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3 Os seus Cultos

3.2 O início do Cristianismo

3.3.4 Acusações e Perseguições

Ambos os cultos foram alvo de intolerância religiosa por parte do poder governamental. Essa dificuldade de aceitação devia-se, principalmente, ao choque ideológico com os fundamentos da sociedade romana. Ou seja, tanto os mistérios de Dioniso como o cristianismo foram encarados, em certo momento da sua existência, como perturbadores da ordem da sociedade em que estavam inseridos.

Os mitos de Dioniso são ricos nestes acontecimentos, sendo que o mais famoso é relatado nas Bacantes. A intolerância de Penteu, perante a vivência dos novos rituais em Tebas, foi o catalisador de toda a tragédia, que resultou na desgraça do monarca e consequente alteração do poder político da cidade em questão. Eurípides relata um episódio em que uma nova seita religiosa conseguiu opor-se ao sistema governamental

1089 Vide Joachim Jeremias, The Eucharistic Words of Jesus, London, SCM Press, 1966, p. 100 apud

Courtney J. P. Friesen, “Dionysus as Jesus: The Incongruity of a Love Feast in Achilles Tatius’s Leucippe

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de uma cidade, saindo vencedora. Muito provavelmente, esta noção imperou na consciência dos cidadãos romanos e dos seus governantes, em 186 a.C. Os acontecimentos deste ano marcaram pesadamente o dionisismo mistérico, atribuindo-lhe uma fama de tal modo negativa que a vemos a ser replicada quase literalmente noutro culto intolerado, mais tardio: o cristianismo.

O processo das bacanais originou uma perseguição religiosa de uma dimensão até então sem precedentes, em Roma. Segundo Tito Lívio, após o decreto do

senatusconsultum, instalou-se o caos na Península Itálica, sendo muitas pessoas

capturadas quando procuravam fugir. Vários suicidaram-se com receio de serem aprisionadas, estimando-se que a conspiração tenha abrangido mais de sete mil homens e mulheres1090. A violência e dureza da acção das forças militares explica o clima de terror que se viveu. A arqueologia revela que, exactamente nesta época, vários templos dedicados a Dioniso foram violentamente destruídos1091, numa purga que durou cerca de cinco anos. Cícero, meio século antes do relato de Lívio, é uma fonte que atesta a influência da legislação contra as bacanais. O orador romano, debruçando-se sobre as leis do seu povo, afirma que nenhuma mulher podia realizar sacrifícios nocturnos, e que ninguém podia ser iniciado em qualquer culto mistérico, excepto nos de Ceres1092.

Sensivelmente 260 anos depois do escândalo das bacanais, no dia 19 de Julho do ano 64 d.C., um grande incêndio deflagrou em Roma, consumindo grande parte da cidade. Nero, imperador nessa época, responsabilizou um grupo religioso que, segundo Tácito, era odiado pelas suas abominações: os cristãos1093. Frend salienta que as acções que se seguiram foram bastante semelhantes ao que tinha acontecido no processo das bacanais: um enorme número de pessoas foi aprisionado, e os que confessaram serem cristãos foram condenados à morte, provavelmente no anfiteatro de Nero, no espaço que é hoje o Vaticano1094. Suetónio, contemporâneo de Tácito, não estabelece a relação entre o

incêndio de Roma e os cristãos (pelo contrário, o historiador culpabilizava o imperador desta catástrofe1095), contudo refere que, no período de Nero, o imperador teve que punir

1090 Vide Liv. 39.8-19. 1091 Vide Riedl op. cit. p. 117. 1092 Vide Cic. Leg. 2.9.21; 2.15.37. 1093 Vide Tac. Ann., 15.44.3

1094 Vide W. H. G. Frend, “Persecutions: genesis and legacy”, Margaret M. Mitchell, Frances M. Youn

(eds.) The Cambridge History of Christianity, Vol. 1, Cambridge, Cambridge University Press, 2006, pp. 503-4.

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os “cristãos, classe de homens dados a novas e perigosas superstições”1096. Até ao final

do século, podemos presumir que a fama que foi imposta aos cristãos foi geradora de problemas para eles, contudo, não temos noção de intervenção estatal nesta matéria até ao final do período de Domiciano1097. Tertuliano considerou o filho de Vespasiano como

o grande perseguidor de cristãos depois de Nero, contudo não temos outras fontes que comprovem o relato do apologista1098. Temos conhecimento, no período de Domiciano,

de um processo levantado contra Flávio Clemente e Flávia Domitila, primo e sobrinha do imperador, bastante semelhante aos acontecimentos em torno de Pomónio Grecina, durante o principado de Nero1099. Ambos terão sido acusados de terem adoptado o cristianismo, ainda que certos autores pensem que ambos se tinham tornado prosélitos, sendo que Flávio foi executado e Domitilia foi banida para a ilha de Pandatária1100. Contudo, isto não significa que o imperador tivesse qualquer intenção de extinguir o judaísmo enquanto religião. Antes pelo contrário, no seu período foi instituído um imposto sobre os judeus, o fiscus Iudaicus, que seria, sem dúvida, útil para os confres do império1101.

