• Nenhum resultado encontrado

2. O MST E A LUTA PELA TERRA

2.3. Os Acampamentos de trabalhadores sem-terra: uma versão de

2.3.1. O Acampamento Garavelo II

Disposto espacialmente na margem de rodovia não-asfáltica que liga o município de Pureza a João Câmara, o acampamento Garavelo II, composto de dezesseis barracos posicionados de forma linear, apresenta alguns dos aspectos acima abordados.

Impressiona-nos, inicialmente, o amontoado de palha, lona, madeira e barro que configura o lugar. No entanto, um olhar aproximado nos permite perceber como a combinação desses materiais forma um espaço de moradia.

A origem do acampamento, segundo seus moradores, é remetida a 17 de setembro de 1999. A primeira ocupação da fazenda Garavelo II, organizada e articulada pelo MST, contou com cerca de 60 famílias oriundas tanto do município de Pureza quanto de regiões vizinhas e se deu dentro das terras da propriedade.

Algumas famílias já estavam vindo de uma tentativa de ocupação anterior, o acampamento Maceió, no mesmo município. Contudo, a propriedade-objeto de reivindicação, segundo relataram os trabalhadores, foi considerada produtiva, inviabilizando a sua ocupação.

Efetuada a ocupação, os militantes iniciaram um trabalho de organização do acampamento por meio de comissões de trabalho. Esses grupos formados por trabalhadores se encarregaram de atuar nas comissões de segurança, saúde, educação, finanças e disciplina.

Esse modelo de organização do acampamento baseado em comissões (que podem se tornar núcleos) reflete, no âmbito local do acampamento, a formatação geral do MST. Trata-se de tentar duplicar, num micro-espaço, uma estrutura organizativa, setorizada, de caráter nacionalmente sedimentado.

A partir de então, uma série de atividades passou a ser planejada e executada tanto no espaço do acampamento, quanto externamente, no sentido de abertura de um processo de negociação com o INCRA/RN.

Nessas atividades, os trabalhadores passaram a ter contatos mais aproximados com os discursos e práticas do MST que se estabeleceram com o início da ocupação, passando pela estruturação do acampamento até o convívio continuado com reuniões, assembléias, participação em cursos de formação em outras cidades, viagens a outras áreas de acampamento e assentamentos e, ainda, à capital do Estado para a realização de marchas de protesto e mobilizações para reivindicações do movimento.

O fator desencadeador do primeiro despejo, conforme relembraram alguns trabalhadores, foi o arrendamento25 da propriedade a um grande produtor de cana-de- açúcar e criador de gado. Tal fato levou o proprietário da fazenda pedir judicialmente a reintegração de posse. Concedida a reintegração, os trabalhadores afirmaram que lhes foi dado pelos policiais um prazo de uma hora para desocupar a área e recolher seus pertences. Logo em seguida tiveram os barracos incendiados.

De acordo com A. (trabalhador acampado, 54 anos) DIÁLOGO I

A.: Foi o primeiro despejo. (J26.: O senhor tava aqui?) Tava. (J.: Como foi?) Nós tava aqui, nós tava até... nós tava dentro do mato caçando uma rolinha, um preá, quando nós demos fé aí, encostou três ônibus aqui, né? Aí, de lá os menino gritaram, né? Os menino gritaram. Um bocado de gente, foi um bocado acolá, para as terra acolá, foram chamar a gente. E quando cheguemo aqui tava vermelho aqui de polícia, aí: -“Vamo botar fogo, vamo botar fogo nas barraca tudinho”. Aí, nós saímos dentro, tiramos os troços que tinha que tirar, e eles botaram fogo.

Com o despejo, alguns trabalhadores desistiram de continuar no local, os demais se instalaram nas margens da rodovia, ao lado da propriedade. No prazo de uma semana posterior ao despejo, novamente os trabalhadores ocuparam a fazenda, que também resultou em despejo, dessa vez negociado com o delegado do município.

25 Arrendamento: forma de contrato na qual o arrendatário paga uma quantia em dinheiro ou em produto

para fazer uso da propriedade de outro, por tempo determinado em acordo.

