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O relato sobre o acampamento, por parte das crianças, ocorreu quando foi perguntado a duas delas se viam diferenças entre adultos Sem Terra e crianças nessa mesma condição. Chamaram então a atenção para a diversidade em relação à forma de lutar, pois entendem que elas ainda estão aprendendo, visto que, sendo crianças, ainda não têm a responsabilidade de arcar com sua sobrevivência.

É que nossos pais já passaram por várias coisas no acampamento, já enfrentaram muitas dificuldades com os policiais, com o frio, quando não tinha roupa, não tinha luz, nem chuveiro, e nós ainda estamos aprendendo a lutar (Andréia, 10 anos).

É que nós estamos aprendendo a ser Sem Terra e eles já são Sem Terra (Volnei, 8 anos).

Como vimos anteriormente, a aprendizagem da luta, a formação da identidade Sem Terra, passa pela dimensão da experiência. É experimentando, é fazendo o Movimento que as pessoas se formam. Assim, para além das crianças saberem sobre o acampamento com base nos relatos dos adultos, elas o vivem, de modo a experienciar, a

Esse recado desestabiliza um olhar naturalizado sobre a infância, levando ao possível questionamento de um certo jeito “adultocêntrico” de olhar as crianças, que tem impedido enxergá-las na complexidade das relações que se intercruzam nas suas diferentes constituições. Ora dependentes e ora autônomas; ora inconstantes, desatenciosas e ora racionais e concentradas em seus propósitos; ora desordeiras e ora organizadas e valentes. Apontar essas características, não quer dizer que estamos querendo estabelecer uma listagem de comportamentos que definem o ser criança, mas, ao contrário, trata-se de justamente questionar aquilo que comumente temos aceitado sem crivo crítico sobre as conceituações idealistas de infância. Não são raras as explicações das ciências sobre a criança, as quais buscam estabelecer padrões de comportamentos infantis, simplificando e homogeneizando os vários “tipos de crianças”.

A disseminação de um discurso idealista e abstrato sobre as crianças, tem contribuído para que elas passem a ser desrespeitadas duplamente: primeiro por não serem reconhecidas nas suas diversidades, prevalecendo no imaginário popular, a idéia homogênea de criança branca, rica e inocente porque isenta do mundo do trabalho; segundo porque atrelada a essa imagem, encontra-se a idéia de dependência em relação aos adultos, o que as coloca na condição de submissas e incapazes, ou seja, numa relação de poder em que são hierarquicamente vistas como menores.

Vimos então que nesse manifesto das crianças conclamando a cooperativa a cumprir o que fora acordado, existe uma demonstração legítima de cidadania ativa, em que as crianças aprendem a exercê-la no seu tempo, lutando por causas que atingem suas vidas imediatamente, enquanto crianças que estão vivendo a vida num determinado momento histórico e que não devem esperar para o dia em que alguma parcela dos que hierarquicamente lhes são superiores lhes outorgar esse estatuto. Este é o recado que as crianças tão sabiamente nos dão neste momento.

Quando muito se fala em cidadania, pouco tem se permitido que esta seja exercida na infância, porque ainda paira o entendimento hegemônico de que às crianças cabe preparar-se para o futuro ofício de cidadãs. Se a educação para a cidadania não se dá pela própria prática, fazendo sentido no tempo presente dos sujeitos, então dá para se dizer que ela não existe. Este é mais um ensinamento sobre o qual as crianças desta pesquisa nos fazem refletir: que estão aprendendo a serem cidadãs à medida que esta

toda a produção. Eles não aceitaram porque eles já tinham tudo pronto esperando. Daí a professora pediu idéias do que fazer. Aí um piá deu a idéia de nós ir em passeata lá pressionar até conseguir. Todo mundo votou, nós era em 37 alunos e duas professoras e deu 37 votos para ir e dois para ficar, que eram os das professoras. Como nós era a grande maioria, não tinha como né, daí nos mandamos lá. Daí todo mundo veio de chapéu, boné do MST, camisa, fomos com faixas, bandeira, cantando, gritando gritos de ordem, fizemos um agito com gritos de ordem em frente do escritório sem parar. Aí fizemos uma equipe de negociação que entrou no escritório para discutir com eles, enquanto os outros ficavam na porta cantando, agitando, ajudando. Daí eu lembro que eles disseram: O que nós vamos fazer, nós vamos pegar uma vara ou vamos conversar com eles. Daí nós falamos: mas nós não vamos sair daqui igual, daí nós ficamos mais de duas horas incomodando, gritando e cantando até que eles liberaram para nós. Nós já sabia que a união faz a força, então se precisasse nós correr ou fazer qualquer coisa, nós ia tudo junto fazer. Eu me lembro que a Irma até chorou de emoção de ter visto nós todos organizados, agitando as bandeiras vermelhas. Deise: Como você se sentiu nesse dia? Fritz: Ah, veio assim um sentimento de Sem Terra mesmo. Então eu me senti muito bem porque nós mostramos que nós já somos lutadores, que podemos fazer parte de tudo e que nunca vamos deixar de lutar pelo que nós queremos. Sentimos como pequenos lutadores (Fritz, 14 anos).

Pelo relato exposto evidenciamos, primeiramente, que a manifestação das crianças foi entendida por elas como uma forma de lutar, nesse caso, por uma causa que consideraram justa de defender. Olhando para o conteúdo desta narrativa e lembrando da expressão de alegria e orgulho pelo feito da criança que a relatou, acreditamos que o recado que ela quis nos dar é justamente o de que precisamos admitir que elas – as crianças – têm suas razões, suas causas, capacidade e autonomia para organizarem-se, colocando seus corpos infantis em luta. Então este é um ponto importante que queremos destacar: o de que as crianças têm relativa autonomia em relação às causas e às formas de luta e que, fundamentalmente, querem ser entendidas e valorizadas por isso.

as ações por meio das quais marcadamente e inesquecivelmente sentiram-se Sem Terrinha. Assim, o que passamos a escrever, não se trata de manifestações observáveis no tempo em que estivemos em campo, mas trata-se da memória viva das crianças, de uma memória que faz questão de não ser apagada.