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2 ACHEGAS ÀS FORMAÇÕES SIMBÓLICAS: UM CAMINHO DA LINGUAGEM NA FILOSOFIA E UMA VIA DA FILOSOFIA PARA A LINGUAGEM ORDINÁRIA

[...] a ciência certamente nunca é capaz de dar um salto sobre suas próprias sombras. Ernst Cassirer (2011, p. 66)

O “simbolismo”, como objeto conceitual de análise no terreno da filosofia e das ciências sociais, ganha evidência no século XX com um conjunto vasto de teóricos, com destaque pujante para alguns autores, como é o caso de Pierre Bourdieu. Para nossa reflexão, é fundamental pensar as relações entre “linguagem”, “linguagem & retórica” e, por fim, “linguagem, retórica & simbolismo”. Este jogo não pressupõe um processo hierárquico ou, ainda, uma tensão em sobreposição ou, até mesmo, uma escada evolutiva entre os três elementos. Ao contrário, eles assim se apresentam apenas para compreensão do itinerário de nosso pensamento, tecido entre a crítica filosófica do essencialismo da linguagem no filósofo Ludwig Wittgenstein – o “segundo Wittgenstein” –, no pressuposto epistemológico das relações entre “linguagem, hermenêutica e retórica” em Rafael Capurro, e, por fim, das relações entre “linguagem, formas simbólicas e conhecimento” no filósofo Ernst Cassirer.

Especificamente, nossa abordagem, que procura observar as relações pontuais entre Retórica, Filologia e CI, pode encontrar várias desembocaduras que permitem abrir caminho para o emaranhado que integra e dá vida ao elo entre os saberes e fundamenta a independência da OS como saber. Como lembra Baratin (2008, p. 228), “a própria gênese da gramática está ligada à biblioteca”, aquela que é, a nosso ver, a “instituição-metáfora” da OS, envolvendo, nesse bojo, o desenvolvimento paralelo entre um pensamento retórico, um pensamento filológico e um pensamento bibliológico.

É importante lançar a visão de constituição de uma “filosofia da cultura” para uma filosofia da informação – ou, filosofia do documento, como na crítica de Bernd Frohmann. É neste ponto que linguagem, retórica e simbolismo se apresentam como categorias fundacionais para a compreensão do que pode vir a ser uma Ciência da Informação, principalmente quando se permite a visão epistemológica a partir dos movimentos de mediação, circulação e apropriação dos saberes. É, pois, aqui que adentramos o pensamento cassireriano. Não se pode, dentro de uma filosofia da cultura, escapar das noções de representação e mediação, noções tão caras à longa procura por dar a uma ciência para informação seu locus epistemológico, seu lugar na árvore dos saberes.

Ernst Cassirer, caracterizado como um filósofo neokantiano, busca construir, a partir da obra “Filosofia das formas simbólicas”, um modo distinto de compreensão do homem, a partir da linguagem. Ainda que estruturalmente vinculado a um idealismo filosófico, Cassirer reelabora a construção do pensamento filosófico, considerando as questões de distinção entre mito e filosofia, mas demonstrando como todas as práticas humanas são fruto de uma certa “formação simbólica”, imersa em “sistemas simbólicos” que já “prescrevem” “métodos e técnicas” de construção do conhecimento. Isto significa problematizar não apenas um, mas os diferentes modos de coconstituição dos saberes a partir de um processo intersubjetivo.

Para o empreendimento, sua “filosofia das formas simbólicas”, redigida nos anos 1920 após seu contato com a Biblioteca de Ciências da Cultura em Hamburgo, é dividida em três livros. No primeiro, Cassirer (2001) debruça-se sobre a linguagem, buscando estabelecer seu conceito de “forma simbólica”. Destaca-se aqui a tentativa de verificar, à moda dos filósofos da linguagem, a presença do conceito central deste fazer filosófico, a própria “linguagem”, na elaboração do pensamento de cada filósofo partindo do idealismo grego e chegando até o desenvolvimento da linguística no século XIX. Chama a atenção o peso dado por Cassirer (2001, p. 387) à relação entre produção do conhecimento, simbolismo e linguagem.

