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Para fazer a série Arturos (1993-1997), por exemplo, Neves documentou o cotidiano e a religiosidade de descendentes de quilombolas do município de Contagem (MG) Durante

PAISAGEM SUBMERSA(2005),

E- A estética sobre o documental em contraposição à união da estética com o documental

3.1 Silent Book, de Miguel Rio Branco 1 O autor

3.1.6 O Museu Imaginário (série 3)

Miguel Rio Branco costuma viajar pelo passado em busca de inspiração para o seu trabalho. Também diz preferir extrair informações dos museus de ciências naturais do que dos museus de arte contemporânea para criar suas imagens. Na verdade, a matéria-prima para suas fotografias pode ser encontrada nos espaços públicos e privados à margem da sociedade, como evidenciamos em Silent Book.

Percebemos que o Museu Imaginário de Rio Branco encontra-se voltado, de maneira especial, para a pintura, de forma que imagens fotográficas e pictóricas mantêm um diálogo intenso no livro. O próprio artista, que tem a pintura como base da sua formação, assume a influência dela em seu trabalho: “[...] às vezes, faço pintura com a fotografia, por mais contraditório que possa resultar.” (RIO BRANCO; SIZA, 2002, p.22). (tradução nossa).72

A influência pictórica transparece no trabalho de Rio Branco de duas maneiras. Primeiramente, quando o fotógrafo, ao colecionar objetos, depara-se com uma pintura – original ou reproduzida, bem conservada ou deteriorada, não importa – e a reproduz fotograficamente, criando, assim, uma imagem secundária. Como já falamos, são imagens- chave que se encontram espalhadas pelo livro. Além de Touch of Evil e da foto à esquerda de Hell Dipytch [série 1, capa e p.14-15], podemos encontrar no livro um outro exemplo de pintura reproduzida. Nessa imagem [p.76], uma jovem, com o colo iluminado e um dos seios à mostra, encontra-se desmaiada nos braços de uma figura de traje vermelho, no canto superior-esquerdo, quase que apagada na escuridão da cena. À direita, um rosto feminino a observa. Ao refotografar essa imagem, Rio Branco não se preocupou em fazê-lo de forma fiel, como, por exemplo, um fotógrafo que estivesse reproduzindo imagens para um catálogo de museu o faria. Pelo contrário: podemos perceber como ele interferiu na pintura ao deixar um rastro de luz refletir na parte superior da imagem, criando sutilmente uma textura, que, ao observarmos atentamente, percebemos que não faz parte do seu original. Além disso, percebemos o gesto do corte do fotógrafo, definindo, por conseguinte, um modo de leitura particular. Assim, Rio Branco enfatiza o caráter de representação da imagem fotográfica em seu trabalho.

Também percebemos referências pictóricas em Silent Book quando o fotógrafo, durante o ato fotográfico, conscientemente ou não, compõe suas imagens com características

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“[…]a veces, hago pintura con la fotografía, por más contradictorio que pueda resultar.” (RIO BRANCO; SIZA, 2002, p.22)

incorporadas da pintura que são percebidas pelo tipo de luz, pela cor, pelos ângulos e pelas expressões dos personagens.

O estilo Barroco, representado por pintores como Caravaggio (1573-1610) e Rembrandt (1606-1669)73, talvez seja o de maior influência no trabalho de Rio Branco. Não pela forma de representação, já que no século XVII os pintores procuravam copiar fielmente o que seus olhos viam, o que não é o caso de Miguel Rio Branco. A inspiração dá-se pelo uso da técnica chiaroscuro (proeminente do Barroco italiano), pela palheta de cores, pelo desprezo à beleza ideal, pela dramaticidade dos temas.

O trabalho de Rio Branco é freqüentemente comparado ao do pintor italiano Michelangelo Merisi da Caravaggio. De fato, existem alguns traços em comum entre os dois artistas que podem ser levados em consideração. A começar pela escolha dos personagens, Caravaggio não se interessava pela aristocracia. Mendigos, prostitutas, pessoas comuns eram quem posavam para o pintor. “As pessoas estavam habituadas a ver os apóstolos como figuras dignas envoltas em belos mantos; no quadro de Caravaggio, eles pareciam trabalhadores comuns, com as faces curtidas pelo tempo e as testas enrugadas.” (GOMBRICH, 1985, p.305). Algumas pessoas pensavam que o seu objetivo era chocar o público, quando o que ele queria era a verdade como se via e não idealizada. Também Rio Branco não se interessa pela beleza institucionalizada e vai buscar seus personagens na academia de boxe, nos mercados, nas ruas do centro da cidade, enfim, no submundo da sociedade.

