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Produção de subjetividade em trabalhadores rurais na condição de luta pela terra no Rio Grande do Norte

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Academic year: 2017

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Programa de Pós-Graduação em Psicologia

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE EM TRABALHADORES RURAIS NA CONDIÇÃO DE LUTA PELA TERRA NO RIO GRANDE DO NORTE

Jáder Ferreira Leite

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Jáder Ferreira Leite

PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE EM TRABALHADORES RURAIS NA CONDIÇÃO DE LUTA PELA TERRA NO RIO GRANDE DO NORTE

Dissertação elaborada sob orientação da Profa. Dra. Magda Dimenstein e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Psicologia.

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação "Produção De Subjetividade Em Trabalhadores Rurais Na Condição De Luta Pela Terra no Rio Grande do Norte", elaborada por Jáder Ferreira Leite, foi considerada aprovada por todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, 05 de setembro de 2003.

BANCA EXAMINADORA

Dra. Magda Dimenstein (UFRN) __________________________

Dr. Adriano Azevedo G. de Leon (UFPB) __________________________

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Quando eu morrer, que me enterrem na Beira do chapadão Contente com minha terra Cansado de tanta guerra Crescido de coração tôo Zanza daqui Zanza pra acolá Fim de feira, periferia afora A cidade não mora mais em mim

Francisco, Serafim Vamos embora Ver o capim Ver o baobá Vamos ver a campina quando flora A piracema, rios contravim

Inho, Bel, Quim Vamos embora Quando eu morrer Cansado de guerra Morro de bem com a minha terra: Cana, caqui Inhame, abóbora Onde só vento se semeava outrora Amplidão, nação, sertão sem fim

Oh Manuel, Miguilim Vamos embora

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DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado aos homens e mulheres que constróem, entre a espera e a esperança, entre a lona e a estrada, o caminho do sonho conquistado para seus filhos, seus netos ...

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AGRADECIMENTOS

À professora Magda Dimenstein, pela maneira singular e radicalmente criadora de como construiu uma relação de orientação ausente dos dissabores da pretensa neutralidade acadêmica. Por me permitir mergulhar num mundo de idéias e experimentações do qual me encontro profundamente transformado! Enfim, pelas linhas de fuga...

À Flávia Helena, pelo extenso carinho, pela conquista de sonhos compartilhados e por me acolher, tão calorosamente, em Natal.

A Arnaldo, companheiro com quem dividi as expectativas e as alegrias deste trabalho e soube, pacientemente, suportar minhas ausências.

À Lúcia de Fátima, pelas constantes palavras de encorajamento e franca amizade construída entre discussões e passos de dança.

A Munich, Izabel e Valquíria: colegas que se tornaram amigas ao longo do curso de mestrado e foram, em muitos momentos, a doce companhia que só as sinceras amizades são capazes de dar.

À professora e amiga Rosângela Francischini, por anunciar "a novidade" através da disciplina Construção do Conhecimento em Psicologia, pelo especial acolhimento no meu estágio de Docência Assistida e por compartilhar idéias, poemas e músicas...

A Alex, pelos momentos de interlocução com as idéias deste trabalho e que me auxiliaram em sua condução.

Às alunas da disciplina de Pesquisa em Psicologia II, do semestre 2002.1, com as quais aprendi muito durante a realização do estágio de Docência Assistida.

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À CAPES, pela concessão de bolsa de estudos.

Aos meus familiares, pelas palavras de incentivo e por se fazerem presentes, mesmo ausentes.

Aos colegas de trabalho da Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social de Natal (SEMTAS), especialmente Carlinhos, Sirleide, Eny, Teresa, Edehyr, Aldenira, Gilvanice, Maria José, Maria das Dores e Naí, que, percebendo-me dividido entre o trabalho e os estudos, tornaram-se incentivadores e cúmplices desta jornada.

À Coordenação Estadual do MST do Estado do Rio Grande do Norte, especialmente as pessoas de Fátima e Alberto, e aos militantes de base Tobe e Jeová, que me acompanharam nas visitas aos acampamentos, tornando-se pessoas essenciais para o desenvolvimento do trabalho de campo.

Aos trabalhadores e trabalhadoras das áreas de acampamento Zumbi de Palmares, Boa Esperança e Maria da Paz que puderam, com seus depoimentos, enriquecer-me e sensibilizar-me profundamente.

Aos trabalhadores e trabalhadoras do Acampamento Garavelo II, por compartilharem comigo, entre refeições, dormidas e conversas, seu cotidiano de luta e de sonho.

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RESUMO...x

ABSTRACT...xi

1. INTRODUÇÃO...12

2. O MST E A LUTA PELA TERRA...29

2.1. Contextualização do surgimento do MST...29

2.1.1. As transformações no campo sob o imperativo do Capitalismo e da Ditadura militar...30

2.1.2. A inserção da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no processo de luta dos Trabalhadores do Campo...34

2.1.3. A Abertura política após a Ditadura militar...36

2.2. A Formação, Consolidação, Institucionalização e a Atuação do MST...37

2.2.1. Gestação e nascimento do MST...40

2.2.2. Territorialização e consolidação do MST...40

2.2.3. Territorialização e institucionalização do MST...44

2.3. Os Acampamentos de trabalhadores sem-terra: uma versão de luta...45

2.3.1. O Acampamento Garavelo II...47

2.3.2. Os Trabalhadores e as Trabalhadoras do Acampamento Garavelo II...56

3. SOBRE A SUBJETIVIDADE...68

3.1. Subjetividade: uma problematização no campo da Psicologia...68

3.2. Uma nova forma de abordar a Subjetividade... 73

3.3. MST e Produção de Subjetividade...83

4. OS PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS DO MST: A BUSCA PELA SUBJETIVAÇÃO...91

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4.2. A Luta de massas: rumo à grande família Sem Terra?...110

4.3. A Vinculação com a base social do movimento e a Divisão de tarefas: uma brecha para a alteridade...116

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...126

6. REFERÊNCIAS ...129

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RESUMO

Leite, Jáder Ferreira (2003). Produção de Subjetividade em Trabalhadores Rurais na Condição de Luta Pela Terra No Rio Grande Do Norte. Dissertação de mestrado (141p.). Natal, UFRN.

Este trabalho discutiu a produção de subjetividade entre trabalhadores de uma área de acampamento do Rio Grande do Norte, tomando o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) como um agente privilegiado desse processo que busca produzir um modelo subjetivo específico, através de seus princípios organizativos. Entende-se que a produção de subjetividade refere-se às condições de gestação de uma experiência subjetiva que pode transcorrer entre as formas de reprodução de modelos dominantes das relações sociais, como também de criação de espaços de ruptura que redefinem o campo social. Utilizou-se de um roteiro de entrevista semi-estruturada junto a moradores do Acampamento Garavelo II, localizado no município de Pureza, bem como observou-se as práticas cotidianas desse grupo. Os dados, analisados à luz da perspectiva metodológica das práticas discursivas (Spink e Medrado, 2000) e das práticas cotidianas (Certeau, 1996), sugerem que os trabalhadores acampados oscilam entre a reprodução e a reapropriação do modelo subjetivo proposto pelo MST e inauguram, por meio de suas práticas cotidianas, táticas que permitem resistir na área ocupada, estejam elas ou não em conformidade com as diretrizes do movimento ou do instituto da propriedade privada. Considera-se que nesse processo emergem, mesmo que precariamente, produções subjetivas singulares.

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ABSTRACT

Leite, Jáder Ferreira (2003). Production of Subjectivity in Rural Workers in their Condition of Fighting for Land in Rio Grande do Norte State. Master’s Degree Thesis. Natal, UFRN.

This work concerns the production of subjectivity among workers of a camping area in Rio Grande do Norte State, considering the Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST (Landless Workers’ Movement) to be a privileged agent of this process, which seeks to produce a specific subjective model trough its organization principles. We believe the production of subjectivity refers to gestation conditions of a subjective experience, which may occur among the forms of reproduction of social relations dominant models and, likewise, among forms of creation of rupture spaces that redefine the social field. We used a semi-structured interview guide with residents of Garavelo Camping II, which lies in the town of Pureza, and observed the daily practices of this group. The data were assessed based on the methodological perspective or discursive practices (Spink and Medrado, 2000) and on the daily practices (Certeau, 1996), and they suggest the camped workers oscillate between reproduction and “reappropriation” of the subjective model proposed by MST and inaugurate, through their daily practices, tactics that allow them to resist in the occupied area, whether they do or do not respect the policy and guidelines of the movement and the private property institute. We assume singular subjective productions emerge from this system, nevertheless barely.

