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para dizer que eu estou aprendendo agora a questão do trabalho em psiquiatria, porque do tempo de escola eu não lembro muito!” (Enfermeira).

Os médicos não se incomodam ao dizer que não conhecem Lacan e que não leram Basaglia, mas demonstram conhecer bem os textos básicos de clínica psiquiátrica usados nas escolas de medicina e nas residências de psiquiatria. Conhecem, basicamente, os princípios de psiquiatria preventiva de Caplan, sem se dizerem l51iados á sua escola. Não o citam expontaneamente ao falarem de autores. Quanto à relação médico-paciente, um deles denota uma kifluência existencialista, sem anunciá-la. O outro assume totalmente a influência da psicanálise kleiniana^^ na sua formação em psiquiatria dinâmica.

A formação do psicólogo destaca-se como panorâmica: possibilita-lhe, mesmo sem conhecer as obras, citar e localizar histórica e geograficamente autores como Piaget, Freud, Lacan, Basaglia, Laing, Szasz e Goffinan.

A Assistente Social denota conhecer Paulo Freire. Suas intervenções, muitas vezes, deixam entrever uma tentativa de deslocar abordagens e técnicas da pedagogia daquele autor ao trabalho com os pacientes e seus familiares.

Fica evidente, à observação, que o CAPS não é um espaço de estudo teórico. É espaço de aplicação, checagem e transformação de saberes, aprendidos nas escolas ou em outros locais onde os profissionais trabalharam anteriormente. É também um local de aprendizado através da prática do cotidiano, onde muitas vezes a queixa é a de

“faltar tempo para se

conversar”,

para se

“trocar idéias”

e para se estudar. Os estudos teóricos comentados em

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Melanie Klein foi a principal autora paradigmática a influenciar, frente aos temas psicanaliticos e de psicologia médica, a formação de psiquiatras no sul do Brasil. Anna Freud, Ballint e Menninger também tiveram influência na área.

grupo são pragmáticos. O livro de Jairo Goldberg, sobre o tratamento da psicose em serviços públicos brasileiros, mostrou-se como saída para algumas dúvidas importantes. Goldberg (1994) e o relatório da Conferência de Caracas foram apontados pela secretária municipal de Saúde como os apoios teóricos do trabalho no CAPS. Fora disto, segundo ela,

“a gente é

carente de bibliografia” .

A reivindicação de

“supervisão”

adenda-se a este tema, repetitivamente.

De fato, durante as entrevistas, com exceção dos médicos em relação aos livros-texto de psiquiatria clínica, e da assistente social em relação à obra de Paulo Freire, nenhum dos entrevistados conseguiu enunciar prontamente, de cor, o título de algum livro, com o nome de seu respectivo autor, como obra que o tivesse marcado na sua formação profissional.

Avaliação e Decomposição para uma Releitura

Os dados, colhidos entre os protagonistas do trabalho no CAPS, nos levam a observar: 1. A característica oral da transmissão do saber nas escolas, em detrimento dos Hvros. 2. A formação eclética e a ausência de formação aprofundada dentro de alguma escola

de pensamento, donde a pouca familiaridade com autores e obras.

3. A influência positiva de alguns professores como fator decisivo na formação.

4. A idéia de que há um saber, em algum lugar, sobre Saúde Mental, e que a “supervisão” poderá trazer este saber à equipe. Tal saber não é procurado nos autores paradigmáticos e sim em uma autoridade, em alguém que fosse enviado por uma instituição, ainda num nível imaginário, a qual poderia ser a Secretaria de Estado da Saúde, uma universidade qualquer, ou outro órgão.

5. A presença de uma multiplicidade de discursos veiculados por autores e escolas, que se fazem anônimos e eventualmente até desconexos em relação aos circundantes. Assim, psicólogo, assistente social, enfermeiras, podem falar de todos os temas levantados por Gerald Caplan (1980), sem saber que isto é uma escola de psiquiatria preventiva e comunitária norte-americana, com uma teoria, métodos de

trabalho definidos e experiências realizadas, inclusive no Brasil, e passível de críticas elaboradas já há vários anos.

O principal grupo de assuntos é o intitulado “temas referentes a representações da doença mental, da loucura e do tratamento” contém tenoas e características presentes em todas as entrevistas de membros da equipe do CAPS.

O que varia nestes temas e características é a sua intensidade: ora estão longamente presentes, ora apenas aparecem como alusão. Mas podem ser encontradas sempre. Podem ser resumidos nos seguintes itens:

- visão de técnicos versus visão de leigos; - modelo de doença mental;

- loucura;

- rótulos nosológicos;

- limitação pela doença mental; - surto ou crise psicótica; - medo do paciente; - determinantes de saúde; - noção de tratamento; - o paciente como pessoa; - educação da comunidade.

