• Nenhum resultado encontrado

Cidadania e justiça nas favelas pós-“pacificação”

FABIAN A L UCI DE OLIVEIRA

Buscamos retratar neste livro a situação atual do exercício da cidadania nas favelas pesquisadas (Vidigal, Cantagalo e Complexo do Alemão, nas comunida- des reunidas pela UPP Fazendinha), com foco no acesso à justiça.

Abordamos uma série de dimensões da cidadania, concebida como acesso à justiça, e procuramos entender os efeitos que a política pública de segurança destinada a essas áreas tem provocado nessas dimensões. A metodologia adota- da impõe algumas limitações à possibilidade de análise desses efeitos, que de- vem ser lidos não como conclusões precisas, e sim como indícios — em alguns aspectos mais robustos, em outros menos, mas sempre úteis para a compreen- são das demandas não atendidas por cidadania e justiça.

Ao longo da pesquisa, identificamos uma série de indícios positivos da “pa- cificação”, não sem pontuar também suas ambiguidades, problemas e limita- ções, e afirmamos que só levar segurança não basta para realizar a promessa de inclusão dos moradores das favelas à cidade e aos direitos de cidadania, embora esta seja uma etapa fundamental.

Garantir os direitos civis mais básicos dos moradores das favelas, como o direito à liberdade de ir, vir e permanecer nas favelas com segurança é condição sine qua non para que os demais direitos possam ser acessados. E essa garantia tem sido apenas parcialmente dada. A segurança nas favelas pesquisadas me-

182 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

lhorou, mas ainda há melhorias para serem alcançadas nessa área, sobretudo no relacionamento da polícia com os moradores.

E, sobretudo, como vimos, é necessário ainda atender a uma série de de- mandas ligadas à qualidade de vida, com foco nos direitos sociais; à urbaniza- ção e segurança da moradia; à cultura jurídica, com foco no conhecimento de direitos e instituições de garantia de direitos; nos mecanismos de resolução e gestão de conflitos; no acesso às instituições formais de justiça, e mesmo na segurança pública, embora esta seja a área mais bem-coberta atualmente, ainda que a partir de uma política de segurança pública que segrega asfalto e favela, no sentido de que é direcionada apenas aos moradores dessas comunidades.

No que diz respeito à qualidade de vida, ou seja, às percepções sobre como é viver nessas favelas “pacificadas”, a principal conclusão é de que os mora- dores ganharam mais tranquilidade e previsibilidade em comparação ao que tinham antes, e que a urbanização e a regularização de serviços começam a chegar até eles, ainda que com problemas. Água, saneamento, arruamento e lixo são os problemas mais recorrentes. Os moradores apontam as diversas melhorias que têm percebido, fazendo referência às obras do PAC, mas não deixam de pontuar que não há planejamento, que construções e obras recém- -entregues apresentam problemas, sejam canos que não dão vazão à demanda de água, sejam calçadas esburacadas, construções trincadas, entre outros. E questionam se os serviços que recebem têm a mesma qualidade do serviço entregue nos bairros desta ainda “cidade partida”. É marcante a percepção de que não há o mesmo tratamento por parte dos entes públicos entre morado- res do asfalto e da favela.

Mas morar nas favelas não são só agruras. Os moradores costumam des- tacar a localização privilegiada, a beleza das paisagens das suas comunida- des e o ambiente como qualidades. Destacam ainda que a recuperação do território e da paz, percepção por eles marcadamente citada, estaria contri- buindo para diminuir o estigma da favela e atrair mais turistas, empresas e pessoas interessadas em viver ou fazer negócios nessas áreas. Se por um lado apreciam isso, por outro temem o aumento do custo de vida e a assustadora “expulsão branca”, diante do aumento do valor dos imóveis tanto para alu-

CID AD ANIA E JUS TIÇ A N AS F A VEL AS PÓS-“P A CIFIC A ÇÃ O” 183 guel quanto para compra, atemorizando principalmente os moradores com

menor condição de se adaptarem à regularização — os mais pobres e com menor escolaridade.