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1. INTRODUÇÃO

Como trabalhadores sem-terra de uma área de acampamento do Estado do Rio Grande do Norte são afetados pelos discursos1 e práticas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em seu cotidiano?

Tomando como ponto de partida este questionamento, o nosso trabalho de pesquisa visou investigar como o MST - enquanto gestor de uma práxis coletiva, em que afirma princípios de coletividade, de organização comunitária e de contestação ao modelo hegemônico de organização da sociedade capitalista (Gaiger, 1994), contribui para produzir subjetividades junto a trabalhadores de uma área de acampamento no Estado do Rio Grande do Norte.

A noção de subjetividade, neste trabalho, não se assemelha a uma experiência de sujeito psicológico, abstrato, interiorizado, racional e estrutural (Domenèch, Tirado e Gómez, 2001), portanto em dicotomia com os processos sociais. Está referida a um modo de se situar, de sentir e de dar sentido ao mundo que não se resume a uma dimensão psicológica (Dimenstein, 2000), mas que toma o sujeito como um "agenciamento coletivo de enunciação" (Guattari e Rolnik, 1986, p. 30).

Assim, partindo de autores como Foucault (1984, 1995), Deleuze (2000), Guattari e Rolnik (1986) e Guattari (1999, 2000), deslocamos, pois, a subjetividade da noção de sujeito essencial para inseri-la no âmbito de sua produção, na qual diversos fatores ou instâncias, postos em conexão no campo social (relações de saber/poder, institucionais, lingüísticos, culturais, econômicos, tecnológicos), se articulam para

1 Por discurso, estamos entendendo, de acordo com Spink e Medrado (2000), a institucionalização da

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gestar diversas formas subjetivas, que tanto podem se exprimir numa escala pessoal, quanto coletiva, em constante processualidade.

Por instâncias de subjetivação, considera-se uma série de elementos que se combinam para produzir determinadas formas subjetivas. Assim, de acordo com Guattari (2000) são destacadas as relações intersubjetivas expressas pela linguagem, as diversas formas institucionais como Família, Escola, movimentos sociais e elementos da contemporaneidade, a exemplo da mídia e tecnologia, como instâncias que, dispostas no âmbito do social e em contínua conexão e troca de fluxos, concorrem na produção de subjetividades.

Portanto, partimos do pressuposto de que o MST apresenta-se como uma instância que, por meio dos seus princípios organizativos2, se esforça para produzir subjetividades junto aos trabalhadores acampados, buscando atingi-los por meio de falas, rituais, programações e mobilizações no cotidiano do acampamento.

Ademais, sugerimos que os acampamentos, por se tratarem de um locus de experimentação da práxis coletiva, se configuram como espaços sociais que podem desencadear processos de subjetivação, já que permitem, segundo Fernandes (2000), um processo de socialização política e incorporação do ideário do MST pelos trabalhadores sem-terra.

Ao impor um formato de luta pela terra via ocupação e constituição de acampamentos, o MST necessita produzir, para tanto, o Sem Terra3, uma modalidade subjetividade tipo militante, que condiciona seu projeto de vida pessoal ao de seu grupo,

2 Os princípios organizativos do MST referem-se às posições políticas e ideológicas (Stédile e Fernandes,

1999) que orientam sua atuação e funcionamento interno. São eles: Direção coletiva, Divisão de tarefas, Disciplina, Realização de estudos, Luta de massas e Vinculação com a base social do movimento.

3Há uma distinção ortográfica e conceitual entre o termo sem-terra (com hífen) e Sem Terra (sem hífen).

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portador de valores de coletividade e solidariedade, politicamente formado e dedicado ao movimento, ou seja, uma subjetividade outra que vai de encontro ao modelo de indivíduo produzido pelo capitalismo.

Ressaltamos, contudo, que esse modelo subjetivo não se situa no plano de uma nova subjetividade. Isso está posto por dois motivos: o primeiro, porque o ideário político do MST não emerge no cenário nacional com uma nova proposta de reordenamento do campo social, pois tem como referência o arcabouço teórico clássico que orientou e orienta os movimentos de esquerda no Brasil (Gohn, 2000). Em segundo lugar, porque a perspectiva de subjetividade que embasa este trabalho não pergunta pelo sujeito enquanto realidade final que se configurou mediante uma instância subjetivante.

Não se trata de olharmos para o sujeito como um estado desejado, mas como processo inacabado. Isso nos permitiu visualizar que diante do modelo subjetivo proposto pelo MST, não encontramos unicamente sua reprodução, mas também pontos de ruptura, as linhas de fuga (Guattari e Rolnik, 1986) desse mesmo modelo.

O interesse com o tema da reforma agrária vem-se dando ao longo da formação acadêmica e prática profissional do pesquisador junto a trabalhadores rurais de áreas de assentamento do Estado da Paraíba. Por meio dessa prática, constatamos uma insuficiente inserção do profissional de Psicologia nos espaços rurais e uma lacuna de reflexões teóricas, no âmbito dessa disciplina, acerca das transformações ocorridas nesses espaços e seus habitantes, seja por meio do que se conheceu como a modernização do campo brasileiro, seja por meio da atuação dos movimentos sociais de luta pela/na terra.4

Tal constatação reflete a predominância urbana de atuação da Psicologia, mas, por outro lado, sinaliza para uma atual e crescente preocupação dos profissionais desta

4 O que encontramos, geralmente, é uma literatura sociológica, antropológica e econômica do mundo

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disciplina em sintonizá-la com as transformações sociais contemporâneas, destacando o compromisso social que a mesma pode assumir junto a diversos setores da sociedade.

No entanto, entendemos que essa contribuição só se efetivará na medida em que a categoria subjetividade possa ser abordada pela via da sua desnaturalização ou despsicologização, e situada em plena articulação com os agenciamentos do campo social. Assim, poderemos conhecer que subjetividades estão sendo produzidas em meio a tais transformações e em que medida elas propõem rupturas num modelo de organização social profundamente excludente.

1. Aproximações iniciais do campo de pesquisa e procedimentos metodológicos da Investigação

Com vistas à realização de nossa pesquisa, tratamos inicialmente de buscar nossa inserção em campo. O campo de pesquisa é aqui entendido como “o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto de investigação” Minayo (1999, p. 105).

Com isso, o acampamento passou a ser o recorte específico que possibilitou-nos conhecer como a aplicação das técnicas e procedimentos (Certeau, 1996) de produção de subjetividade adotados pelo MST se deram no cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras de modo, inclusive, a redimensionar o modelo subjetivo adotado pelo movimento.

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Tal levantamento permitiu-nos situar geograficamente os acampamentos no Estado e buscar eleger, para a realização de visitas, pelo menos um acampamento de cada regional5 de atuação do MST. A tabela abaixo permite uma visualização de como os acampamentos estão distribuídos no Rio Grande do Norte:

Tabela 01: Acampamentos de Trabalhadores sem-terra do Rio Grande do Norte

Fonte: MST/RN, 2001.

ACAMPAMENTO REGIONAL MUNICÍPIO Nº FAMÍLIAS

Antonio Tavares Oeste Mossoró 52

Oziel Alves Oeste Mossoró 100

Florestan Fernandes Oeste Carnaubais 50

Dorcelina Folador Oeste Tibau 100

São João da Mata Oeste Pendência 120

São Romão Oeste Mossoró 50

Garavelo Litoral Pureza 48

Boa Esperança Ceará-Mirim Ceará-Mirim 48

Dandara Canavieira Macaíba 65

Zumbi de Palmares Canavieira Macaíba 100

Paulo Freire Mato Grande Jardim de Angicos 50

Maria da Paz6 Mato Grande João Câmara 80

TOTAL 943

A nossa inserção nas áreas de acampamento deu-se em companhia de militantes do MST, contactados previamente e com os quais explicitamos nossa proposta de trabalho. Tivemos o cuidado de expor nossos objetivos, interesse pela temática, afiliação institucional, tanto para representantes do MST/RN, quanto para o conjunto dos trabalhadores das áreas visitadas.

