domingos Bomtempo... cit.,

p. 22) já tinha sublinhado o precoce “robusto sentido das realidades, que o caracterizará durante toda a vida, e que ele tinha ‘orquestrado’ bem a sua publicidade” [“robuste sens des réalités, qui le caractérisera sa vie durant, et qu’il avait bien ‘orchestré’ sa publicité”].

A situação deste músico, no seu regresso definitivo à pátria, aparece de facto como extremamente anómala: de um lado, e graças também à capaci- dade de utilizar os modernos meios publicitários, ele é sem dúvida o mais importante músico de Lisboa (o seu nome é acompanhado a maior parte das vezes pelo adjectivo “celebre” nas diversas referências jornalísticas), e pode reivindicar uma posição de grande força, contando com todos os necessários apoios na melhor sociedade local; do outro, é essencialmente um desempre- gado porque, para além da sua provável presença em diversos salões lisboetas (para exibições e talvez lições privadas) e nas celebrações oficiais, não ocupa nenhum dos cargos existentes nas principais instituições musicais, não tendo por conseguinte nenhuma fonte de rendimento segura e regular.10

É evidente que mais de um ano após o seu regresso a Lisboa Bomtempo devia estar consciente do problema, assim como o estariam também os seus amigos bem colocados, os quais a certa altura parecem ter tentado resolvê-lo com um acto oficial como seria a criação do conservatório a que já nos referimos; é verosímil que Bomtempo colocasse a hipótese de partir de novo para o estrangeiro, visto que as Cortes, rejeitando o plano provavelmente apresentado por António Rego para o estabelecimento de uma escola de música, salvaram somente a parte relativa à “designação para Mestre de Muzica no ensino de Pianno, e Contra-ponto, ao habil Professor Portuguez, J. D. Bom tempo, a quem a Commissão das Artes arbitra huma somma por indemnisação, do que sacrifica em favor da Patria, de lucros que poderia grangear em paizes estrangeiros”.11 Pelo resto da acta da sessão em que foi

encomendada ao próprio Bomtempo a elaboração de um novo plano sabemos que o tema da remuneração do músico tinha estado no centro da discussão:

a Commissão de Fazenda coincide nesta parte com a das Artes, e he de parecer que o Governo lhe mande organizar hum novo plano para hum estabelecimento de Muzica vocal, e instrumental para as pessoas de hum e outro sexo, e que logo que esteja prompto volte ás Cortes para ser approvado, vencendo o ordenado de 600% [sic] 00 réis e 400% [sic] 00

10 A anomalia da situação de Bomtempo foi já assinalada por mim em Francesco

ESPOSITO,”‘Liszt al rovescio’: la difficile relazione del pianismo portoghese di metà Ottocento con i modelli stranieri”, Quaderni dell’Istituto Liszt, 11, Milão, Rugginenti, 2011, pp. 93-149: 97. São poucos os dados relativos à actividade de Bomtempo no circuito privado; entre eles contam-se as referências que lhe faz o marquês da Fronteira (cf. nota 12 do capítulo “‘Noites divertidas’: a difusão da actividade musico- -teatral amadora ...”) o qual recorda ainda que “as partidas musicais” que se realizavam em sua casa tinham frequentemente como protagonistas Bomtempo e Angelelli (cf. Memórias do Marquês de Fronteira...cit., parte II, p. 288).

réis de gratificação logo que entrar em effectivo serviço. Este parecer foi approvado menos em quanto á declaração de ordenado, apesar de haver o Sr. Barroso fallado sobre o objecto, sendo de opinião que tal ordenado se declarasse, a fim de que o Professor soubesse com que devia contar, para se propor a fazer o plano, que lhe fosse incumbido.12

Como já se disse, se bem que Bomtempo tivesse apresentado rapida- mente o projecto do futuro Conservatório, a deterioração da situação política não permitiu a concretização desta iniciativa nem que lhe fosse deste modo atribuído um cargo público de prestígio. Pela mesma altura, entretanto, tomava forma uma sua outra iniciativa destinada a tornar-se nos anos seguintes a sua principal ocasião de exercer a actividade de concertista e de compositor, assim como de obter uma fonte de rendimento. De facto, no fim de Agosto de 1822 começaram a aparecer no Diário do Governo os anúncios dos concertos da Sociedade Filarmónica, que, institucionalizando uma prática musical já amplamente difundida a nível informal, deveria permitir ao músico poder contar com um rendimento fixo e manter ao mesmo tempo o próprio papel de líder na vida músico-mundana de Lisboa.

