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3 Os seus Cultos

3.1 Mistérios de Dioniso

3.1.8 Dionisismo vs Orfismo

Orphism is the theology of the mysteries810

Ao longo deste capítulo, temo-nos debruçado sobre os aspectos do culto mistérico a Dioniso ao longo dos tempos. Contudo, temo-lo feito tentando salientar os aspectos que pertenceriam a um dionisismo puro, de tradição arcaica, relativamente a outros cultos, como o orfismo. Esta tarefa tem um nível de dificuldade acrescido devido a não existir uma teologia comum a todas as confrarias báquicas. Linforth, na frase citada, assume que o orfismo é a teologia que renovou os mistérios antigos. Esta é a noção que impera no academismo de hoje. Ao longo da Dissertação, abordamos aspectos que tanto podem pertencer ao dionisismo, ao orfismo, ou mesmo a ambos, evidenciando as diferenças, sem contudo termos especial preocupação em dividir salomonicamente as características de ambos. O nosso foco é Dioniso, e o deus vive nos dois espaços. Contudo, consideramos proveitoso explorar sucintamente as diferenças destes dois universos.

Miguel Herrero de Jáuregui dá, de modo resumido, a visão que temos do orfismo desde o início do seu estudo no século XIX:

808 Vide Fritz Graf, Sarah Iles Johnston, Ritual Texts for the Afterlife… p. 162. 809 Vide Idem, ibidem p. 163.

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In its nineteen-century reconstruction, Orphism emerged as a religious movement born in the sixth century BC under the authority of the mythical singer Orpheus. I tis supposed to have arisen as a reform of the traditional cult of Dionysus, whose orgiastic and ecstatic aspects would have been redefined by a minority group in mystical and eschatological terms. This trend is held to introduce for the first time in Greece the idea that the soul is enclosed in the body as punishment for a primordial fault – specifically, the crime committed by the Titans, the ancestors of mortals, when they tore to pieces and devoured Dionysus, son of the supreme god Zeus and Persephone. As a result, the soul is condemned to suffer a cycle of reincarnations from body into body, as well as torments in the Afterlife, until it expiates its ancient fault and can thereby enjoy the happy everlasting life to which its immortal nature aspires. Salvation is achieved by obtaining Persephone’s forgiveness through participation in the Bacchic rites (teletai) and the observance of conduct that assures purification: an Orphic life (orphikos bios) demands – in addition to some imprecise references to justice – observance of a series of dietetic and clothing taboos, including, most importantly, a strict vegetarianism derived from the belief in reincarnation. The followers of this doctrine, transmitted in poems attributed to Orpheus, who practice the rites supposedly

founded by him, and who observe an Orphic lifestyle, might thus be termed “Orphics.”811

Esta perspectiva mantém-se nos dias de hoje como a imagem clássica do orfismo812. A falta de fontes que comprovassem a existência de um grupo religioso denominado de orphikoi era o principal argumento dos membros da comunidade científica que punham em causa a existência de tal segmento religioso. A descoberta do papiro de Deverni, em 1962, e a leitura de “orphikoi” numa das placas de osso de Ólbia revelam que a existência de thiasoi órficos eram uma realidade já no século V a.C.813

Como tivemos oportunidade de observar, já Heródoto relacionava os rituais dionisíacos com os órficos. Mas podemos observar ligações ao orfismo noutros autores antigos. No Hipólito de Eurípides, Teseu ataca o filho, fazendo troça da sua devoção aos rituais de Orfeu, que o obrigavam a uma dieta vegetariana814. Em Reso, as Musas referem-

se aos mistérios nocturnos de Orfeu, iluminados por uma procissão de tochas815. Nas Rãs, Aristófanes, através de Ésquilo, afirma que Orfeu ensinou rituais que visavam evitar a morte816. Platão fala do “monte de livros de Museu e Orfeu”817, afirmando que os seguidores destes cultos conseguiam convencer cidades de que era possível a libertação

811 Vide Idem, ibidem p. 14. 812 Vide Idem, ibidem p. 15. 813 Vide Idem, ibidem p. 16. 814 Vide E. Hipp. 953-954. 815 Vide E. Rh. 943 816 Vide Ari. Ra. 1032. 817 Vide Pla. Rep. 365a

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e a purificação, quer em vida quer depois da morte, sendo este acto denominado de iniciação.

Autores mais tardios desenvolvem esta ligação de modo a entregar um papel mais preponderante a Orfeu. Diodoro conta que Dioniso, depois de ter sido ajudado por Cárope na luta contra Licurgo, investiu o seu companheiro como rei da Trácia, iniciando-o nos seus mistérios. O novo monarca passou este conhecimento ao seu filho, Eagro, que por sua vez os passou a Orfeu818. Cícero, na descrição que faz dos vários Dionisos, afirma

que o quarto, nascido de Júpiter e da Lua, era o deus dos rituais órficos, os sacra

Orphica819.