A maioria dos moradores dessas favelas é de classe baixa, pobre, e da “nova classe média”, incluída no meio da pirâmide socioeconômica principalmente pela via do consumo. Mas o aumento da capacidade de consumo não leva ne- cessariamente a uma inclusão social maior. Esses moradores têm consumido mais, mas não conhecem bem seus direitos de consumidor, assim como seus direitos mais básicos, as instituições a que podem recorrer e caminhos que po- dem percorrer para reivindicar e fazer valer seus direitos positivados na Consti- tuição — Constituição que também a maioria desconhece.

Outro ponto acerca da cultura jurídica nas favelas que nos chamou aten- ção diz respeito ao discurso dos direitos humanos. Se no senso comum os direitos humanos têm sido associados aos direitos “dos bandidos”, a grande maioria dos moradores das favelas, quando ouve falar de direitos humanos, pensa logo nos políticos e nos ricos, a quem seriam assegurados tais direitos. Essa situação contribui para formar um círculo vicioso: aqueles que mais têm os direitos humanos desrespeitados desconhecem tais direitos e os mecanis- mos para sua reivindicação.

Há tanto o desconhecimento de direitos quanto o desrespeito a direitos nessas favelas — como vimos, embora menos de um quinto dos moradores afirmem ter vivenciado situação de desrespeito a seus direitos no último ano, quando os estimulamos a avaliarem aspectos específicos referentes a situações de violação de direitos sociais e civis, mais de três quintos reconhecem ter pas- sado por alguma dessas situações.

O quadro de desconhecimento de direitos e das instituições de garantia de direitos só muda quando olhamos para os moradores com maior escolaridade, reforçando o que já é sabido, mas que precisa ser enfatizado, para que se possa pensar em concretizar alguma mudança: o único caminho possível para a ci- dadania e o acesso à justiça nessas favelas é o da educação. É primordial haver reforço e direcionamento das políticas públicas da UPP social e demais inter- venções realizadas nesses espaços.

184 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

Voltamos a ressaltar que as UPPs têm cumprido em parte a promessa de levar mais tranquilidade, quanto à segurança, aos moradores, mas que só segu- rança não basta. E essa política de segurança precisa ser aperfeiçoada no que tange o tratamento dado à população local. Não podemos ignorar os relatos de desrespeito e violência policial nas favelas “pacificadas”. E nem desconhecer as reivindicações das populações locais, que reclamam e precisam ser ouvidas.

Os moradores reconhecem que o Estado está mais presente nessas áreas, mas, ao apontarem os ainda gritantes déficits de infraestrutura e urbanização nas favelas, indicam que a presença do Estado é insuficiente para “o exercício da cidadania plena que garanta o desenvolvimento tanto social quanto econô-

mico”, como lemos no art. 1o, §2o, alínea “b”, do Decreto no 42.787/2011, que

dispõe sobre a implementação das UPPs.

O que verificamos é que os moradores das favelas continuam a se sentir marginalizados frente à precariedade dos serviços e à incompletude da cidada- nia que chega até eles. A UPP traz, sim, algumas melhorias, os próprios mora- dores reconhecem, mas não sem recear pelo seu presente, dadas as ausências que persistem, sobretudo no aspecto urbanístico e social, e pelo seu futuro, com o fim dos grandes eventos e com o que pode vir a acontecer com essa política de segurança. Ela apresenta falhas, mas não pode cessar antes de cum- prir suas “promessas” de levar não apenas paz, mas também desenvolvimento econômico e social a esses territórios. A ruptura das dicotomias favela × bairro, morro × asfalto, tão marcantes na paisagem e no imaginário cariocas, parece processar-se apenas no plano formal. Enquanto isso, a cidade segue partida em seus aspectos simbólico e social.

Fotos

Assim como na primeira rodada da pesquisa, para este livro convidamos mo- radores das favelas estudadas envolvidos com fotografia para participarem da publicação, trazendo sua visão sobre os locais que habitam. Solicitamos a esses moradores, fotógrafos, que transmitissem, através do olhar impresso em suas fotografias, a experiência de viver no Vidigal, no Cantagalo e no Complexo do Alemão, na área da UPP Fazendinha, desde a chegada das UPPs.