As brechas feitas pela luz na sombra acentuam a expressividade da pintura de Caravaggio. “A luz não faz o corpo parecer gracioso e macio; é áspera e quase ofuscante em seu contraste com as sombras profundas.” (GOMBRICH, 1985, p.306). Rio Branco também procura trabalhar a luz em suas fotografias, aproximando-se do chiaroscuro do Barroco. O contraste da sombra intensa com pontos extremamente iluminados realça a dramaticidade de suas imagens.

Além disso, nas fotografias de Rio Branco, as cores, quando recebem luz, tornam-se saturadas, chegando a saltar aos nossos olhos. São cores que vêm da pintura, profundamente pretas, azuis, marrons, laranjas, mas acima de tudo vermelhas. Às vezes, chegam a ser monocromáticas. Elas não funcionam apenas como um elemento formal do trabalho de Rio Branco, mas como essência de sua linguagem.

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Lembramos que as comparações feitas nesta pesquisa entre fotografia e pintura dizem respeito apenas às associações temáticas e aos elementos plásticos das imagens, retirados do repertório cultural do autor. Não pretendemos, portanto, fazer nenhum tipo de associação simbólico-interpretativa entre os dois dispositivos, que mantêm suas distinções.

Em Silent Book, uma fotografia em especial nos chamou a atenção pela proximidade com a pintura [p.72]. Trata-se do retrato de um lutador de boxe, com o pescoço reclinado para trás e os olhos voltados para o alto. É um dos raros personagens do livro, cujo rosto podemos contemplar, embora ele esteja parcialmente sombreado. O corte da foto é feito na altura do peito do lutador, que tem uma pele reluzente, marrom-avermelhada, por onde escorrem algumas gotas de suor.

Seria um retrato comum, se não fossem a expressão e o posicionamento do personagem, que alcançam uma dramaticidade incomum. Logo, buscamos no nosso Museu Imaginário algum personagem da pintura barroca ao qual a fotografia se remeta, talvez à imagem de algum santo ou a alguma representação de Cristo. Então, nos deparamos com a Deposição de Cristo [reprod.1], óleo sobre tela de Caravaggio, feita entre 1601-1604, que se encontra exposta na Pinacoteca Vaticana. Observamos, nessa pintura, uma cascata diagonal de pessoas que carregam o corpo de Cristo e se inclinam sobre ele, tomadas pela dor. A luz está focada no corpo de Cristo nu. No primeiro plano, um personagem o segura pelas pernas; ao fundo, uma figura feminina tem os braços erguidos para o alto.

Dessa pintura, extraímos um detalhe do corpo de Cristo [reprod.2] e assim pudemos perceber algumas similaridades com o lutador de boxe de Rio Branco. Primeiramente, os dois personagens tem o mesmo tipo físico, tanto pelo nariz delgado como pela barba e o bigode que envolvem seus rostos. Também há semelhança no movimento do pescoço tombado para o lado e na boca entreaberta, que nos trazem uma sensação de sofrimento. Além disso, nas duas imagens os modelos são pessoas comuns, convidadas por Caravaggio a posar. Já em Rio Branco, o personagem é pego em flagrante: não há pose, o que nos leva a concluir que não houve tempo suficiente para o fotógrafo premeditar a cena e que a aproximação com a pintura aconteceu por acaso. Enfim, a relação entre as duas imagens ocorre, principalmente, pela disposição dos personagens no quadro e sobretudo pela dramaticidade a qual eles nos remetem.

É claro que as semelhanças entre as duas imagens são limitadas. Na pintura, por exemplo, Cristo está morto e tem os olhos cerrados. Já na fotografia, o lutador está olhando fixamente para cima, apesar de ter a mesma expressão solene da pintura. A comparação serve- nos aqui apenas como um exercício de leitura, como um passeio pelo nosso Museu Imaginário.

Voltando à Silent Book, ao virarmos a dobra onde está diagramada a imagem do lutador, encontramos, no seu verso, a fotografia de uma escultura que remete igualmente ao barroco [p.73]. Percebemos, então, que Rio Branco também nos sugere um possível diálogo

entre a fotografia do lutador com a da escultura. Nessa, vemos uma figura descascada e deteriorada, com os braços abertos, cortados pelo enquadramento do fotógrafo, que se assemelha ao Cristo crucificado. Também tem a boca entreaberta, o corpo nu e o pescoço tombado para o lado, o que nos faz lembrar a imagem do lutador de boxe. Assim, revalidamos a idéia de que os diálogos entre as imagens são construídos a partir do repertório cultural de cada um.

3.1.7 Modulações do referente