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3 MEDIAÇÃO, ESTUDOS INFORMACIONAIS E FORMAÇÕES SIMBÓLICAS

No começo era o verbo - na verdade, sem o "verbo", dificilmente teríamos um princípio. Jesse Shera (1977)

Como lembrado em Carlos Cândido de Almeida (2012), a partir de uma visão retirada do modelo semiótico de visão de mundo, os processos de mediação se estabelecem, além dos níveis institucional e profissional, segundo um contexto sócio-simbólico, ligado à tentativa de compreensão do papel da cultura e da linguagem como espécies de “mediadoras primárias”. Deste modo, “A primeira mediação é, com efeito, simbólica, através da linguagem e da cultura.” (ALMEIDA, 2008, p. 3). De fato, este ponto de vista, central para nossa análise dos processos de mediação e do papel deste conceito na própria construção da CI, permite perceber as relações intrínsecas entre cultura, arte e religião para citar apenas três eixos, em geral, afastados do pensamento informacional, presentes nos estudos de mediação, circulação e apropriação da informação, como visto em Almeida (2008), Almeida & Crippa (2011), Almeida e Nogueira (2013), Martins (2010) e no pensamento de Regina Marteleto construído entre os anos 1990 e a última década.

Jean Davallon (2007, p. 5-6) chama a atenção para o ponto de vista simbólico na constituição da noção de mediação. Este posicionamento reclama dois “gestos simbólicos”: uma “operação simbólica de instauração de uma relação entre o mundo do visitante e o mundo da ciência pela-através da exposição da ciência” e a “decisão de alargar o seu emprego [da noção de mediação] à dimensão simbólica do funcionamento midiático da exposição”.

No plano epistemológico, um primeiro recuo aos “sistemas simbólicos” no contexto da CI se dá no (re)encontro com Jesse Shera (1977). Para o epistemólogo, a linguagem humana é metafórica, logo, tem por essência a analogia. A singularidade humana é, pois, dada a partir de sua capacidade de “conceituar a experiência e comunicar as conceituações através da representação simbólica” (SHERA, 1977, p. 10).

Assim como a necessidade de informação orienta o indivíduo, assim também orienta sociedades. É a base do comportamento coletivo, tanto quanto do comportamento individual. Assim como o cérebro se deteriora quando privado de informação, assim também a sociedade, se se quer evitar-lhe a decadência, deve fazer constante provisão para a aquisição e assimilação de novas informações. Mas para ser transmitido dentro de um grupo e absorvido por qualquer grupo, o que é conhecido por cada um dos membros deve ser comunicado e comunicável. Desse modo, conhecimento e linguagem são inseparáveis, pois a linguagem é a estruturação simbólica do conhecimento em forma comunicável e porque é o instrumento

através do qual o conhecimento é comunicado. (SHERA, 1977, p. 10,

grifo nosso).

As afirmações do epistemólogo (1977) atingem algumas aporias da filosofia da linguagem e da filosofia da cultura que parecem simples e solucionadas. No entanto, elas chamam a atenção para o ponto de inflexão destas linhas de reflexão filosófica dentro da CI.

[...] a fala sozinha não poderia satisfazer a necessidade de informação do homem, pois a comunicação oral foi severamente limitada pelas fronteiras temporais da memória humana e dos perímetros espaciais do contato humano. Assim, mesmo que o homem pudesse se comunicar – no caso, de indivíduo para indivíduo — através de consideráveis distâncias e de geração a geração, uma simples quebra na cadeia, e a idéia estaria perdida — talvez para sempre. Artifícios mnemónicos, tais como a rima, foram concebidos para auxiliar na preservação desta cadeia, mas quando muito, eles foram insuficientemente eficazes. O segundo grande passo no processo de comunicação veio quando o homem descobriu que era possível, por meio de alguma forma de registro gráfico, transcender espaço e tempo tornando-o independente da memória humana e do contato físico (SHERA, 1977, p. 10-11, grifo nosso).

Antes de Jesse Shera, porém, em nomes fundadores das reflexões sobre as práticas de preservação, organização e disseminação do conhecimento, como Gabriel Peignot e Paul Otlet, as menções às formações simbólicas já eram ponto de inflexão. Quando, sob a “brecha neodocumentalista”, é colocada em questão a historicidade das escolas de Library Science e Documentation, entre Estados Unidos e Europa, o poder simbólico das bibliotecas e o

simbolismo dos documentos, podemos compreender que estamos no redemoinho simbólico da construção da paisagem humana: vivemos por, para e da diversidade simbólica dos artefatos e das interpretações dos artefatos.