Realizamos visitas a quatro acampamentos localizados nas regionais Ceará-Mirim (acampamento Boa Esperança, município de Ceará-Ceará-Mirim, em 10 de novembro de 2001), Litoral (acampamento Garavelo II, município de Pureza, em 14 de novembro de 2001), Canavieira (acampamento Zumbi de Palmares, município de Macaíba, em 14

5 A denominaçãoregional é utilizada pelo MST para designar suas regiões de atuação, preliminarmente

definidas e distribuídas entre os coordenadores e militantes do movimento. Em virtude da distância, não visitamos os acampamentos da regional oeste.

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de novembro de 2001) e Mato Grande (acampamento Maria da Paz, município de João Câmara, em 22 de abril de 2002).

A escolha dessas áreas deu-se em função de: a) os militantes do MST terem atividades previamente marcadas nas mesmas, positivando a inserção do pesquisador em campo; b) relativa proximidade dos acampamentos com a cidade de residência do pesquisador, permitindo uma melhor operacionalização da pesquisa; c) estabelecimento de contatos com trabalhadores acampados que participaram de mobilizações, nas quais o pesquisador poderia antecipadamente conhecê-los e marcar posterior encontro no acampamento.

Foi nessa etapa que utilizamos o instrumento de levantamento geral de informações (Anexo I). Esse instrumento visou conhecer, em linhas gerais, o acampamento e seus habitantes. Permitiu ainda uma aproximação e uma busca de “familiaridade” do pesquisador tanto com o espaço da pesquisa, quanto com os trabalhadores e trabalhadoras.

Foi a partir do momento inicial de visitas aos acampamentos e aplicação do levantamento geral de informações que pudemos eleger o Acampamento Garavelo II, localizado no município de Pureza, para compor a etapa posterior de nosso trabalho que tratou da realização de entrevistas junto a nove trabalhadores e sete trabalhadoras acampados e realização de observações de campo.

O motivo de escolha do referido acampamento deu-se em função de o mesmo apresentar alguns elementos que se destacaram para nós: a) o acampamento como local de moradia, portanto um lugar no qual o pesquisador pudesse efetuar uma aproximação continuada com os trabalhadores envolvidos no processo de luta; b) tempo relativamente longo de existência do acampamento (mais de dois anos),7 o que

7 Esse tempo foi assim considerado comparativamente aos demais acampamentos visitados, que tinham,

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possibilita aos trabalhadores acampados uma acumulação de experiências no decorrer da luta e um contato continuado com a práxis coletiva do MST; c) a permanência de um militante do MST no local, levando os trabalhadores e trabalhadoras a uma interação cotidiana com discursos e práticas do movimento.

Nessa segunda etapa, buscamos abordar nossas indagações de pesquisa por meio de um Roteiro de entrevista individual semi-estruturada (Anexo II) e de observação da práticas cotidianas dos trabalhadores acampados (Certeau, 1996).

A utilização da entrevista semi-estruturada permitiu-nos trabalhar com temas que escapam a uma mensuração e que se inscrevem no campo das subjetividades e eleger, por meio da semi-estruturação, os aspectos subjetivos que se coadunam com o tema de pesquisa, sem que haja respostas previamente estabelecidas para as quais o entrevistado terá de fazer uma escolha (Minayo, 1999).

No entanto, acessar as subjetividades implica num caminho de mão-dupla, no sentido de inaugurar um espaço de intersubjetividade entre pesquisador-entrevistado, revelando o lugar social ocupado por ambos (Minayo, 1999).

Nesse sentido, o fornecimento de informações ao pesquisador fica afetado por esse princípio.No desenrolar da pesquisa, pudemos constatar este fato visto que, inicialmente, a figura estranha do pesquisador e sua aproximação daquela população os fizeram tomar providências no tocante a não revelar conteúdos que comprometessem o grupo.

Isso foi revelado por uma entrevistada, ao relembrar da minha primeira visita, quando os indaguei sobre determinado assunto e que me responderam com uma versão.8 Na entrevista, foi-me dada outra resposta e justificada sua alteração. Esse procedimento

8Em cumprimento ao sigilo e respeito às questões internas ao grupo, o conteúdo da referida conversa e

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assegurou questões internas ao grupo, que só posteriormente, se sentiram aptos a me revelar.

No entanto, alguns elementos facilitaram uma confiança do grupo no pesquisador, quais sejam: a) a afiliação institucional: pessoas da universidade eram tidas, por algumas pessoas do grupo, como um pessoal que “ajuda”;9 b) o fato de haver uma pessoa preocupada/sensibilizada com a temática da luta pela terra e, em especial, com a luta do grupo do acampamento; c) as visitas para as entrevistas aproximaram, gradualmente, o pesquisador do grupo, que passou a ser acolhido com convites para refeição e dormida. Percebemos que a aceitação desses convites denotavam uma tensão entre aproximação-distanciamento em relação ao grupo. Assim falou uma pessoa quando almoçava em sua barraca: “tu é igual os militante do MST, não estranha a comida” (C, 43 anos).

Ao longo da pesquisa, o grupo foi-se familiarizando com os objetivos da mesma, extinguindo uma expectativa inicial de que o pesquisador poderia interferir diretamente com o processo de desapropriação da fazenda reivindicada.

Uma outra questão que se fez presente no âmbito dessa relação era a expectativa do que falar para o pesquisador. Ao finalizar uma entrevista, uma participante desabafou que estava com receio de como responder as perguntas: “o que vou responder a esse rapaz ?” (D., 54 anos).

No decorrer da realização das entrevistas, fomos percebendo como essa distinção de lugares se apresentava, por meio de expressões, palavras e gestos às vezes incompreensíveis para pesquisador e participante. Com o processo de aproximação e de familiaridade com o campo e com os participantes da pesquisa, fomos entrando num

9 Essa ajuda havia se dado, recentemente, pela ADURN, com uma campanha de arrecadação de alimentos

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maior contato com essas expressões, conhecendo as particularidades e alguns códigos internos ao mesmo.

Por sua vez, as pessoas acampadas nutriam curiosidades pela figura do pesquisador, o motivo de sua escolha por aquele tema de pesquisa e o desenvolvimento de um processo de empatia em função dessa escolha.

Na realização dessas entrevistas, retomamos nosso objetivo de investigar como o MST possibilita, junto aos trabalhadores e trabalhadoras acampados a produção de uma subjetividade alicerçada em sua práxis coletiva.

No entanto, a elaboração do roteiro de entrevista foi por nós pensada a partir de alguns critérios que envolvem as formas de acessar as subjetividades enquanto processo ou produção.

Nardi (2002, p. 21) a esse respeito, comenta

Os processos de subjetivação podem ser compreendidos, por sua vez, a partir da análise da maneira como cada indivíduo se relaciona com o regime de verdades próprio a cada período, ou seja, a maneira como o conjunto de regras que define cada sociedade é experienciado em cada trajetória de vida.

Relembramos, ainda, com Guattari (2000) de que a produção de subjetividade implica o agenciamento de uma série de instâncias, não havendo uma preponderância de uma sobre outras, como também que esses agenciamentos tanto concorrem para secretar formas singulares quanto modelos subjetivos reprodutivistas de uma ordem dada.

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trabalhadores e trabalhadoras do Acampamento Garavelo II, levou-nos a estruturar o roteiro de entrevistas da seguinte forma:

A) O primeiro bloco de questões visou: a) resgatar, em linhas gerais, a trajetória dos trabalhadores até sua inserção no acampamento; b) destacar as principais mudanças ocorridas na vida do entrevistado a partir de sua inserção no acampamento; c) conhecer como o entrevistado vivencia o cotidiano do acampamento, visando destacar as estratégias adotadas (individualmente/coletivamente) para sua continuidade na luta.

O objetivo, neste bloco, foi destacar outras instâncias que estivessem contribuindo para que o entrevistado optasse por lutar pela terra via acampamento, compreender possíveis rupturas em seu estilo de vida com sua inserção no acampamento e identificar se suas estratégias de continuidade no acampamento e seu convívio no grupo se apresentam em consonância com a práxis coletiva do MST.

B) O segundo bloco de questões buscou destacar: a) como o entrevistado é afetado pelas formas de atuação do MST/RN junto aos trabalhadores do acampamento e qual sua relação e participação com as atividades do MST.

Neste bloco, buscamos conhecer, em que medida, se dá o envolvimento do entrevistado com as atividades e programações do MST, seu nível de engajamento e conhecimento dos princípios do movimento.

