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“Ele ficou doze anos na Colônia Santana, ficou doze anos lá Então quando ele veio para cá a gente enfrentou uma série de problemas, e a questão da

loucura dele. O pessoal enticava, depois ele entrava em crise. Ele se veste de

travesti, ele põe uma tiara.” “Ele levanta a roupa, e aí as crianças enticam e o

pessoal fica bravo e tal. E o pessoal também oferece bebida, se ele está tomando

medicamento ou não, e aí ficam fazendo chacota. Passa a ser engraçado e passa a

ser também chacota dos outros. Não é? [...] No início a gente enfrentou esse tipo de

problema, porque quando a gente veio, quando iniciou o CAPS, o primeiro paciente

foi ele, assim, que começou a dar confusão”

(Encarregada da Promoção Social).

O tempo de internação dado aqui é irreal: funciona como número cabalístico, o número da rainha do baralho, das horas do relógio, dos apóstolos de Cristo. Nos arquivos do Hospital Colônia Santana pode-se somar um ano e oito meses de internamento para este paciente, divididos em sete diferentes ingressos. Desde o primeiro ingresso, em 1984, até o penúltimo, cinco anos depois, perfaz uma média de pouco menos de dois meses de internação a cada ingresso. No imcio de 1994, encaminhado por um juiz, ficou no hospital por sete meses consecutivos.

A novidade não estava na presença de Manso na cidade, e skn na presença de uma prefeitura com fimcionários empenhados em resolver o problema de suas loucuras.

Seu travestimento, pelo menos nos dias em que tentamos conversar com Manso, mais do que as modas femininas, lembrava alegorias florais: grinaldas de flores colhidas em jardins de casas vizinhas, precariamente atadas a hastes verdes flexíveis, cheias de folhas, que circulavam a cabeça e a cintura; torso descoberto; blusa, atada pelas mangas, nos quadris, como um saiote sobre a bermuda curta; sandálias de dedo; um rústico bastão, feito de galho de árvore, na mão. Ornado de vegetais, fazia pensar numa florescente mania, contrastando com o quadro que expunha na Colônia Santana, segundo as anotações de seu prontuário, então compatíveis com esquizofrenia hebefrênica.

A hebefrenia é de uma conduta semelhante à da knbecüidade. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais norte-americano (DSM IV) troca o histórico nome da hebefrenia para “esquizofrenia tipo desorganizado” (APA, 1995:276) e define entre suas

características o comportamento e o discurso desorganizados, afeto embotado ou inadequado, atitudes tolas e risos sem relação adequada com o conteúdo do discurso, trejeitos faciais, maneirismos e outras estranhezas do comportamento. A novidade do DSM IV não apaga o conhecimento antigo de uma psicose na qual as pessoas se assemelham ao retardado mental. Neste caso, ao “bobo alegre”, expressão que ainda habita o vocabulário popular do Brasil meridional.

Manso oscila, pois, entre o bobo alegre, imbecil ou idiota, e a figura mitológica, bissexual, vestida de flora e de natureza, cheia de energia.

Na mitologia greco-romana as dríades eram as ninfas protetoras das florestas e dos bosques. “Tão robustas como fi-escas e lépidas, elas podiam errar em hberdade, formar coros de danças em redor dos carvalhos que lhes eram consagrados e sobreviver às árvores colocadas sob sua proteção”. Representadas sob a forma de mulheres que se confundiam com árvores, enfeitavam a cabeça com uma coroa de folhas de carvalho. Algumas vezes traziam uma “acha na mão, porque se acreditava que essas ninfas puniam os ultrajes feitos às árvore sob a sua guarda” (Commehn: 131). As ninfas conviviam com sátiros e faunos. Silvano, deus que tinha vários templos em Roma, servia como “espantalho” às crianças que se divertiam em quebrar os galhos das árvores (Commehn: 143).

Manso revive, deslocado e provavelmente sem o saber, cenas semelhantes às cenas mitológicas clássicas.