Influenciado objetivamente por Humboldt, o ponto de inflexão cassireriano concebe uma dada “atuação da imaginação da língua”, que estabelece um método próprio de criação – atuação esta que permite tanto a vigência do mito quanto da lógica. É compartilhada com Humboldt e Aristóteles a hipótese original da relação entre discurso e linguagem – a linguagem não pode ser fruto das “particularidades”, ou seja, não pode ter nascido “puramente” da designação de coisas e de sua nomeação. Ela teria surgido, necessariamente, da frase – abordagem esta da “primazia da frase sobre a palavra” (CASSIRER, 2001, p. 390)

A conclusão cassireriana para a relação entre conhecimento e linguagem no primeiro volume da “filosofia das formas simbólicas” parece-nos elementar para os estudos de

mediação, circulação e apropriação dos saberes dentro da Ciência da Informação. Para Cassirer (2001), a oposição tradicional da filosofia – desde Parmênides – entre o sensível e o intelectual não pode tocar a “questão da língua”. Esta, segundo o filósofo alemão, em “todas as suas manifestações e em cada etapa de sua evolução, constitui uma forma de expressão simultaneamente sensível e intelectual” (CASSIRER, 2001, p. 416). Os fundamentos da filosofia neodocumentalista de Frohmann (2008), a seguir discutidos, nos trazem à luz exatamente a crítica ao mentalismo e as relações objetivas entre sensibilidade e intelecto na construção social do conhecimento.

No segundo volume da “filosofia das formas simbólicas”, à busca de uma crítica da consciência mítica, Cassirer (2004) reconsidera o “mito” como objeto de estudo filosófico, criticando a radicalidade de sua separação, na Antiguidade, de outros modos de conhecimento. Aqui o filósofo retoma a questão da “origem da linguagem”, estabelecendo o ponto de inflexão de seu debate a partir da “origem do mito” – seriam estas questões indissociáveis em seu raciocínio. Em linhas gerais, Cassirer (2004) procurará demonstrar que os conceitos teóricos de espaço, tempo e número, bem como os conceitos jurídicos e intelectuais, como também as construções da economia, da arte e da técnica, estão presentes, sob diferentes entonações, no “pensamento mítico”.

Uma de suas tentativas iniciais de demonstração filosófica do argumento acima está em sua crítica ao positivismo de August Comte. Cassirer (2004, p. 7-8) discute que “o conhecimento se torna senhor do mito” apenas quando o nega e o retira de seus horizontes de reflexão. Por sua vez, o “conhecimento”, em sua etapa “positiva”, termina por se reencontrar com o “adversário que aparentemente vencera em definitivo”.

A ciência só atinge sua forma própria na medida em que expurga todos

os componentes míticos e metafísicos. Contudo, justamente a evolução da

doutrina de Comte mostra que precisamente os momentos e motivos que ela acreditou ter atravessado já em seu início, nela continuam vivos e atuantes.

O próprio sistema de Comte, que começou desterrando tudo o que era mítico para os primórdios e para a pré-história da ciência, culmina

numa superestrutura mítico-religiosa. [...] A ciência conserva desde há

muito uma antiquíssima herança mítica, à qual apenas imprime uma outra forma.” (CASSIRER, 2004, p. 8, grifo nosso)

Tecendo as análises para a (re)construção de uma filosofia do mito – principalmente, das relações perdidas entre filosofia e mito –, Cassirer (2011) avança para a argumentação mais densa e diretamente epistemológica de seu pensamento: no volume três da “filosofia das formas simbólicas”, o filósofo busca, segundo uma “fenomenologia do conhecimento”, demonstrar a vigência do conhecimento simbólico e suas formas de constituição do próprio pensamento. Aqui, “língua”, “mito” e “arte” são denominadas diretamente “formas

simbólicas”, das quais derivam as demais. A “filosofia das formas simbólicas”, devota de uma crítica à teoria do conhecimento de base kantiana, não se volta para um olhar “exclusivamente e em primeiro plano para o domínio dos conceitos do mundo puramente científicos e exatos, mas para todas as direções do entendimento de mundo”. (CASSIRER, 2011, p. 29)

Concluída em julho de 1929, a “fenomenologia do conhecimento” de Cassirer (2011, p. 29) afirma que o ponto de vista filosófico aqui em questão “procura apreender esse entendimento em sua multiplicidade de formas, em sua totalidade e na distinção interna de suas manifestações”. Para o filósofo alemão, tal processo de “‘entender’ o mundo nunca se mostra como simples aceitação, como simples repetição de uma dada estrutura da realidade, mas contém em si uma atividade livre do intelecto.” (CASSIRER, 2011, p. 29)