C) O terceiro bloco teve por objetivo coletar dados sócio-econômicos dos trabalhadores acampados, a fim de conhecermos melhor sua origem (predominância rural/urbana), renda, escolaridade, tempo no acampamento.

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Fizemos três entrevistas-piloto, para averiguar a adequação do roteiro, que sofreu pequenas alterações.

Antes de iniciarmos a aplicação do roteiro de entrevista, buscamos uma conversa de aproximação, com o intuito de “quebrar o gelo” entre pesquisador e pesquisado. Posteriormente, foram feitas algumas colocações para o entrevistado antes de ligarmos o gravador, a saber: a) retomada da apresentação do pesquisador, afiliação institucional, objetivos da pesquisa e interesse pelo tema; b) o entrevistado poderia falar livremente sobre os temas levantados, no sentido de que não haveriam respostas “erradas” e que em caso de não entender a pergunta, poderia solicitar sua repetição. Este fato ocorreu algumas vezes, especialmente nas associações de idéias (nas quais alguns entrevistados supunham haver uma resposta correta); c) manutenção do caráter sigiloso das informações no sentido de que será preservado o anonimato da pessoa entrevistada; d) liberdade para não falar sobre assuntos que não quisessem (fato este que ocorreu em duas entrevistas revelando, assim, o entendimento do entrevistado sobre a orientação dada por nós) ou de desligarmos o gravador caso a pessoa optasse por abordar o assunto, mas não quisesse seu registro em áudio; e) apresentação de justificativa do interesse em gravar a conversa (por meio de aparelho de gravador de áudio e fita cassete) e f) solicitação de autorização aos trabalhadores para tal, diante dos quais tivemos consentimento em sua totalidade.

O conjunto dessas informações e procedimentos junto aos entrevistados têm um sentido importante para nós porque nos remete a uma dimensão ética de fazer ciência.

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essa dimensão no interior mesmo do processo da pesquisa, ou seja, na relação pesquisador-participante.

Diante de tais procedimentos, acreditamos ser possível construir uma relação com a pessoa entrevistada pautada no respeito das suas singularidades, bem como na legitimação do que revela enquanto conhecimento.

Por meio das observações de campo foi possível selecionar, dentre as pessoas do grupo acampado, quais delas participariam do nosso estudo na qualidade de entrevistados. Assim, partimos do entendimento de que um grupo não reflete um conjunto homogêneo e fixo de participantes, mas dota-se de um movimento próprio em função de algo comum, conforme destaca Rizzini (1999).

O nosso interesse esteve voltado, portanto, para esse caráter processual do grupo, no sentido de ressaltar, ao máximo, diferentes formas de inserção dos atores sociais no grupo, especialmente, se considerarmos o caráter de variabilidade que há nos espaços do acampamento (entrada de novas pessoas, alternância de coordenadores, diversidade de origem dos trabalhadores acampados, etc.).

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Dessa feita, o grupo de pessoas destacadas para participarem da entrevista ficou composto de 16 participantes, homens e mulheres, jovens e adultos, coordenadores (cinco) e não-coordenadores do acampamento, habitantes antigos e novatos, alfabetizados e não-alfabetizados. Com isso, esperamos contemplar as diferentes formas de inserção social desses trabalhadores, que por sua vez suponhamos ter relação ou repercussão também diferenciada nos processos de subjetivação.

A perspectiva de análise das entrevistas realizadas inscreve-se numa postura que busca legitimar o conhecimento do senso comum, enquanto produção no âmbito do cotidiano. Spink (1999) situa essa modalidade de conhecimento, citando Geertz, “enquanto uma teia de significados capaz de criar efetivamente a realidade social” (p. 120) e que nos permite não somente operar “com a lógica e com a coerência, mas também com a contradição” (p.123). Isso implica em situar o conhecimento produzido no âmbito de sua historicidade e de sua inserção em dada cultura.

Essa noção é particularmente pertinente ao nosso propósito de estudo, uma vez que consideramos a produção de subjetividade sob essa mesma ótica, em que as instâncias de subjetivação não são categorias dadas, mas fomentadas no campo social em função da heterogeneidade desse mesmo campo.

Entendemos que o conceito de práticas discursivas, como aparece em Spink & Medrado (2000) se coaduna com esse propósito, visto que privilegia o conhecimento do senso comum, via produções discursivas, a partir de sua multiplicidade. Essa multiplicidade é possível em função da linguagem, nessa abordagem, ser tratada enquanto prática social, ou melhor, tomada em termos de suas condições de uso e de produção em dado contexto social.

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sociais cotidianas” (Spink & Medrado, 2000, p. 45). Assumem para o sujeito um caráter ativo tanto na elaboração de conhecimentos, quanto no posicionamento em práticas sociais do cotidiano.

Os autores destacam que, diferentemente do discurso que tende a revelar os conteúdos de regularidade lingüística ou aqueles em que a linguagem se institucionalizou, por meio das práticas discursivas é possível compreender o campo das ressignificações, das rupturas, portanto da heterogeneidade.

A possibilidade de situar as práticas discursivas em termos de uma regularidade ou de heterogeneidade aparece em Spink & Medrado (2000), numa abordagem temporal. Ou seja, estes autores situam o trabalho com o contexto discursivo de produção de conhecimentos em três tempos, a saber: “o tempo longo, que marca os conteúdos culturais, definidos ao longo da história da civilização; o tempo vivido, das linguagens sociais aprendidas pelos processos de socialização, e o tempo curto, marcado pelos processos dialógicos (p. 51).

O tempo curto, de que falam os autores, é o tempo da polissemia, ou seja, das produções discursivas em que os tempos anteriores se articulam e se atualizam com o tempo presente.

Desse modo, poderemos vislumbrar nas práticas discursivas dos participantes de nosso estudo, como o MST, enquanto uma instituição dotada de uma formação discursiva própria, concorre para produzir efeitos de subjetivação e de que maneira esses efeitos são reapropriados pelos trabalhadores, a partir de uma articulação com o tempo longo e com o tempo da socialização que informam a vida desses atores sociais.

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informais, participação em assembléias dos acampados e mobilização coordenada pelo MST na cidade de Natal, acompanhamento de atividades rotineiras no acampamento feitas a cada visita para a realização de entrevistas10, bem como em situações em que o pesquisador ficou hospedado no acampamento por três vezes consecutivas e nas quais era possível acompanhar o cotidiano dos trabalhadores acampados.

Tais observações, anotadas em bloco de papel, possibilitaram uma articulação com os dados colhidos nas entrevistas e foram analisadas à luz da contribuição teórica de Certeau (1996) a respeito das práticas cotidianas.

A questão central levantada por este autor, no que concerne às práticas cotidianas, está em demonstrar que, na construção do cotidiano, os indivíduos não estão meramente na posição de reprodução de padrões sócio-culturais vigentes. Assim, mais do que sujeitos disciplinados, o cotidiano se produz em meio a uma multiplicidade de táticas que burlam as formas tradicionais de orientação do poder, é regido por uma antidisciplina (Certeau, 1996).

O autor contrapõe dois tipos de práticas: as exorbitadas e as menores e assim as distingue

Uma sociedade seria composta de certas práticas exorbitadas, organizadoras de suas instituições normativas e, de outras práticas, sem-número, que ficaram como “menores,” sempre no entanto presentes, embora não organizadoras de um discurso e conservando as primícias ou os restos de hipóteses (institucionais, científicas), diferentes para esta sociedade ou para outras (Certeau, 1996, p. 115).

Essa abordagem nos permitiu destacar um aspecto importante de nosso estudo: que mesmo diante da modelização subjetiva proposta pelo MST, os trabalhadores se

10 Geralmente, quando tínhamos entrevistas marcadas, íamos no dia anterior e dormíamos no

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singularizam e o fazem tanto em relação às diretrizes do movimento quanto ao instituto da propriedade privada, na abertura de conflitos, às vezes pontuais, às vezes maiores, com o administrador da fazenda, numa luta diária pelo acesso à terra.

2. A organização do texto dissertativo

A presente dissertação está organizada da seguinte forma: o primeiro capítulo visa contextualizar, historicamente, o surgimento do MST e a luta pela terra no Brasil e no Rio Grande do Norte. Situa, ainda, a constituição dos acampamentos como um traço marcante da luta empreendida por esse movimento, traz dados gerais sobre o contexto de nossa pesquisa: o Acampamento Garavelo II e seus habitantes, com ênfase no processo de construção de estratégias de resistência na área ocupada com vistas a garantir a conquista da terra de trabalho e de moradia para si e sua família.

