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UMA PEDAGOGIA EM MOVIMENTO: A MÍSTICA, A LUTA E O TRABALHO NA VIDA DAS CRIANÇAS

2.3.2. O coletivo, a cooperativa e as crianças

Dalmagro (2002) realiza uma diferenciação entre a cooperativa e o coletivo, referindo-se à primeira como a entidade jurídica que organiza, administra a produção agropecuária do assentamento, enquanto que o coletivo abrange toda a vida da comunidade, as relações, os valores, a luta e os sonhos. Analisa que, apesar do coletivo assumir a face da cooperativa, este não se resume a ela. O coletivo não somente é anterior à cooperativa, é mais amplo e base de sustentação desta (ibidem, p.58).

O coletivo nasceu antes da criação da Cooperunião, e foi a partir dele que começaram a ser criadas as normas do assentamento que posteriormente consolidaram-

tem resquício e influências externas muito fortes e se a gente achar que agora está pronto, que o coletivo está consolidado, isso é ilusão, porque o coletivo te traz desafios diariamente, desafios novos inclusive, então tem que estar construindo todo o dia, tem que estar regando a consciência que nem uma planta, se não ela murcha (Irma, assentada).

Considerando de antemão as várias adversidades que advieram e advêm na efetivação de uma proposta de vida coletivizada, em razão dos elementos já apontados e da impregnação da cultura capitalista que conforma um jeito de ser pautado na propriedade privada e no individualismo, Dalmagro (2000), em sua dissertação de mestrado, analisa os motivos que levaram ao êxito o processo de coletivização no assentamento Conquista na Fronteira. Em sua análise destaca dois elementos: o primeiro relaciona à experiência coletiva dos(as) assentados(as) no acampamento, o que considera que esta tenha sido uma espécie de estágio para o assentamento:

É como se fosse um estágio para o assentamento, quando então teriam que trabalhar, comercializar, investir, educar os filhos, enfim, viver juntos não mais em uma condição provisória, mas em uma situação que buscariam construir de forma definitiva. Os sem-terra foram avançando nos estágios de cooperação: de uma forma mais simples para formas mais complexas, com mais famílias, em situações diferentes (Dalmagro, 2002, p.53-54).

O segundo aspecto a autora atribui ao fato de que a relação entre os dois grupos no assentamento foi construída com base em muito diálogo e respeito às diferenças. Com o primeiro grupo auxiliando o segundo, mas com a clareza de que a construção coletiva deveria ser lenta, todavia permanente.

Fundamental nesse processo foi o respeito às diferenças e, somente quando estavam em condições semelhantes e mais preparados para tal experiência, partiram para o processo de unificação total. A coletivização também partiu das necessidades dos grupos. Ao contrário de diversos outros coletivos que se formaram nos assentamentos, os quais iniciaram de forma totalmente coletiva como se todos estivessem em condições iguais, os assentados do Conquista na Fronteira foram sábios em saber esperar, saber conduzir e saber a hora de esperar (Dalmagro, 2002, p.55).

no Movimento, fizemos uma festa, um ato em que se plantou uma árvore, uma placa que existe até hoje. Mas isso foi se construindo aos poucos, foi dado tempo ao tempo, não foi imposto desde o início, as pessoas foram participando das manifestações, cursos do MST, e aos poucos foi se trabalhando bastante. Não poderia ter inserção no Movimento sem que as pessoas tivessem muito claro o que isto significa (Marcos, assentado).

Os assentados contam que a aproximação das famílias começa a concretizar-se a partir da escola, da reza, do esporte; iniciaram a trabalhar o setor social para construir, a partir daí, as condições que posteriormente permitiriam unificar também o setor produtivo.

A unificação da produção começou em 1991, sendo que a apicultura foi o primeiro trabalho unificado. No ano seguinte, coletivizaram a produção referente aos gados de corte, e, posteriormente, coletivizaram as máquinas e a produção de grãos. Foi um processo repleto de conflitos, tensões, contradições. Até hoje realiza-se essa construção no cotidiano do assentamento, pois sabemos que história se faz num processo dialético e não linear, portanto cheio de idas e vindas sem ponto de chegada pré-definido. Dia após dia se colocam novos desafios e o grupo de pessoas vai buscando superá-los num movimento que envolve também as aspirações individuais, as diferenças de visões, expectativas, gostos, enfim, são pessoas que constroem uma coletividade comum, ao mesmo tempo em que também são heterogêneas, como adverte esta assentada:

Hoje são praticamente 14 anos e a gente tinha aquela idéia que com o tempo não ia mais precisar de normas. Nós achávamos que já ia estar todo mundo tão acostumado que não ia mais precisar. E foi bem ao contrário, nós tivemos que fortalecer as normas, mudar algumas coisas porque tudo tem movimento. Então o que garante é a discussão permanente que a gente tem que estar fazendo, porque o ser humano é um mistério. Então a formação, a discussão tem que se dar no cotidiano, tem que ser permanente. Porque a gente vive numa sociedade individualista, egoísta e toda formação que a gente tem só está voltada para o indivíduo, não é para achar saídas coletivas. Então a gente

construído num processo lento, de modo que as famílias do segundo grupo fossem aos poucos se convencendo e compreendendo a proposta do coletivo.

Recordando essa árdua trajetória que envolveu o processo de unificação dos dois grupos, um assentado deixa claro que junto à idéia da coletivização total estava colocada a necessária inserção das pessoas do município no Movimento Sem Terra, uma vez que foi lá que se construiu a base para o modo de viver coletivizado.

