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Uma imagem fotográfica nunca será o modelo fiel do seu referente Em qualquer período histórico, a fotografia documental sempre será primeiramente da ordem do índice, ou

2. DOCUMENTÁRIO IMAGINÁRIO

2.1 FUNDAMENTAÇÕES INICIAIS

2.1.1 O Imaginário

2.1.1.4 Imaginário e técnica

À primeira vista, imaginário e técnica são palavras que soam como opostos. Parecem estar se contradizendo e se desprezando mutuamente; no entanto, elas trabalham em um mesmo sentido. É, pois, por meio de instrumentos técnicos que o homem procura por em prática os seus sonhos, suas construções mentais. Como explica Morin (1970):

Ao antropo-cosmomorfismo do imaginário corresponde o antropo-cosmomorfismo da prática, à alienação e à projeção da substância humana nos sonhos corresponde a alienação e a projeção nos instrumentos e no trabalho, isto é, o longo e ininterrupto esforço para dar realidade à carência fundamental: fazer do homem o sujeito do mundo. (Morin, 1970, p. 250)

Para suprir suas carências, o homem serve-se de instrumentos técnicos capazes de transformar seus sonhos em realizações práticas. Assim foram inventadas as asas de Ícaro, o avião, a fotografia, o cinema e tantas outras utopias que se tornaram concretas. Dessa forma, “imaginário e técnica apóiam-se um no outro, ajudam-se mutuamente. Encontram-se sempre, não apenas como negativos, mas como fermentos mútuos.” (MORIN, 1970, p.250)

Cada sonho, mesmo com sua irrealidade, já carrega em si a semente de uma possível concretização. “Todos os sonhos são uma realidade irreal, que aspira, contudo, a uma realização prática.” (MORIN, 1970, p.251). Para Morin (1970), as grandes invenções são precedidas de aspirações míticas que a princípio eram tidas como irreais e, a partir do momento em que se tornam concretas, são muitas vezes tomadas como feitiçaria ou loucura. Haja vista a invenção da fotografia (1826), que foi interpretada como uma ameaça ou negação da arte por intelectuais da época, como por exemplo, o poeta Charles Baudelaire (1821-1867). Assim, sonho e instrumento se encontram e se fecundam. “São os nossos sonhos que preparam as nossas técnicas: máquina entre as máquinas, o avião nasceu dum sonho. São as nossas técnicas que conservam os sonhos [...]” (MORIN, 1970, p.251)

Em Máquinas de imagens: uma questão de linha geral, ao tomar o cinema como exemplo, Dubois (2004) fala sobre a influência que os instrumentos exercem sobre o imaginário, tanto no processo de construção da imagem quanto no momento posterior, o da recepção.

Para Dubois (2004), as máquinas intervêm no coração do processo de constituição da imagem, já que “enquanto instrumentos (technè), são intermediários que vêm se inserir entre o homem e o mundo no sistema de construção simbólica que é o princípio mesmo da representação.” (DUBOIS, 2004, p.38)

Da mesma forma, a máquina é também produtora de imaginários, e sua força está não somente na dimensão tecnológica, mas sobretudo na dimensão simbólica. Ao entrarem em uma sala de cinema, as pessoas vêem muito mais do que sombras projetadas por uma máquina em uma tela. Pois, como explica Dubois (2004), a maquinaria cinematográfica não é apenas geradora de imagens, é também produtora de afetos, exercendo um enorme poder sobre o imaginário dos espectadores.

2.1.1.5 A civilização da imagem

No século XX, assistimos à explosão da civilização da imagem, presente em todos os níveis de representação da vida do homem ocidental. A imagem midiática disponibiliza sentidos para as escolhas econômicas e profissionais, costumes e aparências, às vezes escondendo-se atrás de uma publicidade, outras encobrindo alguma ideologia. O que, de acordo com Durand (2004), acabou por causar um efeito-perverso:

embora a pesquisa triunfal decorrente do positivismo tenha se apaixonado pelos meios técnicos (óticos, físicos-químicos, eletromagnéticos etc.) da produção, reprodução e transmissão das imagens, ela continuou desprezando e ignorando o produto de suas descobertas.” (DURAND, 2004, p.33)

Também Dubois (2004)45 posicionou-se criticamente em relação aos meios técnicos, afirmando que a tecnologia é sempre associada à idéia de novidade, embora não atinja necessariamente o terreno estético, da criatividade e da inovação. Para o autor, “o discurso da

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É importante ressaltar que Durand e Dubois trabalham com referências completamente diferentes. Durand usa o conceito de imagem simbólica que deriva da filosofia de Ernst Cassirer. Dubois utiliza referências derivadas principalmente da semiótica de Charles Peirce. Dessa forma, ícone e símbolo são coisas antagônicas para Cassirer/Durand e Dubois/Peirce. De qualquer maneira, optamos por inserir aqui o pensamento de Dubois, que embora percorrendo caminhos diferentes, chega a conclusões próximas à de Durand, com relação à banalização da imagem.

novidade oculta completamente tudo o que pode ser regressivo em termos de representação (ocultação do estético em proveito do puramente tecnológico) [...]” (DUBOIS, 2004, p.35)

O mais grave, como nos alerta Durand (2004), é que o desenvolvimento tecnológico acabou provocando uma vasta produção de imagens, distribuídas pela mídia com tanta generosidade que vêm enfraquecendo a nossa capacidade crítica e se abrindo às manipulações éticas. Segundo Durand (2004), essa explosão não ocorreu com o imaginário: “a enorme produção obsessiva de imagens encontra-se delimitada ao campo do distrair.” (DURAND, 2004, p.33)

Se por um lado a civilização ocidental aprendeu a conviver e a explorar o que as imagens têm de proveitoso a nos oferecer, por outro a abundância de imagens que remetem ao indizível e ao sem significado acabou por se tornar uma nova forma de iconoclasmo. A imagem banalizada reprime a subjetividade, anestesia a criatividade e sufoca o imaginário. Ao reduzir-se progressivamente a mero registro, ela perde a força que outrora possuía.

Verdade que a civilização da imagem permitiu a descoberta dos poderes da imagem há tanto tempo recalcados, aprofundou as definições, os mecanismos de formação, as deformações e as elipses da imagem. Por sua vez, a explosão vídeo, fruto de um efeito perverso, está prenhe de outros efeitos perversos e perigosos que ameaçam a humanidade do Sapiens. [...] a imagem enlatada anestesia aos poucos a criatividade individual da imaginação [...]” (DURAND, 2004, p. 118)

Assim, ao olharmos para os princípios básicos da fotografia documental, acreditamos que – pelos valores éticos e estéticos dos trabalhos, pelo tipo de propostas e intenção dos fotógrafos (logicamente com valores e intensidades diferenciados) – ela não se enquadra na condição de mera produtora de imagens enlatadas. Pelo contrário: como já mostramos no primeiro capítulo, a fotografia documental procura estimular a produção de novos sentidos. O Documentário Imaginário prossegue nessa busca.