A discussão exposta no segundo capítulo aborda a categoria da subjetividade, no sentido de problematizar seu lugar tradicional no campo da Psicologia e aponta para uma perspectiva em que a mesma tem um lugar privilegiado de produção: o campo social. Inserimos nessa discussão o MST como uma instância que, disposta nesse campo, investe na produção de subjetividades junto aos trabalhadores sem-terra por meio de seus princípios organizativos. Destacamos como tal tentativa se constrói no cotidiano dos habitantes do Acampamento Garavelo II, em meio a focos de tensão e ruptura de um lado, e a incorporação desse modelo, de outro.

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2. O MST E A LUTA PELA TERRA

"Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil."

2.1. Contextualização do surgimento do MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vem se destacado no cenário nacional desde o início dos anos oitenta, tornando-se um dos atores centrais no tocante à questão agrária e ao tema da reforma agrária no país.

O seu surgimento pode ser contextualizando a partir de três elementos, que serão sumariamente discutidos a seguir:

x O primeiro, com nuances sócio-econômicas, relaciona-se com as transformações ocorridas no campo, especialmente na década de 70, com o chamado processo de modernização da agricultura, promovido pelo avanço do capitalismo no campo e incentivado pelos governos militares;

x O segundo refere-se à atuação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) que assegurou, junto aos trabalhadores do campo, o desenvolvimento de uma prática de reflexão sobre sua condição social e a possibilidade de organização desses trabalhadores vítimas da modernização, de norte a sul do país (Fernandes e Stédile, 1999; Iokoi, 1996) ;

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2.1.1. As transformações no campo sob o imperativo do Capitalismo e da Ditadura militar

A história recente do Brasil tem mostrado que, diferentemente de apostar na agricultura familiar ou na democratização da propriedade da terra, o desenvolvimento do capitalismo no campo deu-se pela manutenção de sua estrutura fundiária, pautada no grande latifúndio.

Desse modo, o processo de modernização da agricultura, fase em que o capitalismo se desenvolveu no campo de forma imperativa, ocorreu sem que sua estrutura fundiária fosse alterada, prevalecendo um forte caráter concentracionista de terra.

Esse fenômeno esteve fortemente ligado aos governos militares que, ao assumirem o Estado por meio do golpe militar de 1964, atuaram em favor da aliança entre terra e capital, reforçando o projeto de modernização da agricultura.

O avanço das forças produtivas no campo brasileiro deu-se pela intocabilidade das terras em mãos de já antigos proprietários e, incrivelmente, promoveu ainda mais essa concentração. Por isso, também ficou conhecida como modernização conservadora (Graziano da Silva, 1981).

Graziano da Silva (1981, 1994) destaca duas características fundamentais dessa modernização: a primeira, que aconteceu de forma bastante desigual, permitindo uma forte concentração na aquisição de créditos e de insumos, seja por regiões do país, seja para grandes latifundiários em detrimento dos pequenos agricultores11 e uma substituição das culturas tradicionais de plantio por produtos modernos com vistas à exportação.

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A segunda característica dessa modernização foi a geração de uma forte exclusão dos pequenos trabalhadores rurais dessa política, dificultando o avanço produtivo de sua lavouras, inviabilizando seus projetos e lançando-os numa miséria profunda e num êxodo rural sem precedentes, contribuindo para um crescimento assombroso da população urbana no país.12

Guattari (1997) comenta que o avanço do capital deu-se por meio de um processo de transformação dos territórios existentes, ocorrido tanto em extensão, "ampliando seu domínio sobre o conjunto da vida social, econômica e cultural do planeta," quanto em intenção, "infiltrando-se no seio dos mais inconscientes estratos subjetivos" (p. 33).

Para o autor, há uma estreita relação entre território e subjetividade, uma vez que aquele funciona em estreita ligação com uma ordem subjetiva específica, tanto individual quanto coletiva. Em suas palavras

O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desencadear, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (Guattari, apud Silva, 2003, p. 6).

Assim, a máquina capitalista provocou uma desterritorialização de tais ordens subjetivas, investimentos e representações que tinham como base a organização camponesa, o trabalho familiar e os laços comunitários.

12 Linhares & Silva (1999) destacam o crescimento populacional de grandes cidades brasileiras,

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Dentre tais alterações provocadas por essa desterritorialização, destacaram-se as relações de trabalho e de moradia, fato que culminou, conforme Silva (1996), no fim da terra de permissão: espécie de impedimento feito pelos proprietários aos trabalhadores que moravam e trabalhavam para si nas terras daqueles. Este fato deu-se, notadamente na região Nordeste, com a expansão das faixas de terra das usinas canavieiras e com o processo de mecanização do campo. Assistiu-se, com isso, a substituição do trabalho assalariado13 permanente para o trabalho assalariado temporário, fazendo surgir a figura do volante.14

Em reflexo ao cenário nacional, no Estado do Rio Grande do Norte, inúmeras questões ligadas ao desenvolvimento do capitalismo no campo fomentaram as ações de luta e resistência entre os trabalhadores.

Silva (1995, 1996) elenca três períodos que destacam os conflitos de terra no Estado:

x Em meados da década de 50, grande parte dos conflitos de terra no Estado deram-se pelo fim da terra de permissão, com o alargamento do processo usineiro, aumentando os dias de trabalho para os moradores e redução de suas áreas de plantio de culturas de subsistência.

x Na década de 60, com o processo de modernização do campo, aumentaram as grilagens15 de terra e a conseqüente expulsão dos posseiros16 dessas áreas. Aconteceu

13Trabalhador assalariado: trabalhador que vende seus dias de serviço a um fazendeiro qualquer,

destituído totalmente dos meios de produção, contando apenas com sua força de trabalho (Ver: MST, 2001; Moreira, 1997).

14Volante: identificado ainda com o bóia-fria, trata-se de trabalhador assalariado temporário na agricultura

que atua, em especial, no corte da cana-de-açúcar e geralmente habita as periferias urbanas.

15Grilagem: prática de fraudação de título de posse de terras públicas.

16 Agricultores que ocupam com sua família uma determinada área de terra, cultivando-a, criando

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ainda o fim das práticas de arrendamento17 em virtude da implantação das monoculturas de cana-de-açúcar. Muitos conflitos estiveram ligados à quebra desses contratos de arrendamento de terra.

x Nas décadas de 70 e 80, houve um aumento das lutas em função da implantação de projetos desenvolvimentistas governamentais e particulares, acentuando a expulsão das famílias dessas áreas tomadas pelo capital. Nos anos 80, surgiu a modalidade de ocupação de terras anteriormente cultivadas pelos trabalhadores expulsos.

Silva (1995) nos informa que os agentes de mediação no Rio Grande do Norte foram basicamente a Igreja Católica e, em menor expressão, o Partido Comunista Brasileiro, por meio das Ligas Camponesas18.

A Igreja criou, no Rio Grande do Norte, uma forma de assessoria aos trabalhadores denominada Serviço de Assistência Rural (SAR) que, de acordo com Silva (1995), teve uma forma inicial de atuação nos moldes tradicionais da Igreja, alterando sua perspectiva de serviço com a criação da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em meados dos anos 70.

Essa atuação foi direcionada, principalmente em torno dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, com a promoção de intensas campanhas de sindicalização, tanto para salvaguardar os trabalhadores nos processos de despejos e da quebra dos contratos de arrendamento, como para garantir os direitos trabalhistas para a população assalariada rural.

Durante o regime militar, as organizações de trabalhadores sofreram forte perseguição, que segundo Silva (1995), levou os grandes proprietários a tomarem

17 Prática pela qual um agricultor trabalha com sua família numa área arrendada por um preço fixo a um

proprietário, mediante contrato verbal que estabelece um pagamento anual em forma de dinheiro ou produto (MST, 2001; Moreira, 1997).

18 Sobre a atuação das Ligas Camponesas e do Partido Comunista no tema da questão agrária no Brasil,

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proveito da onda repressiva para coibirem as ações dos trabalhadores e dos sindicatos rurais.

Com o crescente avanço das grilagens de terra, que no Rio Grande do Norte estiveram ligadas a especulações imobiliárias, extração de petróleo e implantação de megaprojetos agro-industriais, Silva (1996) assinala que os movimentos sociais no campo se intensificaram por meio das ocupações de terra.

