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UMA PEDAGOGIA EM MOVIMENTO: A MÍSTICA, A LUTA E O TRABALHO NA VIDA DAS CRIANÇAS

2.3.1. O assentamento Conquista na Fronteira: uma história dentro da história

Diário de campo (10/08/2002):

Não poderia deixar de registrar a emoção que me contagiou nesse fim de tarde, quando fui junto com o Fritz cortar pasto. Que poético o entardecer no campo! Céu de aquarela; o sol vai se escondendo ao longe no horizonte, tornando diferentes as tonalidades dos verdes dos campos; os sons serenos parecem um silêncio orquestrado: pássaros, grilos, sapos e, ao longe, a sonoridade de vozes humanas. Que beleza a vida que pulsa em tamanha serenidade. Da terra morta, desabitada e desconhecida, deu-se lugar para a vida que, nesse lugar, se produz poeticamente. Avisto, a uns 100 metros, três pessoas: duas cortando pasto e uma criança olhando. A menina fica junto, conversando e parecendo querer ajudar. Ela sai junto com mais um adulto que leva na cabeça uma bolsa grande, levando também ela um saquinho de pasto nas costas. Os dois saem conversando, cortando os raios de sol que timidamente começam a desaparecer naquele fim de tarde. É a poética do encontro, na roça colorida e sinfônica: crianças, adultos, bichos, verde, céu, sol, sons ...

Assim como é emocionante perceber a poética da vida no campo, também é importante conhecer que, por trás do cenário bonito e inspirador do Conquista na Fronteira existe um outro quadro, de que poucos sabem e vêem. Trata-se de uma longa trajetória de luta, marcada por vitórias, mas também por mortes, sofrimento, dor, violência, fome, frio, doença, desesperança... É certamente uma história de glória, mas que não teve a ajuda da varinha mágica das fadinhas e nem dos superpoderes dos heróis.

Essa “fala” revela um aspecto fundamental construído na luta dos assentados. A conquista de uma vida de razoável conforto e estabilidade não diminuiu a consciência de que é preciso conseguir isto para todas as pessoas. Revela uma preocupação com o conjunto da sociedade, e não apenas com as crianças do Conquista da Fronteira, preocupação com o coletivo, que é também ressaltada por Boaventura Santos como um dos possíveis caminhos para se consubstanciar a utopia de uma outra lógica, uma outra forma de organizar a sociedade.

Essa preocupação com o coletivo é contundente, mesmo para nós que investigávamos o processo educativo das crianças, aparentemente distanciados do aspecto produtivo em geral. Percebemos uma tônica bastante demarcada de reconhecimento de que o que possibilita realizar o confronto com a cultura capitalista e construir um outro jeito de viver é a experiência do coletivo. Trata-se, pois, de um processo educativo baseado na experiência humana, não de uma educação de cunho apenas ideológico, uma inculcação abstrata de valores, mas sim de experienciar estes valores, este novo jeito de ser, de viver, de participar. É sentir o coletivo e sentir-se coletivo em várias dimensões e situações que envolvem a vida humana.

Nesse sentido, como base de sustentação do assentamento, o coletivo aparece em várias instâncias de sua organização: no trabalho, na escola, no lazer, nos costumes, nas relações pessoais e interpessoais, enfim, na organização social e produtiva do assentamento de forma geral. Vale a pena, portanto, abordar, ainda que brevemente, a construção do coletivo do Conquista na Fronteira, sua história, e como hoje ele opera e organiza a vida nas suas várias instâncias, utilizando como guia principalmente o trabalho na Cooperunião e na Escola Construindo o Caminho.

pelas ruas, potreiros, roças, açudes, cachoeiras, nas casas dos(as) amigos(as), no campo de futebol, enfim, esse transitar é livre porque não tem a tensão dos carros, das faixas de segurança, dos semáforos, das disputas das pessoas por espaço, em que o outro é mais um de quem desconfiar e do qual é preciso defender-se. Existe espaço e existe segurança. As pessoas, ao contrário de serem uma ameaça umas para as outras, cuidam- se mutuamente.

