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Uma imagem fotográfica nunca será o modelo fiel do seu referente Em qualquer período histórico, a fotografia documental sempre será primeiramente da ordem do índice, ou

2. DOCUMENTÁRIO IMAGINÁRIO

2.1 FUNDAMENTAÇÕES INICIAIS

2.1.1 O Imaginário

2.1.1.3 Acerca de alguns conceitos

No mundo imaginário de Durand (2004), não há espaço para a pedagogia oficial do Ocidente fundada no princípio aristotélico do terceiro excluído, ou seja, ou X ou Y. A sua lógica do imaginário é pluralista e de inclusão, onde se admite a paradoxal combinação de X e Y, o que Bachelard denominou de pluralismo coerente. Segundo Durand (2004), “a origem da coerência dos plurais do imaginário encontra-se na sua natureza sistêmica, e esta, por sua vez, funda-se no princípio do terceiro dado, na ruptura da lógica bivalente onde A exclui não- A.” (DURAND, 2004, p. 84). Assim, todo objeto imaginário é dilemático e ambíguo, pois compartilha com seu oposto uma qualidade comum, ou seja, trata-se de uma lógica da inclusão, do paradoxo e da contradição.

Para os mitólogos que praticam a mitocrítica e a mitoanálise, foi a partir dessa lógica que se originou o princípio da redundância, ou seja, na repetição das ligações simbólicas que compõem os processos do mito, do onírico ou do sonho. De acordo com Durand (2004), a redundância aponta sempre para um mitema. O mito, por não raciocinar, tenta convencer pela repetição de uma relação ao longo de todas as derivações possíveis. Durand (2004) compara o mitema com a idéia de holograma de Edgar Morin, no qual cada fragmento e cada parte contém em si a totalidade do objeto. O que nos leva a concluir que

o imaginário, nas suas manifestações mais típicas (o sonho, o onírico, o rito, o mito, a narrativa da imaginação etc.) e em relação à lógica ocidental desde Aristóteles, quando não a partir de Sócrates, é alógico. A identidade não-localizável, o tempo não-assimétrico e a redundância e metonímia halográfica definem uma lógica

inteiramente outra em relação àquela, por exemplo, do silogismo ou da descrição

eventualista, mas muito próxima, por alguns lados, daquela da música. (DURAND, 2004, p. 87).

Durand (2004) introduziu um novo modo de olhar o cotidiano, mostrando que o que acontece no nível do imaginário é uma incessante troca entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimidações objetivas provenientes do meio social denominada de trajeto antropológico. Se no ser humano existe um querer agir sobre o mundo, buscando, por meio dessa ação, a satisfação de suas necessidades e desejos, o meio, então, age sobre essas vontades, tentando enquadrá-las em regras pré-estabelecidas. Estabelece-se, então, uma tensão entre o querer e o dever.

O trajeto antropológico representa a afirmação na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de vaivém contínuo nas raízes inatas da representação do sapiens e, na outra ponta, nas várias interpelações do meio cósmico e social. (DURAND, 2004, p.90).

É interessante notar como Morin (1970) expõe de forma semelhante a questão das permutas que ocorrem no imaginário do ser humano, as quais ele chama de transferências imaginárias.

É durante esse incessante vai-e-vém entre o eu que é outrem e os outros que há no

eu, entre a consciência subjetiva do mundo e a consciência objetiva do eu, entre o

exterior e o interior, que o eu imediatamente objeto (duplo) se interioriza e o duplo interiorizado se atrofia e se espiritualiza em alma; ao passo que o macrocosmos imediatamente subjetivo se objetiva, para vir a constituir o mundo objetivo submetido a leis. (MORIN, 1970, p.249)

Para Morin (1970), essas transferências imaginárias enriquecem o homem geneticamente. É por meio do imaginário que se constrói e desenvolve a realidade do homem. Assim, não é possível dissociá-lo do homem material. O imaginário é parte vital do ser humano; é o alicerce do que Morin (1970) chama de projeções-identificações – “a partir do qual o homem, ao mesmo tempo que se mascara, se conhece e se constrói.” (MORIN, 1970, p.250)

Nos anos 1980, Durand (2004) criou um modo de classificar os elementos do imaginário em uma dada sociedade e em um determinado momento. Conhecida como esquema da tópica (de topos, lugar) sociocultural do imaginário, procurava situar os elementos complexos de um sistema em um diagrama. Para isso, ele utilizou o esquema do funcionamento da psique de Freud e o dividiu em duas tópicas: o nível do consciente solidário com um inconsciente e uma outra, que se dividia em três níveis: o consciente dividia-se em ego e superego, enquanto o inconsciente era denominado isso (id). O que coincidia com as duas pontas do trajeto antropológico onde o inconsciente e o isso situam-se na ponta do trajeto inconsciente e o ego e o superego na ponta educada.