Segundo o autor, tais ocupações se deram tanto em terras devolutas, que não se identificavam os proprietários como naquelas em que os posseiros foram expulsos pelos grileiros. Aconteceram em várias regiões do Estado: agreste, litoral, sertão e seus desdobramentos foram marcados por muita violência contra os trabalhadores, que sofreram forte perseguição e tiveram suas lideranças assassinadas.

Assim, com vistas a controlar as tensões sociais no campo, a estratégia dos governos militares visou realizar um plano de reforma agrária de caráter limitado e militarizado. Para Martins (1986), tal modelo de reforma agrária apareceu enquadrado nos moldes institucionais e visou administrar os conflitos no campo, sendo realizada, por meio de desapropriações de terras nas áreas marcadas por forte tensão social.

2.1.2. A inserção da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no processo de luta dos Trabalhadores do Campo

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O trabalho pastoral da Igreja abriu um novo momento de luta dos trabalhadores do campo que tinha um componente social marcante, para além do ideológico e partidário, até então presentes nessas lutas. Martins (1997, p. 139) resume

A fundação da CPT, em primeiro lugar, nesse momento, ao promover uma nova modalidade de luta social, que é a dos movimentos camponeses, de tipo moderno, impregnados de preocupação social, e até de preocupação política, proclama que os excluídos e penalizados pela brutalização política e econômica não perdem a sua condição humana com o desenvolvimento capitalista. E por isso, não perdem o direito àquilo que os faz dignos e humanos, que são as condições da sua sobrevivência. No caso das populações indígenas, seus territórios. No caso das populações camponesas, o direito à terra.

O propósito da CPT consistiu e consiste em prestar um serviço de assessoria aos trabalhadores, como também promover reflexões e questionamentos sobre a situação de desigualdade social que se encontravam (Poker, 1997).

O trabalho dessa pastoral pauta-se na corrente progressista da Igreja Católica denominada Teologia da Libertação, que contextualiza os ensinamentos religiosos da Igreja para a realidade social dos trabalhadores (Fernandes e Stédile, 1999).

De acordo com Martins (2000), a postura dos agentes pastorais da CPT permitiu destacar a complexidade dos valores, das formas de relação com a terra e da dinâmica social dos camponeses, enfim, de sua cultura, de modo que se pôde produzir um conhecimento de grande importância para o trabalho de mediação junto aos mesmos.

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trabalhadores, seu trabalho ganhava especificidades a depender de sua área de acompanhamento.

Enquanto a CPT atuava segundo uma linha de considerar as diversidades locais dos trabalhadores, pela valorização de seus modos de vida, setores da esquerda renovados com a abertura política defendiam uma unidade de tratamento para os mesmos, que segundo Martins (2000) acreditariam dar à luta dos trabalhadores uma dimensão política ou uma unidade de classe.

Foi nesse cenário que setores e apoiadores do trabalho pastoral perceberam os limites de sua atuação, em função dos pressupostos religiosos dessa mesma atuação. Passaram a buscar, para essas lutas, um avanço no campo político. O MST surgiu, portanto, para efetivar uma luta política que não cabia à CPT.

2.1.3. A Abertura política após a Ditadura Militar

Ao final dos anos 70, com o processo de abertura política no país, o debate em torno da reforma agrária voltou ao cenário político nacional, por meio da ação de movimentos sociais que, apoiados pela CPT, puderam ter expressão, reocupando o cenário político que se desenhava pelo processo de democratização em curso (Medeiros, 1993).

Em meio à pluralidade de movimentos que surgiram em defesa de setores específicos da sociedade, Medeiros (1993) destaca, no entanto, que essas especificidades não se reverteram em isolamentos, mas proporcionaram alianças entre esses movimentos em “momentos politicamente decisivos” (p. 17).

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Confederação Única dos Trabalhadores (CUT), Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Partido dos Trabalhadores (PT), entre outros.

O MST firmou-se ao colocar na agenda do Estado o tema da reforma agrária e da necessidade de sua realização. É um movimento que vem se destacando, desde então, pela sua força de mobilização dos trabalhadores, como também por exercer pressão junto aos governos (municipal, estadual e federal) no sentido de denunciar os efeitos sócio-econômicos da modernização no campo, do desenraizamento por ela provocado e da legião de excluídos que criou.

Ao destacar estes elementos, não buscamos uma relação de causalidade que explicasse o surgimento do MST, mas de apontar agenciamentos (Deleuze, 2000) que, em dado jogo de forças e situados numa contextualização histórica, permitiram a produção de um movimento social com o espectro do MST.

2.2.A Formação, Consolidação, Institucionalização e a Atuação do MST

Nesta seção, buscaremos mostrar como o MST, inicialmente articulado por uma série de elementos que o legitimaram enquanto movimento social de luta pela terra e pela reforma agrária, galgou no sentido de consolidar-se no cenário nacional, passando por um processo de institucionalização, deixando de ser, exclusivamente, um movimento social para adquirir característica de uma organização "inspirada em manuais leninistas" (Navarro, Moraes e Menezes, 1999, p. 29), distribuída em quadros e com menos flexibilidade em seus aspectos decisórios.

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Silva (2000) informa que os movimentos sociais podem ser tidos como “agentes que pertencem e atuam dentro do campo político e do mercado de relações políticas, porém, são agentes que, embora estejam presentes no campo, estão fora do sistema político oficial no qual se apresentam as instituições político-partidárias” (p. 147). Caracterizam-se, portanto, pela mobilização social, pelo reconhecimento de especificidade de interesse de seus participantes e pela abertura de conflitos sociais.

Alguns autores têm sintetizado as discussões sobre os movimentos sociais e, especialmente, os movimentos sociais rurais no Brasil, a partir de dois enfoques: estruturalista e culturalista.

O primeiro visa compreender os movimentos sociais a partir dos “condicionantes (ou determinações) econômico-estruturais” (Scherer-Warren, 1998, p. 223), ou como um resultado das contradições entre o sistema político e econômico do capitalismo (Silva, 2000).

Nesse caso, Scherer-Warren (1998) resume que esse enfoque aborda um sujeito de ordem coletiva e generalizado (camponeses, proletariados), ou seja, em termos de pertencimento a uma classe social, que os processos sociais se dão numa curva longa de espaço/tempo e que a “utopia emancipatória” (p. 224) pretende uma transformação social de caráter revolucionário e de efeito prolongado.

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para que seja possível entender as aspirações representadas pelos sujeitos nos movimentos sociais” (p.156).

O segundo enfoque aparece dimensionado por uma perspectiva culturalista e, segundo a autora, introduz elementos da diversidade cultural e da pluralidade das ações sociais e dos sujeitos produtores desses movimentos. Valoriza, portanto, as vivências cotidianas dos atores envolvidos.

Portanto, os sujeitos aparecem sob um enfoque da diversidade sócio-cultural (índios, mulheres, posseiros), ou seja, é dada uma atenção ao caráter de singularidade dos grupos. Os processos sociais se dão num espaço/tempo de curta duração, a exemplo de conquistas específicas, parciais que promovem cidadania e democratização das relações sociais (Scherer-Warren, 1998), e o caráter utópico emancipador está posto na gradatividade das conquistas acumuladas e na mobilização por práticas democráticas.

Ao tomarmos as considerações de Guattari (Guattari e Rolnik, 1986) sobre os novos movimentos sociais, o autor reconhece que há neles uma tentativa de produção de modos de subjetividade “originais e singulares” ou “processos de singularização subjetiva” (p. 45). Isso quer dizer que esses grupos estão na posição de redimensionar as relações de força social, no sentido de promover novos arranjos e novas formas de existir que escapem a modelizações provenientes da máquina capitalista.

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Ao acompanharmos os três momentos que envolvem a formação do MST, propostos por Fernandes (2000), quais sejam: a gestação e nascimento do MST (1979-1985), a territorialização e consolidação do MST (1985-1990) e a territorialização e institucionalização do MST (1990-1999), poderemos, adiante, melhor situar o enfoque de sua atuação.

2.2.1. Gestação e nascimento do MST (1979-1985)

Esta fase é marcada pela atuação da CPT, que conforme visto anteriormente, deu apoio a inúmeras lutas empreendidas pelos trabalhadores rurais em todo o país. Uma série de ações de luta no campo eclodiu nos Estados do sul, promovendo as primeiras experiências de ocupação de terras, formação de acampamentos e a realização de encontros e reuniões entre lideranças dos trabalhadores e entidades de apoio como sindicatos, Igreja Católica e Luterana e intelectuais.