Efectivamente, os cristãos são referidos novamente, nas fontes não cristãs, na correspondência entre Plínio e Trajano. O primeiro, ao desempenhar o papel de governador da Bitínia, teve a necessidade de lidar com cristãos. Sendo a morte a punição para quem se declarasse cristão, Plínio não teve dúvidas da sentença que devia aplicar após ter questionado indivíduos, por três vezes, se eram cristãos, tendo aqueles respondido que sim1102. Na sua carta a Trajano, o governador informa que recebeu um documento (libellus) que denunciava vários cristãos1103. Procurando discernir a verdade da falácia, Plínio obrigava os acusados, que negavam serem seguidores de Jesus, a recitar uma oração aos deuses, fazer uma libação com vinho e maldizerem Cristo (maledicerent

christo)1104. Algumas das pessoas interrogadas por Plínio afirmaram que tinham deixado de ser cristãs havia vários anos, e explicaram-lhe partes da liturgia e da eucaristia,

1096 Vide Suet. Nero 16.2.

1097 Vide W. H. G. Frend op. cit. p. 505. 1098 Vide Idem, ibidem p. 506; Tert. Apol. 5.4-5.

1099 Vide Nuno Simões Rodrigues, Iudaei in Vrbe… p. 166.

1100 Vide Idem, ibidem; Suet. Dom. 15.1.

1101 Vide Nuno Simões Rodrigues, Iudaei in Vrbe… p. 868

1102 Vide Plin. Ep. 96. 1103 Vide Plin. Ep. 96. 1104 Vide Plin. Ep. 96.

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afastando o espectro de acusações de canibalismo e libertinagem sexual1105. Depois de recolher informação de duas serventes (ministrae), concluiu que o cristianismo não era nada mais do que uma superstição extravagante, sendo que devia existir espaço para arrependimento, não decorrendo directamente à execução.

Tanto Fiesen como Ridle sugerem que esta carta de Plínio terá sido moldada pela descrição que Tito Lívio faz do processo de 186 a.C.1106. É sabido que o governador da

Bitínia era admirador da obra do historiador latino1107 e a sua descrição das acções dos

cristãos segue uma linha muito semelhante à de Lívio: reuniam-se à noite, cantavam hinos e firmavam juramentos, partilhando uma refeição comum. Além disso, ambos os cultos contrariavam a prática social e religiosa tradicional, pelo facto de os participantes pertencerem a uma mescla de estatutos sociais, idade, sexo e localidades de proveniência1108. Além das semelhanças verbais, Friesen destaca ainda o método de investigação utilizado por Plínio: o governador procurou o conselho do imperador do mesmo modo que Póstumo se aconselhou no senado; a sua questão sobre se os cristãos deviam ser punidos simplesmente pelo nome que ostentavam (nomen ipsum) ou se apenas os que tivessem cometido alguma ofensa deveriam ser castigados (flagitia), é semelhante à descrição que Tito Lívio faz daqueles que tinham sido apenas iniciados (initiati erant) e daqueles que, efectivamente, tinham cometido crimes1109. Plínio argumenta ainda que certos cristãos, que aparentavam estar loucos, deviam ser enviados para Roma, devido ao facto de serem cidadãos romanos (fuerunt alii similis amentiae). Segundo Pailler, esta descrição que o governador da Bitinia faz aparenta ser “bien ‘bachique”1110. Plínio é a

prova de que pelo menos um observador nos primórdios do cristianismo relacionava o comportamento religioso cristão com os mistérios de Dioniso1111. A obra de Minúcio

Félix, no século III d.C., mostra o mesmo. Assim sendo, podemos assumir que o caso das bacanais de 186 a.C., conforme a sua descrição por Tito Lívio, serviu como modelo para as acusações populares contra os cristãos, e simultaneamente como precedente para as medidas legais tomadas contra os seguidores do culto de Jesus1112.

1105 Vide Plin. Ep. 96.

1106 Vide Riedl op. cit. p.114; Courtney Jade Friesen, Reading Dionysus… p. 211.

1107 Vide Courtney Jade Friesen, Reading Dionysus… p. 211.

1108 Vide Idem, ibidem. 1109 Vide Idem, ibidem.

1110 Vide Pailler, Bacchanalia p. 63 apud Courtney Jade Friesen, Reading Dionysus… p. 211.

1111 Vide Idem, ibidem. 1112 Vide Riedl op. cit. p. 114.

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[…] why did pagans of the second and third century see a parallel between Christians and Bacchants? Obviously they did so because they observed a group which, from their perspective, behaved apolitically. […] both groups valued individual fulfillment more than the public welfare. As Christian intellectual leaders such as Tertullian clearly expressed, there was nothing more foreign to them than public affairs (nec ulla magis res aliena quam publica) (Apologeticum 38). It was exactly this apolitical behavior that reminded literate pagans of the Bacchanalia […] . Consequently, they concluded that what the Christians were doing in their obscure and nocturnal meetings must be more or less the same as what the Bacchants did. Livy’s description was well- known and the missing details could be added by imagination.1113

Pela segunda vez na sua história, o governo romano interferiu de modo concreto e violento numa questão religiosa, procurando controlar os cultos que se opunham aos valores fundamentais da sociedade romana. Os acontecimentos em torno destas comunidades, afastadas por cerca de dois séculos, são mais uma evidência da indistição entre religião e Estado, caracteristica tão própria das sociedades do Mundo Antigo.