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Acesso à justiça: quadro metodológico e analítico

Nosso objetivo é mensurar e entender demanda e acesso à justiça, tanto formal quanto informal (estatal × não estatal), identificando também as necessidades não satisfeitas, ou seja, casos em que o morador não consegue fazer valer, rei- vindicar ou defender um direito desrespeitado por não saber como fazê-lo, por falta de serviços de justiça de qualidade ou oferta adequada, ou, ainda, quando prefere não fazê-lo por descrença, medo ou vergonha.

Para o desenvolvimento do nosso quadro metodológico e analítico, recor- remos inicialmente aos estudos e teorias que buscam explicar a utilização do sistema formal de justiça. Esses estudos identificam como principais variáveis explicativas as características socioeconômicas, especialmente renda e escola- ridade. Outros fatores centrais apontados são acesso à informação (ou seja, o reconhecimento de que determinado problema se caracteriza como um proble- ma jurídico, passível de resolução via justiça formal), oportunidade (a vontade e disponibilidade de iniciar uma ação judicial para solucionar o problema) e o conhecimento das instituições formais de justiça, sua localização e a confiança que se tem nelas. O tipo de conflito vivenciado e o local de moradia também

ajudam a explicar a utilização das instituições formais de justiça.5

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Consideramos nessa discussão os indicadores do “Atlas de acesso à justiça”, publicado pelo Ministério da Justiça em 2013, que aponta o desconhecimento dos cidadãos acerca de seus direitos e garantais fundamentais básicos como o principal entrave no acesso à justiça, acarretando também o desconhecimento

sobre os mecanismos jurisdicionais e extrajudiciais.6

Como já pontuamos em outros momentos,7 a favela traz elementos adicio-

nais que costumam dificultar o acesso à justiça, como a irregularidade da ocu- pação, e mesmo a ilegalidade, a ausência do Estado (serviços públicos ausentes ou precários) e a condição de insegurança em que vivem os moradores. Há também o grande desconhecimento de direitos e das instituições a que possam recorrer para fazer valer esses direitos, além da vergonha e do receio de serem criminalizados que acompanham o estigma de “favelados”. Portanto, os mora- dores das favelas estariam entre os mais excluídos do sistema formal de justiça, e tenderiam a recorrer com maior frequência a mecanismos informais e não

pacíficos na gestão de seus conflitos.8

Considerando especificamente acesso à justiça cível, baseamo-nos em dois trabalhos para o desenvolvimento dos nossos instrumentos de coleta de dados (questionário e roteiro de entrevistas semiestruturadas): Sandefur, que fez um mapeamento das principais pesquisas e teorias sociológicas na explicação do

acesso à justiça,9 e Genn e Paterson, que conduziram surveys sobre a utilização

das instituições de justiça para a solução de conflitos no âmbito cível no Reino

Unido e na Irlanda.10

Em seu mapeamento, Sandefur identifica três principais conjuntos de fatores, ou mecanismos de desigualdades, que explicariam as diferenças na forma de gerenciamento dos conflitos passíveis de solução via justiça formal

6 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (MJ). Secretaria de Reforma do Judiciário. Atlas de acesso à justiça:

indicadores nacionais de acesso à justiça. Brasília, DF: MJ, 2013, p. 9.

7 Ver nota 4.

8 Ver SANTOS, Boaventura de Sousa. The law of the oppressed: the construction and reproduction

of legality in Pasargada. Law and Society Review, Salt Lake City, v. 12, n. 1, p. 5-126, 1977.

9 SANDEFUR, Rebecca L. Access to civil justice and race, class, and gender inequality. Annual Review

of Sociology, Palo Alto, CA, v. 34, p. 339-358, 2008.

10 GENN, Hazel G; PATTERSON, Alan. Paths to justice: what people do and think about going to law.

Portland, OR: Hart Publishing, 1999; _____; _____. Paths to justice Scotland: what people in Scotland do and think about going to law. Portland, OR: Hart Publishing, 2001.