Sua incompetência social, aos olhos do povo, dá pena: é apenas um idiota, um bobo. Seu trabalho não é reconhecido socialmente. Parece não compreender o valor do dinheiro. Socialmente é um marginal. Brinca com as crianças no mundo sádico do gracejo e do deboche, do gozo arrancado às custas do outro. Divertem-se numa reciprocidade. O esforço da comunidade exercido sobre ele é para infantilizá-lo, desresponsabüizá-lo, nivelá-lo às crianças.

Diante dele vale usar gestos - movimentos corporais e posturas, inclusive expressões faciais - que expressam um código aceito pela comunidade, que ora finge que ele não entende, ora usa só para provocá-lo. Algvimas crianças, diante dele, usam a tradicional mímica de expressar insânia: “tocar repetidamente com o indicador na testa ou rodá-lo em forma de

parafuso”, em direção à cabeça. São gestos vulgares na Europa, replantados no Brasil. Neles, Câmara Cascudo (1987: 169) vê a possibilidade de guardar-se uma reminiscência da antiga trepanação libertadora da ahna, asfixiada no cérebro, motivando a loucura, já que esta era a terapêutica pré-histórica, mesmo no continente americano, além de ser tradição entre os faraós.

Mas se este personagem citado, eventualmente é sentido como criança, sabe-se que ele é, na reahdade, adulto. Seu sexo, em algum momento, dependendo de como age frente aos outros, vira escândalo. Para muitos, o inocente não é um anjinho: é um animal.

Seu exibicionismo ora é cômico, ora irritante. Ter a região das nádegas exposta ao oUiar público constitui situação de vexame e acabrunhamento, que na Idade Média “motivava a euforia zombeteira pela simples referência verbal”, pois nada era tão cômico para o homem medieval como o desnudamento involuntário (Cascudo, 1987: 24). A irritação dos outros ocorre quando sua displicência ou sua intenção caem no campo sexual.

Manso encama, pois, a criança rural e os perigos urbanos, o bobo inocente e o animal perverso. E o bicho do mato, vestido de plantas, e é o senhor das ruas, o diabo solto pelo asfalto. Compõe-se dos resíduos da identidade fragmentada de uma cidade nova, talvez.

“E até, a gente sofria pressão da família dele, de vergonha que sentiam de ter

um irmão assim, de quem o pessoal ria”

(Encarregada da Promoção Social).

Temporariamente a cidade encontra nele algumas qi:ialidades que nem todos os desviantes, doentes ou anormais têm: a de representar o bobo alegre, o louco manso e complacente, o jovenzinho ingênuo. Neste momento se insere na rede de relações sociais. As pessoas o conhecem e conversam com ele. Ao mesmo tempo que recebe compaixão, serve de diversão lúdica aos outros. Suporta gozações e zombarias nas rodas de bar e nas festas de igreja, participando delas, ao seu modo. As brincadeiras dramatizam a ingenuidade, mas também dramatizam as transgressões fantasmáticas hétero e homossexuais que passam pela cabeça dos populares. Ora lhe atribuem desejar casar com alguém que não o quer, ora lhe atribuem ter sido estuprado por algum sodomita, ora dizem que passou a mão nos seios de senhoras casadas, cujos maridos não estãó presentes.

A ele se impõe representar o teatro das transgressões possíveis e impossíveis. Quando não está em surto é inofensivo. É mesmo uma pessoa boa, que carrega em seus ombros todas as vergonhas da comimidade, em forma de comédia.

Ator de cenas bufas, recebe uma certa admiração. Fica a dúvida, se teria ou não cometido as deünqüências que os outros gostariam de, alguma vez, cometer. É nesta representação diante da comunidade que Manso ganha seu lugar dentro dela: ele tem nma função reconhecida. Leva uma vida púbHca.

Seu poder reside em poder fazer o que ninguém faz, ao menos no papo, nas conversas descompromissadas. As histórias que contam, mesmo na sua presença, são ridículas, absurdas, exageradas. Muitas vezes são escandalosas e giram em tom o de transgressões incestuosas, homossexualidade, assédio, palavrões.

