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quando não existem mais condições de suportar um surto aqui no serviço”

(Psicólogo). Eis aí a opção pelo estilo de trabalho do CAPS de Cocai do Sul.

Ao mundo do consensual, agressão e sexo são componentes da crise de loucura. O surto afeta a agressividade e a sexualidade de forma mais chocante do que o esbanjar dinheiro, a errância e a falta de higiene.

Na maioria da vezes, os relatos da equipe dão conta da agressividade, do risco de o paciente ferir a si e a terceiros. Profissionais de nível superior que trabalham no CAPS não falam de questões da sexualidade dos pacientes com espanto, horror ou demonstração de curiosidade. O contrário ocorre entre pessoas que não participam diretamente do cotidiano do CAPS, como os fiincionários da Secretaria Municipal de Saúde, femiliares de pacientes e populares em geral.

Muitas vezes agressividade e sexualidade aparecem entrelaçadas.

A única agressão que sofrerá de um paciente fora simples, e hoje causa até risos à Auxiliar de Enfermagem;

“[Ele me] deu uma cuspida”. “Deu uma cuspida, assim, daquelas bem... Ele

cismou que eu chamei ele de Mansa, né. Ele achou que eu estava mexendo com a

masculinidade dele. E na verdade eu não chamei, nem falei nada disso”

(Auxiliar de Enfermagem).

Cismar é verbo popular e comum no Sul do Brasü: é devaneio, receio, desconfiança, dissidência de opiniões, ficar absorto em pensamentos (Bueno, 1992:264). Define pensamentos obsessivos ou teimosos, resistentes à argumentação em contrário, como os que ocorrem nos delírios paranóicos. O cisma divide. O cismarento afasta-se do pensamento dos outros, da interpretação compartilhada e comum. No ato de cismar, separa-se do normal. A diferença se instala. A possibilidade de continuação do raciocínio compartilhado entre duas pessoas

desaparece. Não há comunhão: há dissidência, há outra coisa colocada, que Morant (1995:46) chamou de “othemess” (em língua mglesa, substantivo abstrato denotando quahdade ou estado do que é outro).

O surto pode trazer atos declarados de escândalo público. Tão assustadores quanto os atos quahficados como “tara” ou como “sem-vergonha”. São os atos que embaralham as normas, mancham os hmites das regras de conduta sociais e coníundem papéis. Lembremos que a lei itahana anterior à de número 180, definia o louco como aquele que é “perigoso a si e aos outros e de púbhco escândalo”.

“No grupo de mães, elas me colocavam assim: - Ah, mas precisa ver o que

ele fez! Precisa ver o que faz! Ele desce as calças, como é que para isso ele não é

louco?”

(Encarregada da Promoção Social da Prefeitura).

Se o modelo médico, de doença, é complacente demais para ser aceito pela população nimia circunstância destas, o de loucura também o é: desresponsabiliza, pois nele o louco é ahenado, não sabe bem o que faz. A busca de responsabilização e de culpabilização parecem ser o conteúdo da pergunta

“como é que para isso ele não é louco?”.

Neste momento o que se coloca é o conflito entre louco (ou doente mental) e imoral (ou “sem-vergonha’).

“Ele entrava no banheiro das meninas [no colégio]”. “O pessoal enticava,

depois ele entrava em crise. Ele se veste de travesti, ele põe uma tiara. Ele levanta

a roupa, e aí as crianças enticam. E a forma de ele agredir as crianças é descer as

calças, e aí o pessoal fica bravo e tal”

(Encarregada da Ação Social da Prefeitura).

Não diferenciar o masculino do feminino, o que deve ser resguardado do que não necessita de discrição, causa não apenas um escândalo, mas um mal-estar interno indizível, a quem presencia a cena. Ou os presentes usam o artiScio do rir e zombar ou o de enticar''^ e agredir. A não-famUiaridade com o quadro sexual ambíguo, indefinido e surpreendente leva à sua marginalização. Os atos excêntricos e contestadores da moral são repudiados e reprimidos pela comunidade e por seus poderes legais.

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“A gente procura muito afastar a polícia do CAPS, porque [...] a polícia é

repressora”

(Secretária Municipal de Saúde).