C ONFLIT OS E RESOL UÇÃ O DE LITÍGIOS N AS F A VEL AS DO C ANT A G AL O, DO VIDIG AL E DO C OMPLEX O DO ALEMÃ O 115 na área cível. Segundo a autora, a opção por recorrer ou não à Justiça para

resolver um conflito nessa área dependeria, em primeiro lugar, do acesso a recursos materiais e simbólicos, ou seja, das diferenças na distribuição de re- cursos como dinheiro, informações, das conexões sociais úteis e dos custos es- timados ao optar por cursos específicos de ação (por exemplo, valores em jogo em uma disputa, honorários advocatícios ou relacionamentos que podem ser interrompidos pelo conflito aberto). Em nossa pesquisa, trabalhamos com questões que permitissem capturar esses elementos materiais (como renda e escolaridade) e simbólicos (como conhecimento de direitos).

O segundo conjunto de fatores envolveria orientações subjetivas, tais como crenças sobre a legitimidade ou eficácia da lei, crenças sobre o que constitui um tratamento justo, ou sobre o que é provável se conseguir caso se persiga algum curso de ação específico. Para apreender esses aspectos, inserimos um conjunto de questões sobre conhecimento e confiança em instituições passíveis de gerenciar conflitos (sejam as formais, como polícia, Judiciário, Defensoria Pública, as insti- tuições administrativas, como Procon, Anatel, e as não estatais, como associações de moradores). Ainda de acordo com Sandefur, nesse mesmo conjunto, é preciso considerar que diferenças nas experiências de Justiça civil podem criar diferenças nas orientações subjetivas, afetando as crenças das pessoas, e também podem re- fletir o impacto dessas orientações sobre o comportamento. Assim, buscamos ma- pear a experiência prévia dos moradores das favelas com essas instituições (se já utilizaram, quantas vezes, em que situações etc.).

O terceiro conjunto de fatores trata da institucionalização diferencial de algumas temáticas passíveis de disputa, ou seja, alguns tipos de problemas e alguns interesses têm sido institucionalizados como compreendidos pela lei e juridicamente acionáveis, enquanto outros não, e ainda outros estão parcial- mente ou precariamente institucionalizados, sendo objetos de luta ativa. Nesse caso específico, teríamos tipos de conflitos para os quais parece haver entendi- mento consolidado na justiça, por exemplo. Para identificar os tipos de confli-

tos mais comuns nas favelas, baseamo-nos em estudo de Moreira e Cittadino,11

que mapearam decisões judiciais envolvendo esses territórios no Rio de Janeiro.

11 MOREIRA, Rafaela Selem; CITTADINO, Gisele. Acesso individual e coletivo de moradores de

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Já a partir do trabalho de Genn e Paterson, foi possível identificar cinco tópicos essenciais para estabelecer a trajetória dos conflitos e seu potencial desfecho. De acordo com os autores, para mensurar e explicar acesso à justiça é preciso deter- minar (i) a incidência de problemas passíveis de solução via justiça; (ii) a resposta do público frente à vivência desses problemas (se procuraram alguém, a quem pro- curaram, se e por que foram ou não às instituições formais de justiça); (iii) padrão de resposta frente aos tipos de conflitos vivenciados; (iv) tipo de auxílio prestado

pela instituição buscada (informação, assistência etc.); e (v) resultados alcançados.12

Esses textos orientaram o desenho dos instrumentos de coleta de dados e a escolha das variáveis com as quais trabalhamos. Para isso, baseamo-nos, ainda, nas pesquisas do IBGE (suplemento da Pnad 2009 “Características da vitimização e do acesso à justiça no Brasil”), da FGV (Índice de Confiança na Justiça Brasi- leira — ICJ Brasil, 2009 a 2013), e do Ipea (Sistema de indicadores de percepção social — Justiça, de 2011), para decidirmos acerca da forma mais apropriada para mensurar a vivência de situações de conflito (e potencial litígio) e as formas de gestão adotadas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009 pergunta sobre a vivência de “conflito grave” nos últimos cinco anos anteriores à data de realização da entrevista, havendo uma lista codificada de oito áreas, com a opção de outra área que não as já especificadas. Na entrevista da Pnad pede- -se ao entrevistado que “indique a área de situação de conflito mais grave que teve no período de 27 de setembro de 2004 a 26 de setembro de 2009”, sendo as opções: “1. Trabalhista; 2. Criminal; 3. Família; 4. Terras/moradia; 5. Serviços de água, luz e telefone; 6. Impostos/tributação; 7. Benefícios do INSS/previdência; 8. Bancos/instituições financeiras; 9. Outra (especifique); 10. Não teve problema”.