Eu acho que aqui o meu filho está aprendendo a confiança nas pessoas. Porque lá na cidade o que a gente ensina: não fale com ninguém, não receba nada de ninguém, fique no colégio, só mamãe é quem te busca e ninguém mais. Aqui eu não me preocupo com a hora que ele chega em casa e com quem ele chega, porque aqui nós somos uma família (Joana, assentada).

A Modernidade exacerbou as marcas que se caracterizam pelo confinamento das pessoas, pelo individualismo, pela competição, pela massificação, pela alienação do sujeito em relação ao tempo, à produção e ao seu próprio consumo, portanto não é de estranhar que estejam presentes preocupações e questionamento sobre o que seja o “progresso”, especialmente em relação aos aspectos fortemente regulados pelos interesses do capital.

Boaventura Santos (2000), analisando as conseqüências que a modernidade trouxe para a sociedade, principalmente pela supervalorização do princípio do mercado e da lógica de dominação da natureza, diz que é preciso aproximar o que a modernidade tratou de afastar. Vimos que no Conquista da Fronteira é presente este movimento, ou seja, a tentativa de construir a vida calcada na aproximação da relação dos sujeitos com eles próprios e com a natureza.

Ser criança aqui neste assentamento é ter liberdade, que hoje em dia e principalmente na cidade as crianças não têm. Eu gostaria que as crianças do planeta todo tivessem um pouco do que têm as nossas crianças aqui, aí sim, seria muito bom ser criança. Mas se você vê uma criança no nordeste, lá é normal, é normal uma criança morrer de fome, crianças que não têm uma alimentação por semana adequada, não tem saneamento básico, isso acontece aqui, nesse nosso Brasil (Joana, assentada).

nosso planeta. A realidade de uma vida mais digna conquistada pela solidariedade e pelo coletivo de ações que uniu utopias no campo e na cidade.

Ouvindo as crianças, percebemos o quanto o gostar do lugar em que vivem está relacionado à possibilidade de terem muito presente o contato com a natureza46. Esse gosto parece ter dois sentidos: um, contemplativo, relacionado à admiração e ao necessário cuidado que as crianças atribuem para sua conservação; e um sentido relacionado à experiência do prazer da interação com as várias possibilidades que a natureza oferece à vivência da infância. Eu mais gosto aqui é da natureza, do espaço para brincar, do canto dos passarinhos (Volnei, 8 anos).

A diversidade das árvores existentes possibilita a experiência de subir, balançar- se, colher os frutos fresquinhos, construir casas, esconderijos, balanços, descobrir cavernas... O contato com a terra e a grama permite que as crianças andem descalças, façam estradas, buracos, brinquem de escorregar com papelões e folhas de bananeira, façam melecas e tomem banhos de barro... Sabe Deise, outro dia o açudão secou e daí fomos lá para dentro e tomamos um baita banho de barro, né Picke! (Thiago, 7 anos). O contato com a água também é valorizado pelas crianças quando contam com a possibilidade de terem próximo a suas casas quatro cachoeiras e nove açudes, além das pequenas cachoeirinhas que se formam nas laterais das estradas de chão nos dias de chuva...

Lá em casa, quando não tem aula e nem trabalho, nós sempre brincamos de pular nas poças de água, na água que corre das valetas, de se jogar na cama, pular e correr em redor de casa, pular no barro e às vezes nós brincamos de se esconder... (Cléber, 9 anos).

Além disso, a amplitude do horizonte que se descortina ao longe no Conquista na Fronteira produz um gosto de liberdade. A liberdade é um aspecto que as crianças valorizam muito em suas vidas. Para além do discurso, a atitude delas revela isso. Tal atitude se atrela a dois sentidos: a liberdade de ter amplitude de espaço e ainda a de sentir segurança nele. É comum enxergar as crianças num movimento de vai-e-vem

46 Outras pesquisas que também foram ouvir as crianças em relação ao que elas desejavam para suas

infâncias, também destacaram a importância da natureza. Destacamos a dissertação de mestrado de Oliveira, Alessandra. M. R. Do outro lado: A infância sob o olhar de crianças no interior da creche. CED/UFSC: Florianópolis, 2001.

torno dos quais se estruturarão as reflexões sobre a construção da infância dos Sem Terrinha no Conquista da Fronteira.