O desenho da abordagem da filosofia das formas simbólicas estabelece que o conhecimento simbólico permite um significado próprio para a apreensão do mundo dos objetos. Conhecer o caráter simbólico das “coisas”, inclusive dos “conceitos”, não estabelece um “conflito” com qualquer validade objetiva que se possa identificar. Ao contrário, na visão cassireriana, “constitui um fator dessa mesma validade e de sua fundamentação”. (CASSIRER, 2011, p. 44)

Resultado da síntese dos três volumes da “filosofia das formas simbólicas”, o livro “Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana”, tornou-se uma espécie de “índice” da teoria cassireriana do conhecimento. Aqui o filósofo alemão apresenta a replicada máxima de definição do homem como animal symbolicum e não rationale. Esta visão aponta para a crítica epistemológica idealista e racionalista, estabelecendo que o homem não vive apenas em um mundo físico, mas em um mundo substancialmente simbólico. Pressuposições anteriormente elaboradas são condensadas no “Ensaio”, como é o caso da crítica mitológica – “A racionalidade é de fato um traço inerente a todas as atividades humanas. A própria mitologia não é uma massa grosseira de superstições e ilusões crassas. Não é meramente caótica, pois possui uma forma sistemática ou conceitual”. (CASSIRER, 1994, p. 49)

Para o filósofo alemão,

A tarefa verdadeira mais profunda de uma filosofia da cultura, da linguagem, do conhecimento, do mito etc. parece consistir, precisamente, em erguer este véu, em sair da esfera mediadora do simples significar e designar, e

retornar à esfera original da visão intuitiva. Por outro lado, o órgão

específico de que dispõe a filosofia se opõe à solução desta tarefa. À filosofia, que só se realiza na precisão do conceito e na clareza do

pensamento ‘discursivo’, o paraíso da mística, do imediato puro, está

reflexão. Em vez de retroceder no caminho, ela precisa tentar segui-lo em frente até o fim. (CASSIRER, 2001, p. 74, grifo nosso)

Centram-se aqui dois pressupostos para a compreensão da Ciência da Informação: mediação como limite epistemológico; mediação como direção de constituição do campo. Se o “imediato” está “vedado”, a mediação se torna o devir, o percurso a ser trilhado, tanto para uma teoria do conhecimento como para uma filosofia prática: a reflexão epistemológica informacional. Um itinerário que se torna então elementar para a linha de construção dos estudos da informação é a apreensão das relações entre cultura e suas formas simbólicas – materiais e imateriais.

A “luz” que os estudos de mediação, apropriação e uso dos saberes traz à reflexão informacional apresenta um panorama sócio-crítico de constituição histórico-epistemológica do campo. O primeiro movimento seria perceber como a Ciência da Informação, nos anos 1960, elabora aquilo que ela chama “ciência” para um duplo uso: a) para se definir; b) para delinear seu objeto. A noção e seu duplo uso definem um modo de refletir a sociedade enviesado pela ideia de “ciência fora da sociedade”.

Está aqui uma das fraturas claras abertas pelos estudos de mediação. Ao colocar em pauta outros “objetos” de estudo que não aqueles oriundos de uma “epistemologia pura”, a “epistemologia dos cientistas”, ou, ainda, a “a teoria do conhecimento do cientista”, e, não, o conhecimento como categoria complexa, tais estudos não só estabelecem o criticismo das margens de reflexão dos objetos de estudo e populações pesquisáveis por uma Ciência da Informação, como questionam o próprio discurso sócio-epistêmico de invenção do campo.

Cassirer (2004) demonstra que, mesmo reconhecendo as diferenças entre as imagens de mundo empírico-científica e mítica, tais separações não são fruto de categorias conflitantes. Nem natureza nem qualidade das categorias tecidas por mito e ciência tornam estas ações distintas. Uma certa “modalidade”, sim, permite a separação – mas a posteriori. Entretanto, mesmo no ato de tal separação, tais “modos” não são completamente frutos de um desacordo em sua explanação.

Os modos de ligação que ambos utilizam para dar ao sensível-múltiplo a forma da unidade, para levar o disperso à configuração, mostram analogia e

correspondência generalizadas. São as mesmas ‘formas’ mais gerais da

intuição e do pensamento que constituem a unidade da consciência como tal, e por isso também a unidade da consciência mítica, assim como a unidade da pura consciência do conhecimento. Desse ponto de vista, pode-se dizer que cada uma dessas formas, antes de receber sua configuração e sua marca lógicas determinadas, tem que haver passado por um prévio estádio mítico.