Não há dúvida que a Sociedade Filarmónica tinha como objectivo prio- ritário o de permitir a Bomtempo “poder subsistir honestamente”, coisa que só se verificou em parte nos momentos de maior tranquilidade na vida da associação, tanto assim que o próprio Bomtempo, num requerimento que nunca foi provavelmente entregue a D. Miguel, ao retraçar o seu currículo recorda a esse propósito que a sociedade

até poderia vir a ser um Instituto de maior utilidade, se o Supplicante, que por elle se desvella, estivesse seguro da sua subsistencia, sem depender de fadigas assiduas e quasi sempre incompativeis com aquellas que alargan- do a esphera dos seus conhecimentos, seriam sobretudo proveitosas ao desenvolvimento dos grandes genios que Portugal não deixa de possuir.13

A tese tradicional, introduzida por Vieira, segundo a qual o modelo em que Bomtempo se inspirou foi o da Philarmonic Society de Londres, cuja fundação tinha presenciado, é contradita pela finalidade de lucro da socie- dade lisboeta, e além disso, como já foi sublinhado, pela presença nela de

12 Ibidem.

13 VIEIRA, op. cit., vol. I, p. 141, onde se encontram também outras referências à

sociedade como fonte de subsistência do músico nos documentos transcritos a p. 137 (“permissão para admittir em sua casa, por meio de assignaturas, para do seu produto poder subsistir honestamente”), p. 135 (“o producto das assignaturas das pessoas que alli concorrem, possa suprir a sua subsistencia, e de sua numerosa familia”).

músicos amadores assim como pela sua menor especialização e severidade em termos de repertório.14 Acrescente-se a isso a estrutura hierarquizada da

sociedade lisboeta que, apesar de contar com a colaboração dos principais músicos locais, é na prática de propriedade e da exclusiva responsabilidade do “empresário Bomtempo” 15, o que a diferencia significativamente do carác-

ter mais propriamente associativo da de Londres, com a qual por outro lado partilha a organização segundo o sistema de subscrição. Partilhando também o nome com aquela, dela se afasta profundamente no tipo de eventos realizados, ao retomar e institucionalizar uma prática musical anteriormente presente no circuito privado local, em especial na série de concertos privados com periodicidade regular já anteriormente referidos, conciliando-a com as exigências de sociabilidade centrada em torno da música e com a difusão do amadorismo musical que já havíamos mencionado como elementos extrema- mente visíveis, em particular, justamente na Lisboa pós-revolucionária.

É necessário notar além disso que o período em que surge o primeiro anúncio da Sociedade Filarmónica no Diario do Governo, o da sua institu- cionalização portanto, é marcado pela ausência de ópera no Teatro de S. Carlos entre Março e Dezembro de 1822, durante a passagem da gerência de Mayer à de Hilberath-Bruni; período que parece ter sido propício à emergência de outras formas de exibição musical, uma vez que, como já se disse, registamos uma intensificação de concertos no teatro entre Março e Abril e que Canongia, evidentemente animado pelo sucesso também econó- mico obtido com o seu primeiro concerto daquele ano, tentou obter uma “Licença indefinida para Academias successivas”, confrontando-se rapida- mente, no entanto, com o parecer desfavorável do director extraordinário do teatro.16 Neste contexto Bomtempo parece compreender inteligentemente

que, se o momento é favorável para levar a cabo a sua iniciativa, esta deve

No documento Um movimento musical FINALt (páginas 89-103)