Diante desse episódio, podemos ver como a ocupação de terras improdutivas abre uma discussão em torno da questão agrária, acirra relações de força no interior da sociedade, forças essas que podem ou não culminar em seu uso extremo, como a institucionalização da repressão, fato não raro nos fenômenos de ocupações de terra. Por outro lado, esses fenômenos podem demonstrar uma capacidade organizativa dos grupos populares, gerando nos indivíduos um acirramento de suas reivindicações, fomentando estratégias de resistência:

DIÁLOGO I (continuação)

J.: O que foi que o senhor achou disso?

A.: Eu achei uma tristeza grande. Uma tristeza grande. Que a gente já não tem onde morar, mora numa lona preta dessa, né? Aí, então chegar a polícia e bota fogo, né? Quer dizer que fiquemos desamparado, né? Quer dizer que fiquemos no meio da rodagem, né? Como de fato fiquemo aí no meio da rodagem, e trouxeram mais um carro pra soltar nós aonde quisesse. “-Não, ninguém vai sair daqui não, que nós já tamo aqui na luta, vamo, vamo continuar na nossa luta," né? Aí, então, nós cheguemo: “-Vamo fazer as barraca de novo", aí, fizemo aqui. Outra vez, “-Vamo botar pra dentro?," "-Vamo". Botemo, aí, veio o gerente da fazenda e disse: “Vou fazer um pedido a vocês:” -Você bote pro lado de fora pra não vim mais... não botarem mais fogo. Aí, vocês tando aqui do lado de fora, aí, então, vocês tão com a fazenda ocupada “. Aí, nós matutemo, né? Quando foi o outro dia, chegou um delegado, né? Aí pediu pra gente tirar. Aí, combinemo tudinho: “-Vamo tirar?” “ -Vamos”. Aí, botemo as barraca pra aqui fora, até hoje tá aqui. Completando já mais de dois anos que nós tamo aqui, nesse sufoco, debaixo dessa alta tensão, né? Sujeito a morrer todo dia, né? (A., 54 anos).

Pelo exposto, podemos ver como o processo de luta, no contexto do acampamento investigado, promoveu uma experiência de resistência, de continuidade na área a despeito das inúmeras adversidades vivenciadas no cotidiano.

Por terem efetuado a segunda ocupação na propriedade, os trabalhadores do Acampamento Garavelo II foram atingidos de um modo especial pela resposta do Estado ao crescente número de ocupações de terras no Brasil. Essa resposta veio por meio de medida provisória que posterga a vistoria de áreas improdutivas por dois anos,

no caso dessa área ser “invadida”. Por isso, aguardam novo prazo do INCRA/RN, para uma vistoria da propriedade.

Diante do novo fato, os trabalhadores e os militantes do MST decidiram por permanecer acampados nas margens da rodovia,27 do lado de fora da fazenda, onde moram atualmente dezesseis famílias que totalizam 41 pessoas.

A disposição dos barracos obedece uma ordem que aproxima as famílias detentoras de laços de parentesco (irmãos, sobrinhos, filhos casados), quanto à região de origem e tempo de acampamento. Este varia entre seu início (dois anos e sete meses) até duas semanas anteriores à última visita do pesquisador ao local.

27 Ocupar as margens de rodovias ou uma propriedade vizinha para requerer a desapropriação da outra

sem serem afetados pelo referido decreto-lei têm sido algumas estratégias do MST para continuar com suas ocupações. Essa informação foi comunicada pessoalmente por um militante do movimento durante uma mobilização que fizeram em frente à sede do INCRA/RN em setembro de 2001.

As crianças e adolescentes freqüentam uma escola próxima do acampamento. São deslocadas por meio de um transporte escolar, com o qual passaram a contar no início deste ano. Houve uma turma de alfabetização de jovens e adultos ligados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), que tinha como monitor um trabalhador do acampamento.

As pessoas informaram que não contam com apoio formal de alguma entidade ou instituição, a não ser o próprio MST. Relataram “ajudas” pontuais e emergenciais da Prefeitura municipal de Pureza. Essas ajudas são dadas em forma de remédios, dinheiro, lonas28 para as barracas, transporte para algumas mobilizações, alimentos, gás para “fazer fogo” e lamparinas, e a instalação de uma espécie de chafariz, de onde os acampados recolhem água para uso diverso: tomar banho, beber, cozinhar, lavar roupas.