Houve uma preocupação em se realizar articulações regionais para que as lutas não fossem isoladas e, portanto, fadadas ao fracasso. Nesse sentido, inúmeras reuniões e encontros se deram até o I Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em 1985.

2.2.2 Territorialização e consolidação do MST (1985-1990)

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e a constituição dos assentamentos,19 primeira vitória do MST. Tais territórios conquistados deram fôlego ao movimento, possibilitaram a experimentação de suas propostas (Poker, 1997) para as questões de organização da produção, educação, saúde e organização social e permitiram novas espacializações de sua luta.

Navarro et al. (1999) destacam que o período de 1986 a 1993 foi uma fase em que o movimento optou por ações de confronto, num claro processo de busca de autonomia em relação à orientação pastoral. A esse respeito, Poker (1997, p. 78) comenta:

O MST descrê por antecipação na vontade dos órgãos públicos em interferir por si mesmos na estrutura fundiária. Assim, organiza práticas de ocupação de terras públicas ou privadas, tidas como improdutivas, colocando o Estado e seus representantes num impasse radical: reprimir ou ceder".

Navarro et al. (1999) acrescentam, ademais, que foi um período de forte institucionalização do movimento, que passou a privilegiar a formação de quadros, com um novo trabalho de formação política de sua militância. Ocorreu, ainda, a transferência da sede do MST, anteriormente no Sul, para São Paulo.

A chegada do MST no Estado do Rio Grande do Norte deu-se no início dessa fase. Em 1989, chegaram ao Estado os primeiros militantes, por meio de articulações entre a direção nacional do MST e o Sindicato dos Trabalhadores rurais do município de São Rafael (Dantas, 1996).

Segundo Dantas (1996), o MST surgiu no Estado em virtude de um vácuo nos discursos das instâncias de representação dos trabalhadores rurais, que adotavam “palavras e práticas já esgotados” (p. 28). Assim, a característica de confronto do MST

19 Os assentamentos são definidos como “unidades de produção agrícola, criados por meio de políticas

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acabou gerando um certo conflito entre o movimento e outras entidades organizativas presentes no Estado, a exemplo da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Rio Grande do Norte (FETARN) e o SAR.

O trabalho de base do movimento iniciou-se na região oeste do Estado. As tentativas de ocupação do MST foram respondidas com o despejo20 das famílias e a prisão de lideranças do movimento.

Ao criar uma secretaria regional do MST no Estado, seus integrantes buscaram apoio de entidades sindicais do Estado e do PT. Com isso, os trabalhos de base se intensificaram, o movimento mudou sua área de atuação para Mato Grande, conquistando, por meio de ocupação, seu primeiro assentamento do Estado no município de João Câmara: o Assentamento Marajó (Morissawa, 2001).

No Rio Grande do Norte, as ocupações de terra e a desapropriação de áreas para criação dos assentamentos tiveram um crescimento significativo a partir da chegada do MST. Para o período entre 1990 e 1994, ocorreram 16 ocupações com participação de 2.010 famílias, e entre 1995 e 1999, 60 ocupações, envolvendo 5.913 famílias (Fernandes, 2000).

Atualmente, o MST acompanha cerca de 40 áreas de assentamento em praticamente todas as regiões do Rio Grande do Norte e grande parte desses assentamentos se deram por meio das referidas práticas de ocupação de terra.

Ainda nessa fase, Fernandes (2000) destaca que diversas das atividades realizadas pelo movimento passaram por um processo de formalização, ou seja, a estrutura organizativa do movimento começou a ser desenhada a partir de uma série de

20 As ações de despejo são justificadas pela reintegração de posse da área ocupada, concedida

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atividades já postas em prática pelos seus militantes, nos níveis regional, estadual e federal.

Foi desse processo de formalização que surgiram os chamados Setores do MST. Os principais são: a) O Setor de Frente de Massas; b) Setor de Educação; c) Setor de Formação; d) Setor de Produção; e) Setor de Gênero.

Ao Setor de Frente de Massas compete a função de realizar reuniões tanto nas comunidades rurais, quanto nas periferias da cidade, apresentando os princípios gerais do movimento e arregimentando trabalhadores com fins de ocuparem uma área anteriormente eleita pelo movimento para a constituição do acampamento. É o setor que atua diretamente com a chamada base do movimento, promovendo “a travessia das pessoas de fora para dentro do MST” (Fernandes, 2000, p. 173).

Segundo Caldart e Schwaab (1991), no interior da luta pela terra, há uma luta por escolas para as crianças filhas dos trabalhadores sem-terra. Tal luta tem-se ampliado, no âmbito do Setor de Educação, que vem desenvolvendo uma proposta pedagógica popular que engloba a Educação Infantil, Ensino Fundamental, Médio, Universitário e de Jovens e Adultos. 21

O Setor de Formação é encarregado de realizar e coordenar cursos de formação política para sua militância, para que estes passem a ter uma compreensão de questões históricas, econômicas e sociais concernentes ao problema da terra, da organização da sociedade capitalista, etc. (Morisawa, 2001) de modo a poderem articular os fundamentos teóricos com sua prática militante.22

O Setor de Produção surgiu da necessidade de organizar a produção das áreas de assentamentos conquistadas pelo movimento. Este setor buscou implantar uma forma de

21 Além da existência de um Programa de Alfabetização de Jovens e Adultos nos Assentamentos do MST

no Rio Grande do Norte, em convênio com a UFRN, iniciou-se em 2002 a primeira turma, no Estado, do Curso de Pedagogia da Terra, a nível de graduação e em regime especial, direcionado para professores das áreas de assentamento acompanhadas pelo movimento.

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gestão da produção a partir da Cooperação Agrícola (Bonavigo, 1998), de modo que os assentados pudessem evoluir do modelo individualizado de produção ao modelo coletivo desde o plantio, a comercialização, a gestão do crédito.

O Setor de Gênero foi criado a partir da idéia de que a luta pela terra necessita incorporar toda a unidade familiar (Fernandes, 2000). Assim, tem-se, na esfera interna do movimento, estimulado a participação das mulheres na luta, tanto por meio da conquista do direito de receber lotes em seu nome, quanto na distribuição de cotas de participação nas instâncias de representação do movimento.

2.2.3. Territorialização e institucionalização do MST (1990-1999)

A terceira fase do movimento seguiu num ritmo de crescimento nacional, conquistando muitos assentamentos em diversas regiões do país, desenvolvendo o Sistema de Cooperativa dos Assentados, forma de organização coletivizada do processo produtivo nas áreas de assentamento.

Para um período semelhante a esta fase do MST, Navarro et al.(1999) apontam a “conquista de São Paulo” (p.30) pelo movimento, por tratar-se do Estado mais influente do país, portanto lançando-o no centro das manchetes nacionais e conquistando grande força de negociação no que tange ao encaminhamento da reforma agrária.

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Embora tenha se fundamentado no caráter progressista da CPT, portanto de reconhecimento da diversidade sócio-cultural dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, atualmente o movimento atua com vistas a superar tal heterogeneidade, por considerar que nela há vícios a serem combatidos, em prol de um novo homem e uma nova mulher (Bogo, 2000).

Atualmente, o MST está presente em 23 estados brasileiros, a exceção dos Estados do Amazonas, Roraima, Acre e Amapá, tendo articulado o assentamento de cerca de 150 mil famílias em todo o país.23

2.3. Os Acampamentos de trabalhadores sem-terra: uma versão de luta

O MST acredita que a modalidade de luta via ocupação de terra e constituição dos acampamentos tornou-se uma importante forma de acesso à terra e tem garantido a implantação de assentamentos de reforma agrária na maior parte das regiões do Brasil.

Segundo Fernandes (2000), a sustentação do acampamento é uma maneira de reivindicar o assentamento. O autor destaca dois tipos de acampamentos a partir da perspectiva histórica do MST: o acampamento provisório, que se instala na área improdutiva ou nas suas proximidades, destacando o esforço pela desapropriação da área ocupada, e o acampamento permanente ou aberto. Este se localiza próximo às áreas de muitos latifúndios e serve de ponto de partida para novas ocupações e/ou para acolher os trabalhadores em caso de despejo.