Podemos perceber, na aproximação entre Shera e Cassirer, uma visão clara de uma “economia” dos “valores simbólicos” sob uma filosofia sensualista – ou aplicada ao mundo das sensibilidades, materialidades, discursos, e, não, dos mentalismos:

A consciência não é capaz de, a todo momento, dedicar-se com a mesma intensidade às impressões sensoriais específicas que tomam conta dela; ela não consegue lê-las todas com a mesma nitidez, a mesma concretude e individualidade. Desse modo, ela cria para si esquemas e imagens globais, em que se encontra inserido um grande número de conteúdos isolados e em que tais conteúdos fluem juntos sem distinção. No entanto, tais esquemas não querem nem podem ser outra coisa senão meras abreviações, um condensado de impressões, em forma de compêndio. Onde quisermos olhar com acuidade e precisão, teremos de colocar essas abreviações novamente, e, no lugar dos valores simbólicos, deverão ser inseridos valores ‘reais’, ou seja, os valores atuais da sensação. Por conseguinte, todo pensamento simbólico e toda percepção simbólica constituem um ato meramente negativo: um ato decorrente da necessidade de omissão ou da obrigação

de omitir. (CASSIRER, 2011, p. 326, grifo nosso)

É pontual esta relação, para além de Shera, com o pensamento otletiano. O projeto bibliológico do advogado belga aponta exatamente para a força da “economia dos valores simbólicos” nas práticas de organização do saberes. Em Otlet (1934, p. 419), o derradeiro objetivo da Bibliologie é a Cidade Bibliológica, ou Cité mondiale. Esta cidade é estruturada em três objetivos centrais:

1. Etre un instrument pratique pour la coopération internationale, dans tous domaines, à la manière dont, dans chaque pays, la Capitale facilite des coopérations au degré national; 2. Offrir l’ocassion, toutes forces unies, de réaliser une citéé modèle parce qu’elle serait réalisée selon un plan, en fois, et soustraite ainsi aux contingences des cites anciennes difficiles à transformer. 3. Enfin constituer une représentation et symbole permanent

de l’unité humaine. (OTLET, 1934, p. 419, grifo nosso)

Esta visão simbólica está presente, objetivamente, em González de Gómez (1996a, 1996b, 2006): das práticas da organização dos saberes, passando pelos regimes de informação, chegaríamos às políticas simbólicas. Em outras palavras, “de la fiche à la Cité mondiale” (OTLET, 1934, p. 425). Não há, pois, em nosso ponto de vista, expressão mais simples e objetiva que manifeste a relação entre o simbolismo do projeto da Bibliologia no século XIX, a linguagem e a ética do organizador dos saberes: a partir de uma das mais minuciosas atividades bibliológicas, a elaboração de uma ficha catalográfica, microuniverso mimético de uma manifestação simbólica qualquer, chegaríamos ao urbanismo utópico do “bem estar” coletivo –“bem estar informacional” – promovido pela OS na pólis do Livre,

invenção mais criativa da linguagem. A cidade não existe senão como discurso. E uma filosofia da OS é, primitivamente, a “lembrança” desta “natureza”.

De volta à Cassirer (2011 p. 67), encontramos sua discussão, dentro da “fenomenologia do conhecimento”, com Henri Bergson. Segundo o discurso cassireriano, a metafísica bergsoniana é a “ciência que aspira prescindir dos símbolos”. Assim, sob este ponto de vista, apenas quando nos desprendemos de tudo o que é simbólico, de tudo o que vem do “feitiço da linguagem”, chegamos à “verdadeira realidade”. Na visão de Cassirer (2011), tal crítica à possibilidade de uma filosofia das formas simbólicas reside em um fato que é central para a epistemologia da CI: Bergson considera “todas as formações simbólicas não apenas como um processo de mediação, mas, também, como um processo de reificação. A forma coisificada aparece para ele como o protótipo daquele tipo de apreensão ‘mediata’ da realidade” (CASSIRER, 2011, p. 69). Em uma direção oposta, a abordagem cassireriana não só coloca as formas simbólicas “para dentro” da filosofia, como busca uma função simbólica universal, além das microssimbólicas das diferentes culturas, dentro da teoria pura – em outras palavras, a elaboração do conceito de ser e da autocerteza teórica, por exemplo, se dá a partir da capacidade de realização de operações simbólicas, fruto de etapas indissociáveis do pensamento mítico e linguagem.

4 PAISAGENS E SUAS FORMAS SIMBÓLICAS: PRIMEIRAS IMPRESSÕES DAS