Essa relação dos trabalhadores com o poder local, segundo comentaram, é criticada pelo MST. Enquanto as lideranças e alguns militantes os acusam de “pedir esmolas”, os trabalhadores contra-argumentam a partir do estado de carência que se encontram, da falta de oportunidade de terra e de trabalho para viver29 e de que “pedir é melhor que roubar” (A., trabalhadora acampada, 23 anos).

Tal prática de pedir ajuda à Prefeitura foi relatada numa conversa informal por um trabalhador acampado, ao afirmar que alguns trabalhadores se acostumaram a pedir dinheiro ao prefeito. Sobre o mesmo assunto, um trabalhador (A., 54 anos) confessou que procura trabalho para não estar pedindo a outros.

28 As lonas são, vez por outra, motivo de conversas entre os trabalhadores. Relembram, ordinariamente,

promessas feitas pelo prefeito municipal de doar-lhes lona. Falam em lonas “boas”, resistentes, caras. Poderíamos, dizer metaforicamente, que assumem caráter de “objeto de desejo”.

29 Essa discussão se deu na primeira visita do pesquisador ao acampamento. Eu havia marcado encontro

com o militante do MST que iria me apresentar às famílias. Como não apareceu, tive de me apresentar sozinho. Felizmente fui reconhecido por uma mulher que estava numa mobilização em Natal. Se por um lado, a ausência do militante pode ter causado algum estranhamento quanto a minha pessoa, por outro lado, permitiu que as pessoas discutissem, mais abertamente, o que se constituía num ponto de tensão entre os mesmos e o MST.

Da maneira como tal apoio se procede, somos levados a refletir o seu caráter clientelista e assistencialista, pois o mesmo não se dá nos termos de buscar formas de superação do estado atual de precariedades que os acampados enfrentam, mas de uma ação que se dá com base na resolução imediata e circunstancial dos estados de carência. Já é bastante conhecido o quanto esse modelo de assistência exercido pelos administradores locais, que vêem no voto uma gratificação por sua generosidade, emperram no avanço de problemas estruturais da nossa sociedade.

Sobre essa modalidade de assistência recai uma precariedade de serviços sociais aos quais os trabalhadores teriam direito através de políticas públicas: saúde, educação, transporte, moradia, trabalho. Esses serviços são alcançados de forma desigual e bastante incipiente pelo conjunto dos trabalhadores acampados.

Um exemplo desse não-reconhecimento do acampamento como um lugar que por si exige uma resolução, ou não é efetivamente reconhecido como espaço que clama por políticas públicas, se traduz na ausente atuação de agentes comunitários de saúde no local. Conforme relataram os trabalhadores, nunca foram visitados por este tipo de profissional.30

Dentre as atividades que garantem o sustento das famílias, destacam-se alguns programas federais nos quais algumas famílias acampadas são inscritas, tais como: a) Bolsa-escola: quatro famílias; b) Bolsa-renda: treze famílias; c) Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI): uma família; d) Programa do Leite: seis crianças de 0 a cinco anos.

30Em uma das idas do ao acampamento para realizar entrevistas, o militante que reside no local aguardava

a visita de uma “pessoa da saúde” para conversar com os acampados. Durante o tempo que fiquei lá, não apareceu tal pessoa e em outra ida ao acampamento, ao indagar se tal pessoa apareceu, responderam negativamente.

Outra fonte de renda é o trabalho alugado31 realizado em fazendas e propriedades da região. Essa modalidade de trabalho assegura, mesmo que irregularmente, uma quantia de dinheiro com o qual podem comprar mantimentos nos finais de semana na feira de Pureza.

Embora seja uma atividade predominantemente realizada pelo conjunto da população jovem e adulta masculina, algumas mulheres relataram participação no trabalho alugado. No entanto, suas atividades se destacam nos afazeres domésticos, na coleta de castanhas de caju (em período de safra) para posterior comercialização, na procura de lenha para o fogo de cozinhar e na criação de galinhas.

Encontramos alguns homens realizando atividades comumente tidas como femininas, como cozinhar, arrumar a barraca, lavar roupas e cuidar de crianças. A realização tais atividades é vista com algum estranhamento, pois insere o homem num campo de experimentações até então não vivido:

DIÁLOGO 01 (A., trabalhador acampado, 54 anos)

J.: Seu A., qual foi a principal mudança, a maior mudança que teve na vida do senhor depois que o senhor veio aqui pro acampamento?