Dividindo um círculo – que representa o conjunto imaginário de uma determinada época da sociedade – em duas fatias na horizontal, teremos na parte de baixo para cima as três instâncias freudianas que representam uma sociedade. A fatia inferior representa um isso antropológico, lugar que Jung denominou de inconsciente coletivo, chamado por Durand (2004) de inconsciente específico e que está ligado à estrutura psicológica do homem. Nesse campo se formam as imagens arquetípicas. A segunda fatia horizontal do diagrama corresponde ao ego freudiano.

É a zona das estratificações sociais onde são modelados os diversos papéis conforme às classes, castas, faixas etárias, sexos e graus de parentesco ou em papéis valorizados e papéis marginalizados, de acordo com o corte vertical do círculo por um diâmetro. (DURAND, 2004, p.94).

Os papéis valorizados tendem a se institucionalizar em um conjunto coerente e com códigos próprios, enquanto os papéis marginalizados ficam no underground, sendo mais

dispersos e pouco coerentes. “Contudo, estas imagens de papéis marginalizados são os fermentos, bastante anárquicos, das mudanças sociais e do mito condutor [...]” (DURAND, 2004, p. 94).

Por fim, na fatia horizontal superior do diagrama está o superego da sociedade, que organiza e racionaliza em códigos, planos, ideologias e programas os papéis positivos do ego sociocultural.

Assim, temos duas dimensões da tópica: a vertical, que divide as duas metades do círculo, que, por sua vez, representam os dois hemisférios das contradições sociais de uma sociedade; e a horizontal, que reparte o imaginário sociocultural em três fatias. Acrescentando uma dimensão temporal, é possível percorrer, partindo do pólo inferior, todo o hexágono no sentido horário. Assim, partimos de uma extremidade repleta de fluxos de imagens do isso, parte confusa do imaginário, que aos poucos vai-se regularizando na parte mediana, de acordo com os papéis, para terminar na extremidade superior, onde o alógico do mito se atenua em favor da lógica em curso.

Portanto, os conteúdos imaginários (os sonhos, desejos, mitos etc.) de uma sociedade nascem durante um percurso temporal e um fluxo confuso, porém importante, pra finalmente se racionalizarem numa teatralização (Jean Duvignaud, Michel Maffesoli) de usos legalizados (Algirdas, Greimas, Yves Durand), positivos ou negativos, os quais recebem as estruturas e seus valores das várias confluências sociais (apoios políticos, econômicos, militares, etc.), perdendo assim sua espontaneidade mitogênica em construções filosóficas, ideológicas e codificações. (DURAND, 2004, p. 96).

Outro método de abordagem do imaginário desenvolvido por Durand (2004) surgiu a partir da metáfora da bacia fluvial – que determina o curso do rio, que, por sua vez, é regulado pelo fluxo dos afluentes – e foi transformada no conceito de bacia semântica. Esse conceito, que já estava implícito na tópica, se divide em seis fases.

A primeira fase, denominada escoamento, são pequenas correntes descoordenadas e antagônicas (na tópica ressurgem no setor marginalizado), cada vez mais imobilizadas em códigos, regras e convenções. Nessa fase, surgem alguns movimentos que vão formar os novos imaginários, como os que vieram para contestar o iconoclasmo. A segunda fase, a divisão das águas, é o momento de junção de alguns escoamentos que se opõem aos estados imaginários precedentes. Por exemplo, na Idade Média, quando os franciscanos se revoltaram contra as riquezas ostensivas da Igreja. Depois vem o nome do rio, que se dá quando um personagem real ou fictício caracteriza a bacia semântica como um todo. É o nome do pai mitificado: Francisco de Assis, Beethoven, Hegel são alguns exemplos. A quarta fase, a organização dos rios, consiste em teorizar uma filosofia dos fluxos imaginários, podendo ocorrer alguns exageros por parte dos seus fundadores. A quinta fase, as margens do

imaginário, diz respeito à filosofia do imaginário e à mitodologia, estudadas pelo grupo de pesquisa ao qual Durand faz parte. A última fase, os deltas e os meandros, ocorre quando o inventor dos mitos, que transportou o imaginário específico ao longo do rio, se desgasta e atinge uma saturação limite, deixando-se penetrar aos poucos por outros escoamentos.

Segundo Durand (2004), a duração de uma bacia semântica, que vai dos primeiros escoamentos até os últimos meandros, varia de 150 a 180 anos, ou seja, o núcleo de três ou quatro gerações, necessário para o imaginário familiar, sob pressão exterior, transformar-se em um imaginário coletivo.