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3. SOBRE A SUBJETIVIDADE

3.3. MST e Produção de Subjetividade

Ao longo de seu processo de formação e consolidação, o MST, por meio de sua modalidade de luta via ocupação, acaba possibilitando um rearranjo no regime de verdades sobre o estatuto da propriedade fundiária. Nardi (2002), apoiado em Foucault, define o regime de verdades como aquelas afirmações tomadas por verdadeiras e legítimas que servem tanto para explicar a realidade, como para justificar ações. Ademais, apresentam uma dimensão moral, em termos de destacar o que é certo e errado, desejável ou não para cada corpo social.

Assim, o MST redimensiona as relações de poder em torno da questão agrária. Em função disso, torna-se numa poderosa organização social e seu discurso adquire uma regularidade tal que passa a se tornar um influente mediador no andamento da reforma agrária.

Com vistas a garantir seu projeto de transformação social, a nossa hipótese é de que o MST investe, de maneira sistemática e institucionalizada, na produção de um sujeito articulado com os objetivos desse projeto.

Vale ressaltar que tomar o MST como um regime de subjetivação não implica em valorizar uma hierarquia que situe tal regime como decisivo ou naturalmente dado para produzir subjetividades. Guattari (2000) alerta para o caráter de transversalidade entre as instâncias que promovem subjetivação, não havendo, para tal, um vetor dominante.

O recorte por nós efetuado visa apenas uma melhor compreensão de como uma instância como o MST pode concorrer para deflagrar um processo de subjetivação, tratando-se, portanto, de uma “hierarquia intensamente contextual” (Teixiera, 2001), embora saibamos da necessidade de sua articulação com demais instâncias de subjetivação, dispostas no campo social.

No caso de nossa pesquisa, um outro eixo que surgiu como concorrente para tal subjetivação tratou-se das formas de organização das relações de trabalho na trajetória dos acampados, promovendo sua inserção na luta por terra, destacando um campo subjetivo próximo da organização camponesa, pela valorização, conforme visto anteriormente, do tripé: terra, trabalho, família.

Nosso entendimento é de que a tentativa de construção de um sujeito Sem Terra não mobiliza apenas o nível de sua consciência ou de uma mudança no plano ideológico dos trabalhadores (Bogo, 2000), mas aborda o nível de suas experiências subjetivas, tocando-as e buscando sua modificação.

Se tomarmos os elementos destacados por Bogo (2000) no que diz respeito aos traços que identificam o ser Sem Terra, como “organização política, identidade, ideologia e valores” (p. 22); “melhoramento do comportamento” e “limpeza dos vícios

que se acumularam em cada consciência” (p. 33) e uma superação da dicotomia público-privado, estamos diante de traços que não se resumem ao plano de uma racionalidade egóica (Guattari, 1986), mas implica a participação de instâncias outras (inconscientes, afetivas) que promove um redimensionamento nos modos de agir, sentir, relacionar-se, envolvendo, inclusive, aspectos de uma versão privada da subjetividade.

Assim, o que comumente é entendido na linguagem do movimento como um processo de conscientização ou formação dos trabalhadores e militantes, ao nosso ver diz respeito a algo que é mais complexo, mais arrojado na produção dessa subjetividade. É isso que visam os pensadores do movimento

A formação dos sem-terra, pois, não se dá pela assimilação de discursos, mas, fundamentalmente, pela vivência pessoal (grifo nosso) em ações de luta social, cuja força educativa costuma ser proporcional ao grau de ruptura que estabelece com padrões anteriores de existência social destes trabalhadores e destas trabalhadoras da terra, exatamente porque isto exige a elaboração de novas

sínteses culturais (grifo nosso) (Caldart apud Bogo, 2000).

Há, nas proposições do MST, para a formação do seu quadro de militantes e de sua base social, a necessidade de mudanças de ordem objetiva e também subjetiva:

É essa relação que pretendemos estabelecer com a revolução cultural, mexendo na subjetividade (grifo nosso) para ir eliminando aos poucos, junto com o desenvolvimento das forças produtivas, os desvios criados na produção da existência em todos os tempos por onde passou a história da humanidade, sempre marcada pela luta de classes. (Bogo, 2000, p. 70).

Embora o MST aborde tal empreendimento sob a ótica de uma revolução cultural (Bogo, 2000) junto aos sem-terra, sua visão de revolução e de cultura abrange

uma série de elementos discursivos, não discursivos, práticas que se encaminham, inicialmente pela reivindicação econômica até uma efetiva participação política dos trabalhadores com vistas a reverter o funcionamento social guiado pela máquina capitalista.

Conforme visto na introdução deste trabalho, essa subjetivação necessária ao funcionamento e às conquistas sócio-espaciais (Fernandes, 2000) e políticas do MST implica numa práxis coletiva, num tipo de militância que tece críticas ao modelo vigente de organização social, adotando práticas de “solidariedade, fidelidade e firmeza na luta” (Gaiger, 1994, p. 185) e incorpora suas aspirações pessoais ao projeto maior demandado por seu grupo social.

Contudo, entendemos que tal empreendimento, na esfera do MST, se dá por uma concepção de subjetividade associada com um padrão identitário, no sentido de haver um modelo subjetivo cristalizado a ser implantado. O MST aborda, então, a subjetividade pela via da Identidade. Desse modo, sua política identitária, ao mesmo tempo que busca a superação de relações de dominação fomentadas pelo capital, lança mão de estratégias que não contemplam a diversidade cultural dos trabalhadores envolvidos, estabelecendo, igualmente, relações de poder.

