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fazer acolchoado! Eu não sei o T.O também não! Como é que tu vais passar uma coisa incerta para um paciente?“ (Encarregada da Promoção Social).

O exemplo dos acolchoados é rico. As pessoas resolveram fazer algo útil, usando seu tempo dentro do CAPS, para fugir dos tradicionais bonequinhos e cinzeiros de gesso e argila com que comumente os terapeutas ocupacionais ocupam os pacientes. Numa região de clima temperado, com invernos rigorosos, nada mais útil numa casa do que um acolchoado para a cama. Nenhum paciente sabia como fazê-lo. Os técnicos não aprendem a fazer acolchoados nas universidades, evidentemente. Os debates sobre acolchoados levaram ao surgimento de saídas. Acabaram conseguindo a vinda de uma senhora de uma cidade vizinha, que os orientou e adestrou. O resultado psicológico foi maior do que o valor dos acolchoados produzidos. O saldo organizativo, para os profissionais, foi maior do que a importância do manejo da técnica artesanal. Isto é dificil de ser visto por quem não está no dia-a-dia com os pacientes:

“O paciente já é deficiente, então como é que tu vais jogar um acolchoado e

dizer; ‘-Olha, vocês vão costurando em linha reta’. ...Eu acho que o trabalho para ti

passares, para fazer o acolchoado, tens que ter o manejo e a técnica ... para ele

tentar confeccionar e a coisa sair mais bonita[...]. Para ele também se valorizar

enquanto pessoa”

(Encarregada da Promoção Social).

Para muitos leigos, a idéia de terapia ocupacional ora é algo como uma pedagogia profissionalizante, ora é algo como divertir os pacientes dando-lhes tarefas infantis para passarem o tempo ou para se treinarem em habilidades psicomotoras. Esta questão ainda não está muito clara para os administradores dos serviços.

“Por exemplo, essa questão que ela coloca da terapia ocupacional, eu, na

minha visão, acho que tem que [...] avaliar se a pessoa está evoluindo ou não no

grupo. Eu tenho que ter uma ficha do indivíduo, para fazer avaliação ... Então eu

acho que cada um deve ter uma pastinha, valorizar os trabalhinhos que eles fazem.

Guardar, não é? Para ver como foi o crescimento dessa pessoa”

(Secretária Municipal de Saúde).

Esta representação do trabalho com o paciente tem pontos semelhante à do trabalho escolar realizado com crianças pequenas. De fato, tanto a criança como o louco são vistos como “inocentes” que se equiparam, em muitas ocasiões. Inclusive no Código Civil.

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Transições da Terapia Ocupacional

A prática inicial do terapeuta ocupacional entrevistado era hospitalar. A praxiterapia feita fora de hospital psiquiátrico transformou-se e foi desenvolvendo uma abordagem bem diferente.

“O que você tem que fazer [no hospital]? Você tem que trabalhar em cima dos

sintomas deles, dando um suporte... Então eu faço até jogo [de baralho], eu jogo

com eles... mostro que eu perco. Eu não sou paciente, eu sou terapeuta, mas eu

perco e eles ganham. Quando tem essa visão, isso é muito bom para eles, porque a

visão que eles dão é de marginalização: não produzem, são doentes... totalmente

incapazes. E eu tento resgatar este potencial. E é um trabalho que eu digo ‘mais de

sintomas’, porque não tem um seguimento”

(Terapeuta Ocupacional).

O trabalho com o paciente hospitalizado tem como limite o tempo da internação e isto vai marcar as abordagens utilizadas.

“Você tem que fazer aquilo ali, naqueles vinte dias, no máximo. Tentar muita

conversa, passar limites, tudo ali, mas é uma coisa muito rápida. Depois eles vão

embora e não têm um seguimento”

(Terapeuta Ocupacional).

O que é possível, portanto, trabalhar no hospital, para o terapeuta ocupacional, limita- se por sintomas, aborda uma fase da vida (a época em que o paciente está internado) e não é personalizado (marca-se por uma impessoalidade),

“Lá eu não consigo, eu não posso fazer uma avaliação individualizada,

porque - imagina - tem cento e setenta e poucos pacientes e eu trabalho, bem

dizer...com todos. Aí a avaliação que a gente faz é mais observativa, é vendo como

é que ele está no dia-a-dia, pedindo ajuda para a enfermagem, que eles estão mais

em contato. Para a gente é [este] o critério de escolha para ingressarem nos grupos

(grupos de trabalhos, operativos, de biblioteca), toda a operacionalidade da unidade

[hospitalar] deles”

(Terapeuta Ocupacional).

A equipe do hospital psiquiátrico do Rio Maina conseguira, pois, organizar um plano de assistência aos seus internos em moldes de comunidade terapêutica, baseado em grupos operativos relativamente eficientes. E interessante que na comparação com o trabalho que o

terapeuta ocupacional deste hospital vai desenvolver, depois, no CAPS de Cocai do Sul, surgem reflexões inusitadas sobre os efeitos sociais do trabalho hospitalar.