“É toda uma pressão a nível de juiz aqui da comarca.

..’’(Encarregada da Ação Social da Prefeitura).

Assim, nesta representação, a loucura mantém sua feição de coisa não-familiar, marginal, assustadora, agressiva, sexualmente imprevisível, reprimível, zombável. E por estas qualidades é reconhecida.

Há, pois momentos de choque entre a concepção dos técnicos e a dos leigos. Se a noção de loucura é diferente, a de normalidade e a de o que fazer com a loucura também o serão.

“Definir o que é normal é muito difícil. Eu também fico imaginando, sabe... um

louco desses aqui do município, que fica aí vagando, merece um tratamento

humanitário. E quando não tem é visto como louco, como dissidente, como o que

saiu fora das normas... é taxado de tudo quanto é tipo de coisas, de tarado, de

bêbado, que ataca mulheres, que não sei o quê”

(Psicólogo).

Como nos tempos de Pinei, o discurso humanista é motor da atividade psiquiátrica. Alguém tão sozinho, abandonado e desprezado também merece tratamento humanitário. Na falta do tratamento falta também compreensão e aceitação. Revoltar-se contra estas faltas pode, talvez, ser a normalidade;

“E quando esse cara se rebela contra tudo isso, de surto, entre aspas aí, ele é

louco, não é? E aí eu fico me perguntando o que é loucura nesse entremeio todo. É

isso que é loucura... ou é isso que é normalidade?”

(Psicólogo).

No cotidiano do serviço do CAPS, os atos rebeldes e violentos, cometidos durante surtos, são sentidos pelos técnicos como refratários à empatia e à solidariedade. São administrados na ordem médica, como demanda de contenção, apesar das; constantes tentativas de dilatar a tolerância ao máximo. Porém, através deste exercício racional, a posteriori, embasado no humanismo, o profissional consegue a transmutação empática: consegue

imaginar-se no lugar do paciente em crise e colocar-se como seu porta-voz. O idealismo humanista é a pedra filosofal que faz desaparecerem as qualidades elementais específicas da loucura. De sua perspectiva, pode-se ver as semelhanças entre o louco e o não louco, de modo que qualquer um pode ficar louco e qualquer louco pode ser são. Um pode ocupar o lugar do outro. Este contínuo que se estabelece entre sanidade e loucura dissolve, temporariamente, limites entre o que é normal e o que é anormal. Se forças provindas de um aía humanista, nos moldes do Iluminismo, derrubam a norma, esta norma fica disponível para ser entendida como convenção social e poHtica. Daí a facilidade com que se pode etiquetá-la como “desumana”, “opressora”, “fascista”, “totalitária”.

“[Na reunião de mães] eu disse assim: - Olha, se fosse comigo, eu faria

exatamente o que ele faz, porque é a única forma que ele tem de agredi-lo. Ele sabe

que isso irrita as pessoas, ele sabe que não vai partir para cima, de socos. Agora, se

você chama ele de maricas, de não sei o que, e tal, o que é que ele faz? Ele pega e

desce as calças que é uma forma de agredir. Qual é a forma que eu tenho de

agredir?

É

essa, a que irrita mais as pessoas”

(Encarregada da Promoção Social da Prefeitura).

Neste caso o “surto” é visto como rebelião às agressões, aos sitiamentos da sociedade sobre seu inimigo quase indefeso. É arrancada, impulso e investida para fora do cerco. A noção de surto, entendida a partir do dicionário, está conforme para com a representação.

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Vínculos e E rrância

Fora do surto, os psicóticos têm uma ligação peculiar com o CAPS e com a comunidade. Sua adesão ao tratamento contrasta com a dos neuróticos, que vêm voluntariamente e buscam no serviço solução para seus problemas. O vínculo do psicótico crônico, fora do surto, com o serviço, foi descrito assim, pela assistente social:

“Eles vêm aqui, mas da maneira deles. Vem de manhã, tomam um cafezinho,

fumam um cigarrinho ali na frente, contam umas histórias e...- ‘Estou indo! Daqui a

pouco eu volto aí’...Daqui a pouco voltam”. “Na verdade eles não ficam trabalhando

como os outros. Eles vêm da maneira deles”. “Sempre perguntando se tem o que