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Quem é o sujeito dos direitos humanos?

De acordo com Walter Mignolo, os direitos humanos, assim como dispostos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, pressupõem que o “humano” seja uma categoria universal aceita por todos e que, assim, a justiça seja realizada para

7 Estamos nos referindo aos atores europeus da teoria crítica do direito, como Costas Douzinas,

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todas as pessoas.8 Contudo, o autor ressalta o problema dessa afirmação: o status

igualitário de todos pelo nascimento. Isto porque, ainda que todos os homens e mulheres nasçam iguais, eles não permanecem iguais o resto de suas vidas.

Mignolo salienta que as ideias de humano e de direito foram inventadas

pelos humanistas da Europa renascentista.9 Essas ideias diziam respeito à his-

tória interna do cristianismo ocidental e do conflito duradouro com o isla- mismo, bem como à história externa do cristianismo. Tratava-se do início de um processo histórico sem precedente. O surgimento do Novo Mundo e de novos povos forçou os humanistas renascentistas a revisarem suas premissas epistêmicas. Esse é o momento no qual muitas pessoas passaram a perder sua

igualdade, sua “humanidade” e seus direitos.10

Na mesma linha, Douzinas afirma que humanidade é uma invenção mo-

derna11 e traz consigo uma carga de valores herdados das revoluções e declara-

ções.12 Para o autor, “humanidade” não pode ser utilizada como fonte normati-

va principal, pois carece de base e finalidade, bem como não tem um valor com-

partilhado.13 A humanidade está aberta a um futuro incerto: “its functions lies

not in a philosophical essence but in its non-essence, in the endless process of redefinition and continuous but impossible attempt to escape the fate and external determination”.14 Nessa ontologia, cada um é único, é um mundo em si, composto por seus pró- prios desejos e necessidades. Essa possibilidade de constante mudança faz com que a humanidade não possa ser definida. Cada um é único, mas criado através

da comunhão com os outros: “the other is part of me and I am part of the other”.15

Nesse sentido, Douzinas afirma que se abandonarmos o essencialismo da humanidade, os direitos humanos aparecerão como constructo artificial de-

8 MIGNOLO, Walter. Who speaks for the “human” in human rights? In: BARRETO, José-Manuel.

Human rights from a Third World perspective: critique, history and international law. Cambridge: Cam- bridge Scholars Publishing, 2013. p. 44.

9 Ibid., p. 45. 10 Ibid.

11 DOUZINAS, Costas. Human rights and empire, 2009a, op. cit., p. 51. 12 Ibid., p. 56.

13 Ibid., p. 57.

14 “Suas funções não estão em uma essência filosófica, mas na sua não essência, no processo in-

finito de redefinição e tentativa contínua, mas impossível de escapar ao destino e determinação externa” (ibid., p. 57, trad. nossa).

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93 corrente da história europeia. O “humano”, de direitos humanos, e “humani-

dade”, podem ser considerados como um “significante flutuante”. Como um significante, não tem um significado particular. Seu sentido é vazio de signifi- cado e, portanto, passível de ter diferentes entendimentos.

Essa possibilidade de diferentes interpretações do “humano” está relaciona- da a mais duas questões: a confusão entre os planos descritivos e prescritivos na linguagem dos direitos humanos, bem como em seu caráter abstrato. Espe- cificamente em relação à linguagem, Bentham afirma, em “Anarchical fallacies: being and examination of the Declaration of Rights issued during the French

Revolution”,16 que é a falácia mais comum na linguagem de direitos humanos.

O artigo primeiro da declaração francesa dispõe que: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”. Esse artigo demonstra para o autor a contradição entre ambos os níveis: os direitos à liberdade e à igualdade estão no campo do dever ser, embora pareça no artigo que eles estejam formulados em termos descri- tivos. De fato, essa confusão que surge da formulação dos direitos humanos em termos descritivos, mas com função prescritiva, é recorrente na crítica de

Bentham à linguagem das declarações.17

Segundo o autor, um nítido exemplo da utilização imprecisa e equivocada da expressão “direitos humanos” nas declarações é a confusão entre realidade e desejo: “but reasons for wishing there were such things as rights, are not rights; a reason for wishing that a certain right was established, is not that right — want is not supply —; hunger is not bread”.18 Nesse contexto, Bentham continua sua crítica

16 Esse artigo foi escrito por volta de 1796, mas só foi publicado pela primeira vez em 1816 em Ge-

nebra, Suíça, e em francês. O trabalho foi publicado em inglês somente em 1834, dois anos após a morte de Bentham. É curioso notar que Bentham não escolheu o termo “Anarchical fallacies” para o título. A escolha foi feita por seu tradutor e editor, Étienne Dumont, que publicou o trabalho com o título “Sophismes anarchiques”. Bentham preferia o título “Nonsense upon stilts”. De fato, ele utiliza a expressão para se referir a uma espécie de falácia política, mas sem fazer alusão à De- claração francesa (BEDAU, Hugo Adam. “Anarchical fallacies”: Bentham’s attack on human rights. Human Rights Quarterly, Baltimore, MD, v. 22, n. 1, p. 262, fev. 2000).

17 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de derecho y Constitución. 7. ed. Madri:

Tecnos, 2001. p. 27.