1 1 . At e n ç ã o, Re a b i l i t a ç ã o e In c l u s ã o

Funcionários Paternais, Transgressões e Exclusão

A criação do município institui a prefeitura, a sede do poder público, a quem a família recorre, pedindo socorro, envergonhada

“de ter um irmão assim”.

A maior estmturação do estado faz com que a ele sejam atribm'das as íunções de estabelecer ordem e realizar o controle social. É a família que se queixa da falta de ordem e de controle. Busca, na instituição estatal, um pai que lhe proporcione o que falta. E os funcionários públicos, como esta assistente social encarregada do setor de “promoção” social, sentem-se na obrigação de fazer alguma coisa. Enfrentam a angústia de ser engrenagem do aparelho de estado e não saber o que fazer diante de um problema de complexidade assustadora para o qual não receberam qualquer preparo. Cobrados pelos outros e por si mesmos, sofrem.

“A gente sofreu um monte. Depois, com o tempo, foi á escola, conversou com

os professores. Tem um colégio grande... o colégio estadual, e então... ele entrava

no banheiro das meninas. O pessoal enticava. Então aí a gente fez um trabalho, foi

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na escola, conversou com os alunos, conversou com as professoras, pediu para não

enticar, para respeitar, e tal. Nas comunidades, nos grupos de mães, a gente ia,

falava da questão. Fomos aos bares também, pedimos para o pessoal respeitar e aí

a gente começou a fazer um trabalho”. “Não oferece álcool, respeitar como pessoa.

E daí o pessoal foi indo, foi se acomodando

” (Encarregada da Promoção Social).

A palavra trabalho, em português, não só traduz discussões, deliberações, atividade, serviço, empreendimento, mas está no dicionário ligado à idéia de esforço, fadiga, aflição (Bueno, 1992:1135). Freud emprega, em alemão, os verbos durcharbeiten e bearbeiten habitualmente traduzidos por elaborar, trabalhar ou perlaborar. Em alemão a designação tem a ver com um antigo verbo germânico cujo sentido era “ser criança órfa obrigada a pesada atividade física”, que evoluiu aos nossos dias chegando à designação de “atividade dirigida e útil” e “atividade profissional” (Hanns, 1996:190-199). Entendemos o “trabalho” desenvolvido pela assistente social entrevistada como atividade profissional. Nasce de um sofiimento, evolui com esforço, vencendo resistências. Tem características de atividade pedagógica sobre a comunidade. Faz, para a sua protagonista, um certo papel de elaboração. Sobre os outros, exerce um papel de persuasão. Sua meta ideal, porém, é o refinamento de processos relacionais e psíquicos dentro da comunidade, tarefa talvez enganosa e muito grande para imia prefeitura.

A bebida alcoólica é nociva ao psicótico. A dose moderada, que inebria e alegra, desfaz barreiras e libera de censuras. Ao ingênuo oferece-se bebida, como se fosse um igual. Logo passa a ser engraçado. E passam a acontecer chacotas. O bar é um ambiente de homens, onde há liberalidade para falarem não só de assimtos sérios, mas para soltarem-se nas conversas descompromissadas e no fantasiar transgressões possíveis.

A auxiliar de enfermagem relata um episódio de intervenção feita por ela, dentro de um bar, em que se pode ver a postura feminina, contrária ao mundo da bebida, e a evocação do médico com quem o paciente tem boa relação, como autoridade.

“Ah, o Manso, eu já peguei ele tomando cerveja no bar. Alguém me avisou.

Eu estava no posto e uma moça falou: -Olha, o Manso estava tomando cerveja no

bar e quando ele toma cerveja, não dá certo com os remédios, não é?’. Aí eu fui lá e

entrei no bar e disse: ‘Manso, tu estás tomando cerveja?’ ‘-Ah, é só uma!’, ele disse.