Esse processo foi muito trabalhoso, pois, do pessoal que veio do município, muitos não tinham nem ouvido falar em MST, nem em trabalho coletivo. O grupo que veio do MST já estava mais avançado em relação a experiência coletiva, mas também na prática não sabia se ia dar certo. Então se começou com dois grupos separados para ver se ia dar certo, mas nunca perdemos a perspectiva de juntar os grupos. O grupo do Movimento liberou uma pessoa para ficar direto ajudando o outro grupo a se organizar. A partir daí foi se discutindo, fazia grupos de estudos, se falava da importância de se permanecer no Movimento. Isto demorou em torno de três anos, quando o grupo do município se decidiu em fazer parte do MST. O dia em que esse grupo ingressou

Passeata em comemoração ao primeiro aniversário do assentamento Conquista na Fronteira. Foto cedida pela Cooperunião.

assentadas juntas 60 famílias, 35 organizadas pelo MST e 25 provenientes de comunidades muito pobres do município.

Foi sobre forte neblina que no dia 24 de junho de 1988 chegamos e entramos na área, vindos dos diferentes grupos do acampamento. Éramos famílias que já tínhamos uma trajetória conjunta de mais de três anos no acampamento e que trazíamos um acúmulo de discussão e amadurecimento ao chegarmos na área. O outro grupo de famílias, que vieram de comunidades do interior do município não tinham uma vivência de coletivo. Algumas dessas famílias foram de certa maneira trazidas ao assentamento como forma das comunidades “se livrarem” das mesmas, uma vez que eram extremamente pobres, com muitos filhos e com vários problemas em decorrência do processo de exclusão a que foram submetidas (MST, 2000. Coleção Fazendo Escola n. 3, p.8).

Para os assentados advindos dos acampamentos do MST, o coletivo já era uma decisão para a qual estavam motivados e de certa forma preparados, uma vez que a experiência de vida coletivizada no acampamento junto com as inúmeras discussões possibilitava certa maturidade ao grupo. Já para os sem-terra do município o desafio era muitíssimo maior, visto que as famílias - a maioria delas totalmente desestruturadas, excluídas de suas comunidades e “jogadas” para outros contextos - nem mesmo se conheciam entre si e não contavam com a experiência e preparação do outro grupo. Dessa forma, enquanto que o Grupo I – formado pelas famílias advindas do MST – avançava na organização e na efetivação da produção coletiva, culminando com a fundação da Cooperunião em 1990, o grupo das famílias do município viveu um processo mais complexo, algumas famílias que não se adaptaram foram desistindo e substituídas por outras do município ou mesmo dos acampamentos do MST, até conseguir que se firmasse a constituição de um segundo grupo dentro do assentamento. Das 25 famílias que vieram de fora, 12 foram recuperadas e integradas ao processo do MST e hoje estão juntas e ajudam a contar a história (MST, 2000. Coleção Fazendo História, n.3, p.8).

Embora, em 1990, a fundação da Cooperunião já representasse um êxito em relação à produção cooperativada, essa sociedade ainda era uma realidade que envolvia apenas as famílias do MST, não possibilitando, portanto, uma maior vivência de coletividade entre os dois grupos. O pessoal do Grupo I, contudo, sabia que era preciso enfrentar o desafio de coletivizar tudo, mas ao mesmo tempo sabia que isso deveria ser

Uma história construída por sujeitos concretos movidos pela necessidade de sobrevivência. Por isso, trata-se de uma trajetória marcada também por muitas contradições, conflitos, ambigüidades em meio a muita coragem, organização e perseverança.

Assim, a história do Conquista na Fronteira começa no dia 25 de maio de 1985, quando houve a primeira ocupação de terras organizada pelo MST no Estado de Santa Catarina. Foram mais de 1700 famílias, que saíram de seus municípios da região oeste de Santa Catarina para acamparem em Chapecó e São Miguel do Oeste.

Dessas centenas de famílias, muitas estão hoje colhendo os frutos que começaram a semear nesse inesquecível e histórico dia. Muitas vivem a realidade de um sonho que começou nos acampamentos que se constituíram nesses dois municípios. Essas corajosas pessoas são as responsáveis pelo fato de nosso Estado ter aproximadamente 113 assentamentos que, em conjunto, ocupam mais de 78 milhões de hectares de terra, hoje cumprindo sua função social, qual seja, a de abrigar cinco mil famílias assentadas pelo MST.47

Iremos falar especialmente de 35 famílias, que acreditaram muito na força que se adquire quando estão juntos os(as) trabalhadores(as) organizados. Para essas pessoas, a união de fato faz a força, tanto que foi pela união que conseguiram conquistar a terra e, mais do que isso, o meio pelo qual aprendem dia após dia a construir um novo jeito de viver. Assim, este grupo percebeu que a organização coletiva e cooperada aprendida no acampamento deveria ser a forma de conceber também a vida no assentamento, de tal modo que tanto a produção como a vida, de forma geral, fosse realizada numa perspectiva de coletividade. Essa concepção permitiu que o grupo posteriormente assentado em Dionísio, ao longo dos três anos e três meses de acampamento, fosse gerindo um longo processo de discussão e estudo sobre a organização coletiva. Como resultado, o MST conseguiu negociar junto ao INCRA e à Prefeitura de Dionísio Cerqueira que aquela área seria destinada para grupos coletivos. Esse acordo foi necessário também pelo fato de que as autoridades desse município queriam assentar na mesma área 25 famílias de sem-terra locais, e assim foi que em junho de 1988 foram

47 Segundo dados atualizados em maio de 2001, são 113 assentamentos, 4.692 famílias assentadas e