A.: Depois que eu vim pra aqui? Não tou presente não da maior mudança. J.: O que foi que mudou na vida do senhor, o que ficou diferente?

A.: É, o que ficou diferente você sabe, é... o, é... que ficou diferente pra mim, sabe, que quando eu vivia em casa, na minha casa mesmo, n/é? era muito... pra mim era muito feliz. Aí, depois que eu vim pra aqui a dificuldade é maior, n/é? A diferença é essa, a dificuldade é maior. Eu vou trabalhar, quando eu chego em casa vou cuidar da minha bóia, n/é? Sozinho vou cuidar da minha bóia.

Foi verificado, embora de forma minoritária, em pequenas faixas de terra - tanto dentro de uma parte da propriedade-objeto de reivindicação quanto nas margens da rodovia (entre a cerca da propriedade e a rodovia) - o cultivo de produtos como feijão, milho, macaxeira e jerimum. Essa atividade incrementa a dieta alimentar dos

31Trabalho realizado em uma outra propriedade, de forma temporária, pago por meio de diária ou

trabalhadores, muito embora tenha sido motivo de tensão entre estes e o gerente da propriedade, já que não foram autorizados a usar aquele solo.

As principais questões levantadas quanto às dificuldades enfrentadas no acampamento foram: a falta de alimentos, a precária estrutura das barracas, falta de lugar para plantar. Enfrentam, ainda, riscos de atropelamento de veículos que trafegam na rodovia e de incêndio das barracas.

Segundo os trabalhadores e trabalhadoras, a falta de alimentos é um dos principais motivos de desistência do acampamento, levando as pessoas a irem buscar alternativas de vida em outros lugares.

Por estarem localizadas sob uma rede elétrica de alta tensão, os acampados foram advertidos pela COSERN do perigo que correm, caso algum dos cabos da rede venha a se romper, uma vez que os materiais das barracas são de fácil combustão. Assim, vivem em estado de alerta quanto ao risco de incêndio.32 Enquanto realizava uma entrevista, ouvimos gritos de uma mulher vindos de sua barraca, todos correram em sua direção, comentando ser um incêndio, quando na verdade, foi um susto que a mesma teve de um animal que entrou em sua barraca.

É, portanto, nesse espaço, em meio a precariedades e desafios constantes, que os trabalhadores desenvolvem formas de resistir na área ocupada que, de um lado, são orientadas e/ou coordenadas pelo MST, como é o caso da realização de campanhas, das mobilizações e ocupações de órgãos públicos para conseguir cestas básicas para as famílias acampadas e pela doação de alimentos feita pelas famílias de áreas de assentamento. Por outro lado e, a despeito do desacordo que provocam junto às

32 Em uma das entrevistas foi narrado um episódio em que uma criança, sem que fosse observada,

brincava com fogo, provocando incêndio no barraco e espalhando-se logo em dois outros. O entrevistado lembra que algumas pessoas e animais sofreram queimaduras, perderam poucos dos bens que tinham, que espingardas dispararam com o fogo. Este episódio foi narrado com bastante inclinação afetiva. De fato, o medo de fogo é comumente apontado em conversas informais pelos moradores do acampamento. Falam inclusive do medo que têm de que pessoas alheias, ao transitarem pela rodovia, possam provocar um incêndio enquanto os trabalhadores dormem.

lideranças do movimento, outras estratégias, algumas de caráter assistencialista, como visto anteriormente, são desenvolvidas pelo grupo acampado.

É, nesse contexto, ainda, que se dá uma etapa de aproximação continuada entre a militância, especialmente do Setor de Frente de Massa, e os trabalhadores e trabalhadoras do acampamento, onde se tem início um trabalho de introdução e difusão dos princípios, das regras de convivência, das normas de conduta, do espírito coletivista e das aspirações políticas do movimento. Em resumo, a busca de uma subjetivação pautada nesses elementos norteadores presentes nos discursos e práticas do MST.

É, portanto, sob essa ótica que entendemos tais práticas e discursos veiculados pela militância do MST: sua efetivação não visa, exclusivamente, um processo de adaptação a tais valores, mas um reordenamento subjetivo, já que almeja transformações de padrões culturais e envolve até mesmo aspectos inconscientes, afetivos dos trabalhadores e trabalhadoras.