Eu disse: ‘-Tu sabes que não podes, não é, Manso? Eu vou conversar com o doutor,

eu vou falar para ele que tu estás tomando cerveja!’ ‘-Não, eu não estou tomando,

eu já estou terminando!’ Aí soltou a cerveja, saiu e foi embora. Eu não sei se ele

parou de tomar por causa de mim ou se ele ficou com medo de eu falar para o

doutor. Só sei que ele parou de tomar cerveja e saiu. Naquele bar quem atendia era

uma mulher. Só tinha eu, ele, a mulher e outra amiga. Quer dizer que se ele

resolvesse, ali, dar uma na cara, ninguém defenderia. Na hora eu não pensei, não

é? Poderia ter se voltado contra mim. [...] É, ele já me respeita mais. Porque ele

apronta bastante lá fora, e aqui dentro, com a gente, ele não apronta”

(Avixiliar de Enfermagem).

Os ingredientes da sociabilidade dos bares de pequenas cidades, redutos de homens, são o álcool, o cigarro, o tira-gosto, a gesticulação, as conversas animadas e as discussões sobre trabalho, política, sexo e esportes. Trata-se de um lugar apropriado para se exibir a masculinidade onde, entre amigos, observa Driessen (1993: 243-247), ao estudar as regiões mediterrâneas, são comuns brincadeiras em forma de um “medo obsessivo de representar o papel passivo num encontro homossexual, de ser convertido simbolicamente em uma mulher”. Aquele etnólogo é levado a pensar que no mundo latino a masculinidade é, por definição, competitiva. É ganha ou perdida nos corüfrontos com outras pessoas. Daí as comparações, desafios, defesas e ofensas sobre a honra. Na coreografia da sociabilidade masculina, gestos icônicos próprios de bar são repetidos até a previsibilidade, de forma controlada e formalizada pelo grupo.

O louco, sem namorada, solteiro, morando com a mãe, já passado da idade de casar, sem emprego, improdutivo, é o oposto dos homens normais. Se está no mundo sexual ao inverso, mas na roda de bebida dos homens, não será, certamente, uma criança inocente, assexuada. Desvirilizado, filhinho da mamãe, sem mulher, deverá ser afeminado: aquele que será chamado de ‘Veado”. Apesar de ser animal delicado, veloz e tímido, tem chifres, que eventualmente podem agredir. Enquanto não chifra, é considerado “engraçado”, divertido, e serve de chacota.

“Se você chama ele de não sei o que, de maricas e tal, ele pega e desce as

calças: é uma forma de agredir!”

(Encarregada da Promoção Social).

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0 gesto surpreendente, ao romper com o decoro consensual, constrange os outros a enfrentar a nudez. Ser obrigado a apresentar-se nu “fora penalidade imposta aos violadores de quintas, granjas” e hortas no Portugal dos séculos XIII a XV (Cascudo, 1987: 39). Aqui a punição vem às avessas, em que o nudista espelha a punição do crime dos outros.

A chocante investida exibicionista, além de ser uma agressão é uma evolução sexuaHzada da relação montada com o grupo. Chamado de maricas'*^, mostra as partes viris. O status de louco permite-lhe fazer a demonstração fálica que os outros não fazem e encontra aí um poder. Mostra que é homem, mas através de um ato sexual, que mulheres não fazem, voltado aos homens. No mundo homo do bar, o maricas, tomado por complemento passivo do “super-macho sodomita” (Xanthakou, 1989:126), mostra que pode encarnar também tal super- macho. Perde a delicadeza e a timidez para mostrar músculos, tamanho físico e capacidade de violência. É dito então em crise, em surto. Ativo, agressivo, sem-vergonha, é o homem que pode estuprar. Os mesmos que se divertiam com ele, fazendo gracejos, “tirando sarro”, agora o temem.

Uma pessoa assim, intriga pela sua natureza ambígua. Vai do mundo dos adultos que bebem no bar ao das crianças que freqüentam o colégio. Perde a sua brandura de criança que quer brincar para mostrar imia sexualidade descontrolada. Toca nos fantasmas humanos, nas características assustadoras e perversas que o inconsciente abriga. Há um valor de transgressão no que ele normalmente faz, como entrar no banheiro errado.

“Ele entra na missa: é uma forma também de chamar atenção. Entra na

missa, o pessoal está lá, todo mundo rezando. Coitado, todo desajeitado, com blusa

lá em cima, com a calça quase caída, aparecendo a zorba e tal”

(Encarregada da Promoção Social).