Felipe Paiva privilegiou as paisagens do Vidigal, que atraem muitos turistas à favela, e também enfatizou a criatividade dos moradores. Trouxe, ainda, a capacidade de mobilização da comunidade, retratando as mulheres da Amar, associação voltada ao combate da violência contra a mulher, e o primeiro pre- sidente da Associação dos Moradores do Vidigal, que lutou com a comunidade pelo direito de permanência na área, contra remoções, assim como o início de uma manifestação organizada pelos moradores. Nas cores da fotografia de Felipe, vemos a mistura nos tons de pele da favela e a pluralidade do cenário, entrecortado por verde e tijolos, formando uma paisagem heterogênea.

Joyce Pires fotografou a rotina de convivência entre moradores e policiais da UPP, dando destaque também aos problemas de infraestrutura e urbanização, como os becos estreitos e o lixo. No preto e branco de suas fotos, vemos a vida

186 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

entrelaçada à paisagem, assim como a dicotomia na mistura e separação entre cidade e favela.

Além de mostrar o problema do acúmulo de lixo, Michelle Liberato retratou o clima de “interior” e “fazenda” que predomina nessa área do Complexo do Alemão, onde os moradores ainda utilizam carroça como meio de transporte. Trouxe também o “boom de gringo” que agora visita a favela, o lazer dos mo- radores, representado na “pelada” entre as crianças, e a sociabilidade da praça, parte da vida em comunidade.

F O TO S 187

Vidigal

Por Felipe Paiva, 28 anos, morador do Vidigal desde os três anos de idade. Fe- lipe é formado em fotografia documental, no curso “Fotógrafo Comunitário”, oferecido pela Associação Esportiva ONG Horizonte, em 2007.

Moradores da Rocinha e do Vidigal se encontram e caminham pela avenida Niemeyer em mais um dia de intensas manifestações ocorridas ao longo de 2013.

188 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

Rua Dr. Olinto de Magalhães, mais conhecida como “Rua Nova”, localizada na área nobre do Vidigal.

Um dos muitos traços da indústria criativa brota nas vielas do Vidigal. “Minimercearia Sê Tu uma Benção”. Localidade conhecida como 25 de Novembro (parte alta do Vidigal).

F

O

TO

S

189

Com uma das mais belas vistas da cidade, o Vidigal é destino certo para os estrangeiros que curtem misturar a paisagem natural com a da favela (localidade conhecida como “Pedra do Seu Vitor”, no meio do Vidigal).

Sede da Amar (Associação de Mulheres de Ação e Reação). Além de combater a violência contra a mulher, atua na área de psicoterapia. Localizada na Associação de Moradores do Vidigal.

190 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

Sr. Armando de Almeida Lima, um dos líderes da resistência da favela. Primeiro presidente da Associação de Moradores do Vidigal. Localidade conhecida como “Pedrinha”.

F O TO S 191

Cantagalo

Por Joyce Pires, 18 anos, moradora do Cantagalo. Joyce é formada em fotografia no curso “Por Trás das Câmeras”, oferecido pela Universidade The New School, no Solar Meninos de Luz em 2009.

Na entrada da ONG Criança Esperança, policiais se encontram e conversam em frente à sede da UPP do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho.

Policiais no Quebra (região baixa do Cantagalo, mais próxima do bairro de Ipanema) tomam sacolé e conversam enquanto moradores circulam pela região.

192 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

F

O

TO

S

193

194 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

Jovem morador do Vietnã (área mais alta do Pavão-Pavãozinho) preparando a linha da pipa no final de uma tarde de domingo.

F

O

TO

S

195

196 CID AD ANIA , JUS TIÇ A E “P A CIFIC A ÇÃ O” EM F A VEL AS C ARIOC AS

Moradores em momento de lazer na praça da rua Antônio Austregésilo, praça da Vila Paloma, na antiga Vila Paloma, na parte correspondente ao bairro de Inhaúma.

A UPP instalada na praça, na Antiga Vila Paloma, localizada na rua Austregésilo, a mais importante da Fazendinha, foi inaugurada em abril de 2012 e fica próxima ao bairro de Inhaúma.