Na sequência, para os conflitos que o entrevistado declarou ter vivenciado, é perguntado sobre o tipo de ajuda buscada para solucioná-lo, havendo uma lista codificada com sete opções e a possibilidade de registrar outras respostas que não as listadas. Para cada um dos conflitos declarados, pergunta-se ao en-

12 GENN, Hazel G; PATTERSON, Alan. Paths to justice, 1999, op. cit.; GENN, Hazel G; PATTERSON,

C ONFLIT OS E RESOL UÇÃ O DE LITÍGIOS N AS F A VEL AS DO C ANT A G AL O, DO VIDIG AL E DO C OMPLEX O DO ALEMÃ O 117 trevistado: “Onde tentou buscar a solução do seu conflito?”, sendo as opções

de resposta: 1. Justiça (foi movida uma ação judicial formal); 2. Juizado Especial (antigo juizado de pequenas causas); 3. Amigo/parente; 4. Polícia; 5. Igreja; 6. Procon (Programa de Orientação e Proteção do Consumidor); 7. Sindicato/ associação; 8. Outro (especifique); 9. Não buscou solução.

Não replicamos a forma de perguntar da Pnad por acreditar que o filtro de trivialidade utilizado é muito forte (“conflito grave” pode levar a um viés de subnotificação de problemas de consumo, por exemplo). E a maneira de coletar informações acerca da gestão do conflito também não nos agrada em virtude de assumir que buscar solução para o problema é a atitude esperada, pois na forma de perguntar não se coloca de antemão a possibilidade de não ter bus- cado solução. Evidentemente, em uma pesquisa com a extensão amostral da Pnad, esses potenciais vieses da forma de perguntar podem ser minimizados, mas em nossa amostra de menor alcance eles seriam potencializados.

Já a pesquisa do Ipea indaga sobre o problema “mais sério” que o entrevistado alguma vez enfrentou, a partir de uma lista estimulada de 13 situações. O entre- vistador dirige-se ao entrevistado da seguinte forma: “Vou mencionar alguns tipos de problemas que as pessoas costumam enfrentar e gostaria que você me dissesse, entre esses, qual foi o mais sério que já enfrentou: família; vizinhança; relações de trabalho; pessoas com as quais fez negócio; crime e violência; cobrança de impos- tos ou outros conflitos com o fisco; previdência, assistência social ou demandas por direitos sociais; trânsito; imóvel ou terra; criança e adolescente; violência de agentes do Estado; problemas com repartições ou empresas públicas”.

Na sequência, pergunta-se aos entrevistados que vivenciaram alguma das si- tuações, para cada uma delas, a quem recorreram para solucionar o problema: “Quem você procurou em primeiro lugar para resolver esse problema?”

O filtro de trivialidade do Ipea é mais leve que o utilizado na Pnad, mas ain- da assim pode levar ao viés de subnotificação de outras situações consideradas “menos sérias”. A abordagem da gestão de conflitos também tende a favorecer ação dos indivíduos em detrimento da inação (“Quem você procurou…”).

E, por fim, a pesquisa da FGV pergunta se o entrevistado ou alguém resi- dente em seu domicílio já utilizou o Judiciário ou entrou com algum processo

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ou ação na Justiça: “O(a) senhor(a) ou alguém do seu domicilio já utilizou o Judiciário, ou seja, já entrou com algum processo ou ação na Justiça?”. Essa for- ma de perguntar foi utilizada em nossa pesquisa para mensurar não a vivência de conflitos ou desrespeito aos direitos, mas sim a adjudicação desses conflitos e sua concretização em disputas judiciais. Mas para o que queremos capturar em primeiro lugar aqui, que são as vivências de conflitos que resultam ou não em processos judiciais, tivemos de adotar outra forma de perguntar.

Os resultados da pesquisa são discutidos na sequência, com base nos tra- balhos e na literatura referenciada. O argumento geral que apresentamos é de que fatores materiais e simbólicos, como senso de direito ou sentimentos de impotência e vergonha, assim como conhecimento, percepções e experiências com as instituições de justiça, desempenham papel central no estabelecimento de padrões estratificados de ação e inação quando os moradores das favelas vivenciam situações potenciais de conflito.