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estrada, para cima, para baixo, andando entre os carros Entra no posto de gasolina, eles mandam ele embora ” (Médico).

Neste pequeno cosmos urbano, os psicótico são figuras vistas transitando, circulando pelas ruas, aqui e ali. Transmitem a sensação de imi zigue-zague nômade e incerto.

“ Eu conhecia o Manso, nas estradas...” . “...Às seis horas da manhã...”. “Via

ele cantando. Cantava alto”

(Auxiliar de Enfermagem).

Não é só o corpo que perambula. É também a voz, que penetra nos espaços não convencionais. É o canto alto misturando-se ao escuro e à geada do fiio alvorecer do Brasil meridional, enquanto a maioria das pessoas está sob os cobertores.

Cometas da cidadezinha, têm uma órbita não redonda, maior ou menor, pelas estradinhas da zona rural e pelas rodovias do município.

O errante, aqui, não é um mendigo: é um louco. Não erra só na história, por ser sem- terra e sem-teto, por ser um problema social. Erra na geografia, porque erra nas estradas. Erra na psicologia, porque as estradas são as da mente. Seu errar não é do erro como engano, desacerto, falsidade, incorreção. É o de desviar, afastar-se do caminho, vaguear, andar ao acaso, boiar sem direção, caminhar sem destino. Em língua alemã se diz irre para o louco.

Vagar, estar errante é coisa de louco. Há uma raiz indo-européia comum“*^ para o irre, o louco em alemão, e os nossos dois verbos errar, em português.

Estes errantes não se enquadram no anonimato de alguém desconhecido, e nem se conílmdem com a previsibilidade dos conhecidos. Se a cidade é uma m ágnina social montada com peças devidamente engrenadas e conhecidas, os loucos errantes são peças sobressalentes, presas à máquina de forma móvel, sem que se saiba para que servem. Estão no cenário da cidade pequena como algo que circula. Mas não se pode dizer deles: - “É o senhor Fulano, indo a tal lugar, para fazer tal coisa”, ou “-É um desconhecido que deve estar indo a algiim lugar para fazer alguma coisa ignorada por nós”. O louco não vai a lugar algum e não tem nada relevante a fazer. Ele apenas vai, vagueia, perambula, está por aí, passa como um cometa e volta dali a pouco ou dali a muito. Sem vínculo laborativo, vagabundeia. Cismado, está absorto. Errático está vagando. No seu cismar errático, trata a cidade como um vazio. Seus olhos passam por ela sem vê-la, a não ser, “ da sua maneira” própria. Observando-o, os cidadãos dão-se conta de que a sua cidade também pode ser vista como uma máquina sem jSnalidade, sem ordem e sem progresso. O sentido de sua existência, que parecia tão óbvio, é contestado por um indizível vazio. Basta tocar no sentimento do cidadão que o errante correrá o risco de ser visto como errado. Errado: algo perto do desviado, transviado, veado, transexuado.

0 errante passa pelo hospital psiquiátrico como passa por outros lugares, pela umbanda, pela igreja pentecostal. São as instituições que se contrapõem à rua. Elas são os lugares de tratamento, de cuidado, que funcionam temporariamente e não têm sucesso para prolongar seus efeitos na rua:

“Então tem aqueles pacientes que tu acabas lembrando claramente: sai do

hospital, está bem, está nutrido, gordinho. Fica, consegue ficar uns tempos na rua,

quando volta para o hospital está magro, sujo, descuidado pela familia”

(Médico).

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Esta rua capaz de abrigar o paciente que está bem e está nutrido vislumbra-se como espaço de liberdade, lugar a ser usufruído por aquele que saiu do hospital fechado: realização simultânea da utopia antimanicomial e do ideal médico. Situação transitória, cujo encurtamento e pequenez no tempo são atribuídos parcialmente ao descuido da famíHa. E logo voltará ao técnico a sensação de impotência diante do problema. Se o psicótico está passando mal sujo e magro, a sua rua não é mais local de Hberdade. Ela vira palco de sofiimento psíquico:

“A gente via um deles na rua, mal, dava pena, a gerite [ficava] a ponto de não

saber o que fazer”

(Auxiliar de Enfermagem).

O errante, em seu destúio incerto, ameaça achegar-se à casa do não-errante, misturar sua errância com a famíHa e a propriedade do que é estabelecido, do que é fixo:

“Dizem que ele conrieça ir à casa da gente, depois não para mais”. “...Porque

ele é muito curioso, ele pergunta onde é que eu moro, quantos filhos, como é o

nome do meu marido, mas eu... no começo eu não dizia onde é que eu morava. Eu

dizia o lugar errado porque dizem que ele batia na casa da gente. Mas um dia nós

fomos de kombi e ele estava junto, foram levar ele ao dentista e eu fui de carona. E

ele viu onde é que eu moro. Mas ele não foi lá em casa, não[...] O Gico também,

quando ele entra em crise...”

(Agente de Serviços Gerais).

Já na descrição da montagem inicial do projeto do CAPS o psicólogo destaca o doente louco que circula pelas vias:

“Até então não se sabia quem era doente mental a não ser os mais visíveis,

como aquele de quem eu te falei hoje, que anda perambulando pelo município, que

assusta todo o mundo”

(Psicólogo).

Este perambular, pela geografia da unidade poHtica básica, reaparece ao se falar da instituição de um tratamento púbhco:

“...um louco desses, aqui do município, que fica aí vagando... que merece um

tratamento humanitário...”

(Psicólogo).

Instituição e Absorção

É na instituição política, na Secretaria Municipal da Saúde que se faz sentir forte a decisão política de ir às ruas em busca dos vagueantes, aprender a manejá-los e socializá-los em outros moldes, outras normas;

“Às vezes eu acho que poderia ser feito um pouco mais. Não sei... Fazer