A imagem do cosmo, a imagem dos espaços celestes e da articulação dos corpos nos espaços celestes, tal como descreve a ciência astronômica,

está fundada originalmente na intuição astrológica do espaço e do

acontecimento do espaço. (CASSIRER, 2004, p. 116, grifo nosso)

As perguntas “o que é ‘ciência’ na expressão ‘Ciência da Informação’” e “qual é o ‘objeto’ de estudo da Ciência da Informação” ganham aqui um contraponto crítico. O terreno da filosofia da cultura é escorregadio em demasia para a estabilidade do positivismo por trás das tentativas sessentistas – como aquelas de Taylor, Borko e outros... – de afirmação da cientificidade daquilo que se predica como “informacional”. Quando encarada a partir das práticas informacionais de mediação, apropriação e uso, a epistemologia e as paisagens de estudo da Ciência da Informação, junto de seus objetos múltiplos ali presentes, são nuançadas diante da pluralidade das formações simbólicas.

Como visto no estudo de Gomes (2010) sobre o grupo de trabalho Mediação, Circulação e Uso da Informação da ANCIB, e sobre a produção científica no Brasil de trabalhos relacionados às temáticas de mediação, destacam-se neste espaço de reflexão os estudos que tratam de a) informação e processos culturais e simbólicos na contemporaneidade; b) mediação, circulação e uso da informação; c) redes sociais e redes que utilizam tecnologias, formas de recepção em diferentes espaços e ambientes institucionais; usos e usuários da informação; d) leitura, textualidade e memória: práticas e políticas.

Para muito além de um outro modo de olhar as práticas informacionais, os estudos de mediação, circulação e apropriação da informação tocam em três esferas críticas do pensamento em Ciência da Informação: historiografia, epistemologia e teoria geral. No primeiro caso, a “filosofia da cultura” e a “filosofia da linguagem” que acompanham a reflexão simbólica “obrigam” a uma reinterpretação da reificação de uma CI constituída nos anos 1960 – o resultado direto é a constituição de um “neodocumentalismo” que, não coincidentemente, faz submergir manifestações simbólicas em sua argumentação, principalmente, sob a influência de uma escola pós-estruturalista. As abordagens epistemológica e teórica-geral são, a partir daí, reconsideradas.

Um elemento central na “viragem” destes três elementos está no pensamento de Bernd Frohmann. Seu conceito de “materialidade”, por exemplo, rediscute a noção de “sistemas de informação” e leva à elaboração de outro conceito, “regimes de informação” que permite rever as ações sócio-políticas das práticas informacionais. A partir da crítica ao conceito abstrato mentalista de informação (e sua pretensa imaterialidade), Frohmann (2008) propõe uma visão distinta da filosofia da informação.

Um outro modo de expressar a mesma idéia é entender que esse foco no conceito de informação num sentido imaterial, presente numa mente, implica a limitação dos estudos dos efeitos dos regimes de informação a

investigações de mudanças na consciência individual. De acordo com este pensar, os efeitos sociais e públicos dos sistemas de informação tornam-se reféns da questão quantos indivíduos afetados. Se a consciência de muitas pessoas se modifica, então, de acordo com essa forma de pensar, um fenômeno social aconteceu (FROHMANN, 2008, p. 21, grifo nosso)

As questões sociais não podem escapar a uma análise que prevê o modo de fazer e de ser da práxis informacional – “[...] gostaria de mostrar como o conceito de materialidade traz um entendimento muito mais rico do caráter público e social da informação em nosso tempo.” (FROHMANN, 2008, p. 21). O movimento de Frohmann (2008), sob os aportes filosóficos foucaultianos, latourianos e fleckianos, ao colocar em foco a materialidade, estabelece uma relação de força epistemológica preponderante para os estudos sócio-históricos da Ciência da Informação.

O “materialismo” frohmanniano aponta para os “poderes” das práticas de mediação, circulação e apropriação dos saberes no contexto dos objetos de estudo do campo informacional. Gestos sócio-políticos como “materialização da informação a partir da documentação”, estabelecimento do “documento” como unidade de apreensão da materialidade nos estudos informacionais, percepção de como a materialidade da informação estabelece, a partir da documentação, um polo de produção de tipos e categorias. Cabe-nos aprofundar tais relações entre mediação, formas simbólicas e estudos informacionais.