É na instalação do acampamento nas áreas improdutivas, via ocupação, que a violência contra os trabalhadores acampados, muitas vezes, não tarda. Passam a ser

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perseguidos ou ameaçados de morte por capangas contratados pelos proprietários da área ocupada ou ainda atingidos pelas ações de despejo.

Espacialmente, os acampamentos vivem a transitoriedade. Isso, no entanto, não dota o acampamento de um caos. No intuito de garantir a luta, os trabalhadores sem-terra e as lideranças do movimento que os acompanham tratam de organizar o acampamento criando comissões de trabalho, de vigília, de negociação, montam barracos para funcionamento de salas de aula.

Um estudo realizado por Miele e Guimarães (1998) destacou os acampamentos como uma situação de excepcionalidade, onde os trabalhadores vivem uma "experiência de suspensão de códigos culturais habitualmente observados" (p.206). Coletivamente, algumas tarefas são realizadas sem distinção do público e do privado, o que dá às mulheres, na luta, uma posição diferenciada do seu cotidiano.

As autoras acreditam que esse processo se dá devido às situações de adversidade presentes no acampamento, a exemplo da moradia em barracos de lona improvisados, falta de água potável, fome, alterações climáticas, riscos à saúde, convivência com várias famílias num mesmo espaço.

Para o Estado, as práticas de ocupação de terra e constituição dos acampamentos são tratadas na esfera da ilegalidade. Por meio de Medida Provisória, editada em janeiro de 2001, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) estabeleceu a suspensão de vistoria24 de áreas "invadidas" por um prazo de dois anos e a exclusão do trabalhador do programa de reforma agrária que participar da "invasão" de terras ou de prédios públicos. Tal medida promoveu um decréscimo das ocupações, de modo que em 2000 elas totalizaram 253 e caíram para 158 em 2001(Scolese, 2002).

24 Procedimento de avaliação de propriedades rurais, no sentido de considerá-las produtivas ou

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O Estado passa a legitimar sua atuação mediante a criação dos projetos de assentamento de trabalhadores rurais. Sua intervenção se inscreve sob a ótica de ditar processos de racionalização, objetivação e produtividade para o conjunto das famílias assentadas, seja nas relações de produção, seja no cotidiano das famílias-alvo de sua política, gerando o que Ferrante (1996) nomeia de "Violência programada por parte do Estado" (p.63).

Nesse sentido, o que se verifica nos trabalhadores sem-terra é uma trajetória de vida marcada pela ausente ou precária condição de sobrevivência, passando por uma inserção nos movimentos sociais de luta pela terra culminando, muitas vezes, com a vivência do acampamento para, finalmente, tornarem-se assentados.

2.3.1. O Acampamento Garavelo II

Disposto espacialmente na margem de rodovia não-asfáltica que liga o município de Pureza a João Câmara, o acampamento Garavelo II, composto de dezesseis barracos posicionados de forma linear, apresenta alguns dos aspectos acima abordados.

Impressiona-nos, inicialmente, o amontoado de palha, lona, madeira e barro que configura o lugar. No entanto, um olhar aproximado nos permite perceber como a combinação desses materiais forma um espaço de moradia.

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Algumas famílias já estavam vindo de uma tentativa de ocupação anterior, o acampamento Maceió, no mesmo município. Contudo, a propriedade-objeto de reivindicação, segundo relataram os trabalhadores, foi considerada produtiva, inviabilizando a sua ocupação.

Efetuada a ocupação, os militantes iniciaram um trabalho de organização do acampamento por meio de comissões de trabalho. Esses grupos formados por trabalhadores se encarregaram de atuar nas comissões de segurança, saúde, educação, finanças e disciplina.

Esse modelo de organização do acampamento baseado em comissões (que podem se tornar núcleos) reflete, no âmbito local do acampamento, a formatação geral do MST. Trata-se de tentar duplicar, num micro-espaço, uma estrutura organizativa, setorizada, de caráter nacionalmente sedimentado.

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Nessas atividades, os trabalhadores passaram a ter contatos mais aproximados com os discursos e práticas do MST que se estabeleceram com o início da ocupação, passando pela estruturação do acampamento até o convívio continuado com reuniões, assembléias, participação em cursos de formação em outras cidades, viagens a outras áreas de acampamento e assentamentos e, ainda, à capital do Estado para a realização de marchas de protesto e mobilizações para reivindicações do movimento.

O fator desencadeador do primeiro despejo, conforme relembraram alguns trabalhadores, foi o arrendamento25 da propriedade a um grande produtor de cana-de-açúcar e criador de gado. Tal fato levou o proprietário da fazenda pedir judicialmente a reintegração de posse. Concedida a reintegração, os trabalhadores afirmaram que lhes foi dado pelos policiais um prazo de uma hora para desocupar a área e recolher seus pertences. Logo em seguida tiveram os barracos incendiados.

De acordo com A. (trabalhador acampado, 54 anos) DIÁLOGO I

A.: Foi o primeiro despejo. (J26.: O senhor tava aqui?) Tava. (J.: Como foi?) Nós tava aqui, nós tava até... nós tava dentro do mato caçando uma rolinha, um preá, quando nós demos fé aí, encostou três ônibus aqui, né? Aí, de lá os menino gritaram, né? Os menino gritaram. Um bocado de gente, foi um bocado acolá, para as terra acolá, foram chamar a gente. E quando cheguemo aqui tava vermelho aqui de polícia, aí: -“Vamo botar fogo, vamo botar fogo nas barraca tudinho”. Aí, nós saímos dentro, tiramos os troços que tinha que tirar, e eles botaram fogo.

Com o despejo, alguns trabalhadores desistiram de continuar no local, os demais se instalaram nas margens da rodovia, ao lado da propriedade. No prazo de uma semana posterior ao despejo, novamente os trabalhadores ocuparam a fazenda, que também resultou em despejo, dessa vez negociado com o delegado do município.

25 Arrendamento: forma de contrato na qual o arrendatário paga uma quantia em dinheiro ou em produto

para fazer uso da propriedade de outro, por tempo determinado em acordo.

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Diante desse episódio, podemos ver como a ocupação de terras improdutivas abre uma discussão em torno da questão agrária, acirra relações de força no interior da sociedade, forças essas que podem ou não culminar em seu uso extremo, como a institucionalização da repressão, fato não raro nos fenômenos de ocupações de terra. Por outro lado, esses fenômenos podem demonstrar uma capacidade organizativa dos grupos populares, gerando nos indivíduos um acirramento de suas reivindicações, fomentando estratégias de resistência:

DIÁLOGO I (continuação)

J.: O que foi que o senhor achou disso?

A.: Eu achei uma tristeza grande. Uma tristeza grande. Que a gente já não tem onde morar, mora numa lona preta dessa, né? Aí, então chegar a polícia e bota fogo, né? Quer dizer que fiquemos desamparado, né? Quer dizer que fiquemos no meio da rodagem, né? Como de fato fiquemo aí no meio da rodagem, e trouxeram mais um carro pra soltar nós aonde quisesse. “-Não, ninguém vai sair daqui não, que nós já tamo aqui na luta, vamo, vamo continuar na nossa luta," né? Aí, então, nós cheguemo: “-Vamo fazer as barraca de novo", aí, fizemo aqui. Outra vez, “-Vamo botar pra dentro?," "-Vamo". Botemo, aí, veio o gerente da fazenda e disse: “Vou fazer um pedido a vocês:” -Você bote pro lado de fora pra não vim mais... não botarem mais fogo. Aí, vocês tando aqui do lado de fora, aí, então, vocês tão com a fazenda ocupada “. Aí, nós matutemo, né? Quando foi o outro dia, chegou um delegado, né? Aí pediu pra gente tirar. Aí, combinemo tudinho: “-Vamo tirar?” “ -Vamos”. Aí, botemo as barraca pra aqui fora, até hoje tá aqui. Completando já mais de dois anos que nós tamo aqui, nesse sufoco, debaixo dessa alta tensão, né? Sujeito a morrer todo dia, né? (A., 54 anos).

Pelo exposto, podemos ver como o processo de luta, no contexto do acampamento investigado, promoveu uma experiência de resistência, de continuidade na área a despeito das inúmeras adversidades vivenciadas no cotidiano.

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Tabela 01: Acampamentos de Trabalhadores sem-terra do Rio Grande do Norte

Referências

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