Para Guattari (Guattari e Rolnik, 1986), que desconfia dos traços de reificação subjetiva, a Identidade é tida como um conceito referencial, que circunscreve modos de ser, sentir e agir a um quadro de referência identificável, como que congelando esses modos, colando o indivíduo a uma etiqueta. Em oposição, destaca a singularidade como um conceito existencial, que faz alusão à maneira ímpar como nos relacionamos com os variados acontecimentos no campo da economia, política, artes, literatura, etc.

O autor destaca que as demandas dos movimentos sociais não podem se resumir, unicamente, à busca de uma referência identitária, mas de algo que envolve toda uma

engrenagem de funcionamento da sociedade. Exemplifica, por meio do feminismo, que ao tecer críticas ao modelo de “sociedade masculina, masculinizada” (Guattari e Rolnik, 1986, p. 73), esse movimento ultrapassou o plano das reivindicações de ordem profissional ou de acesso a direitos e promoveu uma forte crítica ao orquestramento de como estão postas as relações sociais pautadas por uma produção de subjetividade masculina.

Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) opõe aos traços identitários reivindicados por muitos movimentos sociais os processos transversais, que destacam as reivindicações desses grupos para além de suas demandas setoriais, gerando não só uma conexão com o conjunto maior da sociedade, como possibilitando processos de singularização. Faz uso da idéia de ‘devir’, justamente como a possibilidade que esses processos têm de manterem-se singulares ou não.

Assim, fala de um devir mulher, devir negro, devir homossexual e levanta a hipótese de que há entre esses devires “vias de passagem, vias de comunicação inconsciente” (p. 74), para além de uma justificativa cultural, racial, religiosa que explicasse a existência de tais ‘minorias’. São essas vias de passagens entre os devires que permitem uma ação dessas ‘minorias’ para além de uma ‘identidade de classe’.

Estamos no campo do que Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) nomeia de micropolítica, que visa o agenciamento desses devires, busca promover sua conexão, um apoio mútuo entre tais devires que estariam em condições de promover mutações das subjetividades para além das segregações identitárias, que se encontram legitimadas pelo modelo de funcionamento das sociedades capitalistas.

A micropolítica atua, conforme Deleuze e Guattari (1996), numa escala molecular, em que se busca destacar as minúcias, os processos singulares, as linhas de

fuga, localizados nos pequenos grupos, sem contudo, perder de vista sua co- extensividade ao campo social maior.

No entanto, Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) alerta para o fato de que esses processos singulares podem sofrer capturas, serem tomados do seu aspecto criativo para submeter-se a uma ordem vigente, àquilo que Deleuze e Guattari (1996) nomeiam de "máquina de sobrecodificação".(p. 96)

Sobre esse aspecto, Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) assinala

Há sempre algo de precário, de frágil nos processos de singularização. Eles estão sempre correndo o risco de serem recuperados, tanto por uma institucionalização, quanto por um devir grupelho. Pode acontecer, por exemplo, de um processo de singularização ter uma perspectiva ativa a nível de agenciamento e, simultaneamente, a esse mesmo nível, fechar-se em gueto (Guattari, 1986, p. 53).

Essa reflexão permite-nos abrir questionamentos que têm ligação direta com o tema de nossa pesquisa: como o MST contribui na produção de subjetividades, uma vez que esse modelo subjetivo está anteriormente circunscrito, dado a priori? Ele é facilmente incorporado pelos trabalhadores da base do movimento? Como estes atuam em face de tal modelo: pela via da reprodução, da reapropriação ou da resistência? Como esse modelo se articula com as aspirações iniciais dos trabalhadores ao se inserirem no acampamento e como ele é experimentado em seu cotidiano?

Sabemos que, na esfera do assentamento, esse modelo se materializa, em especial, na organização coletiva da produção, a partir da implantação do modelo de ‘cooperação agrícola’, que implementa uma perspectiva de trabalho coletivo, dividido em tarefas (Fernandes e Stédile, 1999), geralmente diferenciado do modelo

tradicionalmente adotado pelos trabalhadores em suas unidades de produção: a agricultura familiar.

Em um estudo realizado numa área de assentamento do MST, Bonavigo (1998) abordou a implantação do modelo de cooperação agrícola sob a perspectiva da produção de subjetividade. Percebeu que a implementação de tal modelo necessitaria de

Uma padronização evolutiva das formas de organização dos assentamentos e da vida das pessoas, o que produz uma ruptura não só com as formas anteriores de organização social e produtiva como também em relação aos modos de viver, de sentir e de pensar” (p. 7).

A autora destacou, ainda, que face ao modelo implantado pelo MST para a organização da produção no assentamento estudado, concomitantemente, surgiram práticas de resistência, brechas para a implantação de outras modalidades de produção. Isso foi tratado em termos de processos de singularização subjetiva diante de um modelo imposto.

No caso do acampamento, vimos, mediante o resgate da trajetória de vida dos participantes de nosso estudo, que a inserção dos mesmos na luta pela terra deu-se menos por aspirações de ordem ideológicas e mais por uma tentativa de resgate de uma subjetivação que vai de encontro à desterritorialização provocada pelo avanço do capital.

O acampamento se apresenta, portanto, como locus de aproximação entre o projeto dos trabalhadores que anseiam pela terra e um movimento que tenta implementar seus princípios político-ideológicos pela alteração da estrutura fundiária.

Adiante, buscaremos apontar, a partir da análise da materialização de alguns princípios organizativos do MST no cotidiano do acampamento, os desdobramentos dessa aproximação.

4. OS PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS DO MST: A BUSCA