18 “Mas razões para desejar que houvesse coisas como direitos, não são direitos; uma razão para

desejar que um determinado direito fosse estabelecido, não constitui um direito — querer não é fornecer —; fome não é pão” (BENTHAM, Jeremy. Anarchical fallacies: being an examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution. [S.l.]:[s.n.], 1796, p. L-6, trad. nossa. Disponível em: <http://oll.libertyfund.org/titles/1921>. Acesso em: 28 set. 2011).

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à declaração francesa e afirma que, ao invés de utilizar expressões figurati- vas, dever-se-ia ter optado por expressões precisas, pois, diferentemente da utilização de uma palavra imprópria em um romance, onde a palavra errada será apenas uma palavra, em um documento legal, “an improper word may be a national calamity”.19

Tal crítica do autor demonstra sua consciência dos efeitos práticos que o uso deficiente da linguagem pode gerar na esfera dos direitos humanos, uma vez que acaba passando a falsa ideia de que, na prática, o sujeito dos direitos humanos são todas as pessoas do mundo, independentemente de sua naciona- lidade, etnia, status socioeconômico, entre outros. Embora direcionada à decla- ração francesa, a crítica de Bentham continua extremamente atual, e aplicável a outras realidades, uma vez que a linguagem dos tratados de direitos humanos é bastante semelhante à da declaração.

Quanto à abstração dos direitos humanos, é importante ressaltar que não se trata de um atributo exclusivo destes. Na realidade, ela é um elemento do direito de uma forma geral. Contudo, para os direitos humanos ela acaba ge- rando um enorme problema, pois, apesar de os direitos humanos terem sido criados para proteger a pessoa das ações arbitrárias do Estado, na prática não é isso que ocorre. As minorias, os excluídos, continuam de fora de sua proteção. Nesse sentido, Douzinas ressalta que o sujeito dos direitos humanos não existe: “Ou é muito abstrato para ser real, ou muito concreto para ser universal. Em ambos os casos, o sujeito é falso, pois sua essência não corresponde, e não pode

corresponder, a pessoas reais”.20

De acordo com Baxi, os regimes de direitos humanos somente contribuem para a melhora de vida de uma parcela pequena da humanidade, uma vez que só

chegam para as pessoas mais pobres de forma homeopática.21 Isto porque os direi-

tos humanos têm um sujeito bem-definido: “um cidadão homem, branco, bem-

-sucedido, heterossexual e urbano”.22 Este “homem”, que é bem-definido, abarca

em sua identidade a dignidade abstrata da humanidade. Nesse sentido, Deleuze

19 “Uma palavra imprópria pode ser uma calamidade nacional” (ibid., p. L-3, trad. nossa). 20 DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009b. p. 113. 21 BAXI, Upendra. The future of human rights, 2008, op. cit., p. 6.

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95 sustenta que os direitos humanos conferem uma ilusão de participação aos mar-

ginalizados da sociedade, assim como uma fantasia de que as elites preocupam-se

com seu bem-estar e que o humanismo dentro do capitalismo é uma realidade. 23

Contudo, as pessoas que são percebidas como excluídas nunca foram con- templadas com esses direitos. Na prática, os direitos, bem como a dimensão humana, sempre lhes foram negados. Isto porque a “humanidade” é constru- ída, desde o século XVIII, com base em precondições (cidadania, classe, gêne- ro, raça, religião, sexualidade), excluindo, assim, a maioria dos seres humanos. Se os direitos são universais, os imigrantes indocumentados e refugiados, por exemplo, que não têm país algum para protegê-los, deveriam ter assegurados

os direitos da humanidade.24 Mas, na prática, não é isso que ocorre. Os direitos,

bem como a dimensão humana, continuam a ser negados a quem efetivamente precisa de proteção. Isto porque a universalidade dos direitos humanos (re)pro- duz uma série de “outros” como sujeitos marginalizados. Conforme ressaltam Cecília Coimbra, Lilia Lobo e Maria Livia do Nascimento:

Não há dúvida, portanto, que esses direitos — proclamados pelas diferentes revoluções burguesas, contidos nas mais variadas declarações — tenham construído subjetivida- des que definem para quais humanos os direitos devem se dirigir. Os marginalizados de toda ordem nunca fizeram parte desse grupo que, ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, tiveram e continuam tendo sua humanidade e seus direitos garantidos. Ou seja, foram e continuam sendo defendidos certos tipos de direitos, dentro de certos mode- los, que terão que estar e caber dentro de certos territórios bem marcados e delimita-

dos e dentro de certos parâmetros que não poderão ser ultrapassados.25

Na prática, como se dá a percepção de direitos humanos quando se consi- deram os grupos historicamente excluídos, marginalizados e estigmatizados, como os moradores de favelas? Qual a percepção que os moradores de favelas

23 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

24 DOUZINAS, Costas. Quem são os “humanos” direitos? The Guardian, Londres, 1 abr. 2009c.

(Trad. de “Who counts as ‘human’?” Projeto Revoluções). Disponível em: <http://revolucoes.org. br/v1/sites/default/files/quem_sao_os_humanos_dos_direitos.pdf>. Acesso em: 29 set. 2013.

25 COIMBRA, Cecília; LOBO, Lilia; NASCIMENTO, Maria Livia do. Por uma invenção ética para

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têm acerca do significado e do sujeito dos direitos humanos? Essas são as per- guntas que exploramos na próxima seção do capítulo. Antes, porém, de anali- sar a percepção dos moradores de favelas sobre direitos humanos, faremos um breve histórico do surgimento do movimento dos direitos humanos no Brasil para melhor compreensão do contexto local.