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4 PAISAGENS E SUAS FORMAS SIMBÓLICAS: PRIMEIRAS IMPRESSÕES DAS “FEIRAS DE MEDIAÇÃO, CIRCULAÇÃO E APROPRIAÇÃO DOS SABERES”

O conhecimento humano é por sua própria natureza um conhecimento simbólico. Cassirer (1994, p. 96)

A partir dos aportes identificados, considera-se a necessidade de compreensão de “paisagens simbólicas” como espaço de aplicação dos estudos de mediação, circulação e apropriação dos saberes. Diferentes cenários, no entanto, já foram estabelecidos pelos estudos desenvolvidos até o momento. A experiência de aplicação chamou a atenção, neste estudo, para o espaço urbano, sua territorialização por comunidades discursivas e reelaboração dinâmica de sistemas e formas simbólicas. A “feira”, espaço de “elo” espaço-temporal entre o comércio “arcaico” e as formas modernas de trocas econômicas, e sua expressão na ocupação da urbes foi selecionada como objeto de análise.

A fotografia, marca da escola metodológica etnográfica, foi a ferramenta de explicitação do discurso adotada. Em 2013 quatro “feiras de artefatos simbólicos” foram “registradas”: Cidade do México, Porto, Portugal, Rio de Janeiro e Petrópolis. A “paisagem” identificada abaixo se apresenta como locus para reconhecimento, análise e discussão das formações simbólicas no contexto dos estudos informacionais. Interessa-nos, na escolha da

“feira” como “espaço do olhar simbólico” em nosso campo de investigação, e, mais especificamente, as “feiras de livros” e “feiras de antiguidades”, pela conjugação de elementos centrais da epistemologia da CI, a saber: tecnologias da linguagem, práticas de trocas informacionais, instituições e institucionalizações da informação, profissionais da informação e, por fim (e fundamentalmente), experiências compartilhadas de mediação.

O recorte para este estudo, no quadro de espaço e tempo do qual dispomos, selecionou o encontro Primavera dos Livros e a Feira de Antiguidades de Petrópolis. Esta última acontece aos domingos, entre 10 e 16h, no centro do município, na Praça Visconde de Mauá. Trata-se de um evento local, pequeno, com poucas barracas e movimento cambiante, que oscila conforme a presença de turistas na cidade. (PETRÓPOLIS, 2014). Quanto à Primavera do Livro, trata-se de um evento organizado anualmente pela Liga Brasileira de Editores (LIBRE) e pela Prefeitura do Rio de Janeiro, com foro nos jardins do Museu da República, na cidade do Rio de Janeiro. Com a missão de “preservar a bibliodiversidade no mercado editorial brasileiro”, a LIBRE (2014), uma rede de editores independentes, organiza eventos, feiras e outras atividades vinculadas ao universo livreiro. A “Primavera” é um evento grande, com presença diária considerável. Em 2013, momento de nossa análise, ocorreu da quinta- -feira, dia 24 de outubro, até o domingo, dia 27, do mesmo mês, entre 10 e 22h. Nesta edição, a 13ª do evento, foram homenageados Vinícius de Moraes, Rubem Braga e Garrincha.

As FIGURAS 1 e 2, abaixo, apresentam o pequeno recorte do conjunto de registros fotográficos selecionados para a presente discussão e suas análises preliminares. Ao todo, para Primavera dos Livros, foram registradas cinquenta fotografias, que buscavam acompanhar a “movimentação” e os “gestos” simbólicos de sujeitos, artefatos e suas relações. Na Feira de Antiguidade de Petrópolis, foram obtidos vinte registros fotográficos.

FIGURA 1. Primavera dos Livros – 24 a 27 de outubro – Museu da República – Rio de Janeiro

Fonte: O autor.

FIGURA 2. Feira de Antiguidades de Petrópolis

Fonte: O autor.

Os elementos centrais identificados e reconhecidos nas feiras, inerentes ao desenvolvimento das relações entre formações simbólicas e mediação, foram as múltiplas e

tênues identidades – transidentidades – dos artefatos e de seus “apropriadores”; a convivência entre a mediação tecnológica e a mediação humana; a coexistência de técnicas e tecnologias da linguagem em diferentes performances no espaço-tempo; as múltiplas materialidades; as distintas formas de ocupação do espaço público pelos agentes e pelos artefatos; a singularidade dos processos de ressignificação da materialidade; as diferentes faixas etárias e “identidades culturais” dos “apropriadores”; a virtualidade do simbólico em curso: seu potencial de transformação do mundo.

A “força” simbólica enunciada em Peignot (1802) e, principalmente, em Otlet (1934), para o conjunto de práticas, produtos e serviços das práticas bibliológicas, parece estar impregnada em cada um destes “movimentos”. Seja no uso do artefato em sua mais “objetiva” funcionalidade – o caso do aparelho telefônico móvel, como demonstrado na FIGURA 1 –, seja na apropriação de tecnologias da linguagem para “funções” ressignificadas, como no exemplo de câmeras fotográficas e máquinas de escrever na FIGURA 2 –, a “inseparabilidade” entre conhecimento e linguagem (e, principalmente, a complexidade de tal relação), como prevê a visão de Jesse Shera (2008), está manifestada.