Estes itens locahzam-se em temas e características apresentados de forma bastante uniforme, com pouquíssimas contradições que possam ser ditas notáveis, entre uma entrevista e outra. Podem ser melhor especificados:

- separação da visão dos técnicos da dos leigos;

- terminologia mista, ora psiquiátrica, ora de outros campos (sociológica ou popular); - tergiversação e hesitação ao definir termos como “normal”, “doença mental” e

“loucura”;

- uso de metáforas da mecânica ao falar de doença mental;

- modelo híbrido (mescla de modelo médico, sociológico e popular) de doença mental, sem expectativa de Hteralidade quanto às palavras;

- loucura é associada a perambulação pelas ruas; - pouca vinculação às rotulações nosológicas;

- conceito de doença mental ligado ao de limitação (funcional);

- o “surto” é parte importante e crítica dos conceitos de loucura e de doença mental; - o medo gerado pelo paciente nos outros é constituinte dos conceitos de loucura e de

doença mental;

- há presença de um discurso social, oriundo da Saúde PúbHca, sobre os determinantes de saúde;

- tratamento é uma noção composta, híbrida;

- o tratamento implica em montar vínculo com a instituição (CAPS);

- há imia idéia de que o tratamento realizado atua simultaneamente sobre um problema do paciente e sobre a sua não integração na família e na comunidade;

- trabalham, na abordagem psicológica do paciente, mormente na área de uma psicologia da consciência, sem definição de linha teórica, com poucos momentos de excessão;

- há uma concepção de primazia da “pessoa” sobre o “transtorno mental”; - idealização de um “trabalho educativo” a ser feito com a comunidade.

Os outros grupos de assuntos classificados foram: - “Formação escolar e tradições de saberes adotadas”.

- “Trabalho em equipe multidisciplinar e papéis profissionais”.

- “Visão do hospital psiquiátrico e do lugar do tratamento sob intemação”. - “PoHtica” .

- “Trabalho de pacientes, terapia ocupacional e reabüitação psicossocial”. - “Loucos de aldeia e convívio social com a psicose”.

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‘Trevenção, educação em Saúde Mental e medicina comunitária”. “Grupos” .

“Trabalho com famflias”.

A Entrevista da Mãe do Usuário

Os principais conteúdos observados e classificados, da entrevista colhida com a mãe de um usuário do CAPS, são os seguintes:

- A presença dos mortos no cotidiano.

- A presença do serviço público de Saúde Mental na vida familiar. - A doença mental dentro do lar.

- Crenças populares sobre a psicose.

- Possessão, demoníaca ou por outras entidades espirituais.

- A busca da cura pela rehgião (pentecostahsmo, umbanda, benzimentos, padres) - A influência dos astros sobre as pessoas.

- A parapsicologia.

- A convivência com o surto psicótico. - O trabalho na vida do doente mental.

- A doença mental e o uso de bebidas alcoóhcas. - A tolerância e a rejeição ao doente mental. - O louco da aldeia.

- Identificação com a natureza.

Ao comentarmos as entrevistas, mantivemos uma divisão, por subtítulos, mais pela seqüência expontânea dos assuntos, acompanhando seu Hvre fluxo à medida em que avançam os temas, do que por uma seqüência rígida hgada à nossa decomposição inicial, em conteúdos.

O COMETA DE CHl^SEAUX — G ravura d o sAiuIo

Figura 10: Um Camela

Fonte: Azevedo (sem data)

9. R e p r e s e n t a ç õ e s d e D o e n ç a M e n t a l e d e Tr a t a m e n t o

Olhares Leigos e Olhares Técnicos

O convívio cotidiano dos técnicos com diversos pacientes, e com seus familiares, gera contato com suas representações. Apesar de que a linguagem corriqueira dos técnicos use expressões populares e popularizadas, há demarcação clara das crenças e interpretações que pertenceriam ao terreno leigo. Há separação entre “eles” e “nós”, entre o popular e o técnico, o leigo e o erudito, a opinião comum e a profissional. Este senso de pertencer a “nós”, ou seja à equipe, é forte mesmo nos profissionais de menor escolaridade, como a auxiliar de enfermagem e a agente de serviços gerais. A auxiliar, por exemplo, ao relatar as mudanças acontecidas em sua concepções desde que começou a trabalhar no CAPS, conta que, para algnns pacientes,

“olhava curiosa, igual aos outros [... ] olhava, às vezes até tinha medo”.

Era um olhar leigo.

“Agora não! A gente já entende por que que eles são assim, a gente já