“A nossa equipe lá [do hospital], e eu particularmente, eu me senti frustrado

porque a clientela é de classe média para baixo. Então o que acontecia? Quanto

mais a gente trabalhasse, quanto mais a qualidade do trabalho melhorasse, mais

eles queriam ficar lá, eles não queriam sair e ir embora. Tem gente que pulava de

fora para dentro... Tu sabes que eles nunca tiveram uma festa de aniversário? Eles,

nunca. Nossa! Disto, o hospital tem tudo. Sabe lá? Tem tudo!”

(Terapeuta Ocupacional).

A melhoria das condições do hospital e a criação de uma micro-sociedade ativa e festiva no seu interior gera desejos de acomodar-se por lá. O terapeuta mostra seu conflito, que é o conflito da instituição: quanto melhor o hospital, menor o desejo de sair dele; quanto melhor o profissional, menos ele prepara para a vida normal. Este paradoxo das comunidades terapêuticas para clientelas de baixa renda está ligado ao etnocentismo dos profissionais. A confusão entre normalidade do ponto de vista psicopatológico e do ponto de vista social enraiza o paradoxo. É o caso da festa de aniversário, xom ritual brasileiro.

“A gente tenta colocar para eles, propor para eles tudo dentro da

normalidade, uma vida normal, mas para eles não é normal”

(Terapeuta Ocupacional).

Este excedente, além do normal, dentro de um mundo artificial, cercado e isolado da vida cotidiana comunitária e social estimula vínculos com a instituição. E gera decepções dos técnicos com o seu próprio trabalho, assim que eles se vejam em um ambiente mais realista.

“Frustrava muito porque pacientes que saiam [do hospital] numa sexta-feira,

chegava a segunda-feira e eles estavam de volta. Era uma coisa séria isso. Porque

era um trabalho que estava iniciando, em processo de estruturação. Eram pacientes

antigos que antes estavam lá e não tinham nada. Começaram a ter isso de uma

hora para outra. E não queriam ir embora, não é? Ir embora para quê? Para passar

fome, receber maus tratos?“

(Terapeuta Ocupacional).

A passagem para o trabalho no mundo aberto do CAPS, fora do hospital, serviu como lenitivo para aquela finstração e abriu possibilidades novas:

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“Então, quando eu vim trabalhar aqui, parece que amenizou um pouco isso.

Aqui é um trabalho mais com a comunidade, é um trabalho que a gente pode fazer

mais juntos. Se dá algum problema a gente vai conversar com a família, tenta fazer

um trabalho com a família também. Eles têm reuniões sistemáticas, então a gente

pode fazer trocas, aqui. A gente fez trabalhos de dinâmica de grupos com eles, com

os pais. Nós lançamos vídeos de todos... Fizemos grupo com expressão de afeto,

de eles abraçarem[...] os pais. Aqui é muito mais fácil [...], tudo o que for feito aqui

[no CAPS] tem que funcionar para a vida, tem que valer lá fora, senão é falso. Não

adianta eu ficar entre quatro paredes, não vai ter sentido depois. Aqui você tem

seguimento, você tem vivência, você leva eles a passear, ele têm contato com a

comunidade, com as pessoas”

(Terapeuta Ocupacional).

O

Hospital e o Extra-Hospitalar

Entre os pacientes que freqüentam regularmente o CAPS vão se tomando mais raras as internações hospitalares. Aparentemente a agressividade é o ponto de intolerância, no convívio social. Ela é o marco da fronteira entre “precisar intemar” ou não:

“Quando há necessidade a gente até encaminha para a internação. Imagina,

se o paciente às vezes perde o suporte aqui dentro, imagina na família! Não é? É

bem mais difícil segurar. Então, quando isso acontece, de o paciente já não estar

bem, está bem agressivo com a equipe, isto é indicativo até de, quem sabe, uma

internação, para ele ter aquela contenção do hospital. Enfim, para ele esbater o

surto”

(Médico).

Portanto, para os médicos do CAPS seguem valendo os pressupostos de que a crise psicótica algumas vezes requer intemamento. Quando tudo falha, quando não há diálogo e nem rendimento de qualquer terapia, o hospital reaparece como possibilidade, agora raramente usada, de tratamento. Neste sentido, o intemamento é visto como complemento e não como conflito com o trabalho do CAPS. Mas, por estarmos diante de dois paradigmas de tratamento em processo de sucessão, são inevitáveis as comparações entre eles, como se fossem concorrentes.

“O hospital é mais paternalista. A gente assume dentro do hospital, muito

mais, as funções até de família...”

(Médico).

O hospital estudado cumpre as normas do Ministério da Saúde. É uma instituição que ao paciente pobre

“dá casa, dá comida, dá medicação, tu atendes, tu conversas, tem a

assistência social, tem a nutricionista. E como a camada da população que é