A importância do conceito de “documento” também pode ser demonstrada na experiência etnográfica com as feiras de livros e de antiguidades. Como visto no movimento “neodocumentalista” e, principalmente, no pensamento frohmanniano, a materialidade ocupa papel central no desenvolvimento dos estudos da organização do saberes, mas é “ocultada” e, por vezes, “retirada de cena”, diante do uso do conceito de informação. Percebe-se, aqui, diante da dinâmica de usos e reusos das tecnologias da linguagem na miríade simbólica das feiras, a limitação do termo “informação” para a operacionalização reflexiva dos acontecimentos e da ação dos sujeitos no tempo-espaço urbano.

A categoria “documento” anuncia-se aqui como central para pensar e vivenciar o fenômeno das produções e apropriações simbólicas de tais tecnologias. Do celular à caneta, dos códices impressos à máquina calculadora, das câmeras de filmagem às câmeras fotográficas de aparelhos móveis, chegamos à comunidades que produzem e significam tais ferramentas. Trata-se de um conjunto de microgrupos distintos, de idades diferentes, que se reúnem objetivamente a partir de relações com uma certa “materialidade” que existe, em sua macroestrutura, a partir de camadas intangíveis de elementos simbólicos.

O ponto crítico que se advoga aqui é a identificação de novas “paisagens epistêmicas”, ou locus de compreensão da produção, do uso e da circulação de conhecimento, tratado por saberes, na tentativa de contrapor a separação do modelo empírico-científico moderno daqueles outros modos de elaboração de experiências humanas. As feiras (de livros e de

antiguidade), neste sentido, emergem como um conjunto complexo de sistemas e formações simbólicas. Especificamente, a feira de antiguidades traz à baila, como margem de discussão na CI, a perenidade funcional dos artefatos informacionais e sua continuidade “transígnica”, ou capacidade de mutação de sentido, operando ora como ferramenta de acesso a conteúdos, ora como dispositivo de memória; a feira de livros, por sua vez, sugere os processos lentos de ressignificação e as práticas de convivência e de simbolização em curso.

Na perspectiva dos estudos de mediação, circulação e apropriação da informação, as feiras surgem como “paisagens infoepistêmicas marginais”: aqui, saber e mediação são coconstituídos sob “lógicas” e “retóricas” totalmente distintas da experiência “infoepistêmica tradicional”, ou seja, o modo de produzir conhecimento, organizá-lo e disponibilizá-lo de “centros de cálculo-modelo” para usar a expressão de Bruno Latour. Diferentemente dos arquivos, das bibliotecas e dos museus, outro modos operandi epistêmico se estabelece nestas feiras. “Contra” os “centros de cálculo-modelo”, emergem aqui espécies de “zonas de prosa”, onde o diálogo se afasta da “dialética”, onde o “discurso” se afasta da “erudição”, e as trocas linguísticas ordinárias ganham o “empoderamento” de produção e redefinição de significados. Isto não resulta, no entanto, em uma elaboração aepistêmica. Trata-se de um modo de conhecer distinto, que ora quebra com as “regras” dos regimes lineares de informação, ora reapropria a ordem dos fluxos de um sistema sócio-político de informação pré-determinado.

No silêncio, na tranquilidade e nos movimentos breves da Feira de Antiguidades de Petrópolis (FIGURA 2), observa-se o jogo de performances de reapropriação no espaço- -tempo de saberes, técnicas e tecnologias. O modo de olhar, se aproximar, de indagar entre visitante e feirante aponta para mecanismos produção e significação do conhecimento das tecnologias da linguagem coparticipativo com a elaboração epistêmica clássica da percepção de tais dispositivos. A retórica da organização-disponibilização de artefatos no “balcão” das barracas demonstra o caráter mutante das transidentidades de objetos e “apropriadores”, que parecem se transmutar na pacata manhã petropolitana diante do histórico Museu Imperial.

Já na movimentada feira de livros da “Primavera” (FIGURA 1), as “pequenas multidões” se deslocam em vai e vem em torno das barracas repletas de livros, mas tal movimento não diz respeito apenas à procura pelo contato com artefato epistêmico do códice vegetal. A circulação dos saberes aqui, complexa em sua elaboração e manifestação, responde por uma relação entre artefatos e sujeitos como “metamediadores”: é impossível determinar onde começa e onde termina o suposto “isolamento” entre mediação humana e mediação técnica, entre novas formas e arcaicas ferramentas de mediação artefactual, e novas e arcaicas formas de relação entre mediadores. Entre aparelhos celulares e máquinas fotográficas

digitais, centenas e centenas de livros, as “pequenas multidões” atravessam o dia coproduzindo significados de mediação nos jardins do Museu da República.