Segundo Diodoro, Orfeu fez muitas alterações nos mistérios, ao ponto de os rituais báquicos passarem a ser também conhecidos como órficos820. Podemos então concluir que, para Diodoro, os orphikai teletai não passavam de outro nome para os rituais de Dioniso821. Plutarco, no século I d.C., fala de ménades, tanto órficas como báquicas, na Macedónia de Alexandre822, não fazendo propriamente uma diferenciação. Como Ana Isabel Jiménez San Cristóbal afirma:

Lo más probable es que Plutarco las considerasse sinónimas, pues en su época los ritos mistéricos dionisíacos se habían fundido ya com los órficos y es evidente que los ritos orgiásticos referidos distan mucho de celebraciones oficiales como las Leneas o las Antesterias. En cambio, en el siglo IV a.C., época del nacimiento de Alejandro en que se sitúa el relato plutarqueo, la distinción órfico- dionisíaca era bastante más clara. El uso de ambos adjectivos demuestra que Plutarco sabía que los ritos dionisíacos de carácter orgiástico podían ser llamados órficos, pero que muy probablemente la expresión «ritos órficos» no era un nombre específico para ellos, por tener un abanico de significados más amplio.823

Estamos, portanto, numa época em que aparentemente os mistérios de Dioniso já não se separavam dos rituais órficos. Apolodoro descreve Orfeu como o inventor dos mistérios de Dioniso, tendo sido despedaçado por ménades824. Pausânias menciona que

os habitantes de Egina celebravam, anualmente, mistérios que Orfeu teria estabelecido,

818 Vide Diod. 3.65. 819 Vide Cic. N.D. 3.58. 820 Vide Diod. 3.65.

821 Vide Fritz Graff, Sarah Iles Johnston, Ritual Texts for the Afterlife… p. 50. 822 Vide Idem, ibidem p. 143; Plut, Alex. 2.7-9.

823 Vide Ana Isabel Jiménez San Cristóbal, “Orfismo y Dionisismo”, Orfeo y la tradición órfica: un reencuentro, Madrid, Akal, 2008, p. 704.

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em honra de Hécate825. Clemente de Alexandria considera Orfeu o inventor dos mistérios, relacionando-o mesmo com Elêusis e Iaco826.

Como podemos verificar, desde muito cedo que os rituais dionisíacos e órficos se cruzam constantemente. Abordando os mistérios dionisíacos que se originavam em diferentes espaços da Itália, Nilsson afirma que eles eram o resultado da combinação dos

orgia ancestrais, dos mitos comuns e do orfismo827. Os textos das lamelas douradas são

escritos em hexâmetro, sendo que já desde pelo menos o século V a.C., que se considera Orfeu o inventor deste estilo828. Contudo, como tivemos hipótese de verificar, a lamela de Hipónio veio elucidar o facto de o dionisismo puro poder coabitar com o orfismo.

A tradição atribui a Orfeu várias obras, nas quais Dioniso desempenha um papel principal, sendo tradicionalmente atribuídos ao poeta a composição de hiero logoi e a transmissão dos mistérios829. São vários os mitos que relacionam Orfeu com Dioniso. Nas

Bassárides de Ésquilo, uma tragédia desaparecida, o deus provocava a morte do poeta

devido a este se ter tornado devoto do deus do sol830. Outro caso é o de Higinio, que conta que Baco entregou o corpo de Orfeu às bacantes831. Desde cedo que existe uma preocupação em explicar a relação entre Orfeu e os rituais báquicos. No século IV a.C., Paléfato afirmava que Orfeu tinha conseguido acalmar a loucura das ménades, fazendo- as abandonar os montes. Este é um mito etiológico que fundamenta o orfismo como uma reinterpretação do culto arcaico de Dioniso, dotando-o de uma menor agressividade832.

As diferenças mais significativas entre orfismo e dionisismo seriam de base cultual. Os rituais órficos parecem ter sido uma reinterpretação dos teletai dionisíacos, munindo-os de um conhecimento escatológico, centrado nas questões envolventes da transmigração da alma833. O orfismo seria efectivamente uma religião do livro834. São

várias as referências a este aspecto, tal como as de Platão e Eurípides que já aqui referimos, contudo, os rituais dionisíacos tradicionais não deveriam partilhar uma afinidade semelhante com a palavra escrita. Destaca-se apenas o decreto de Ptolemeu IV

825 Vide Paus. 2.30.2.

826 Vide Clem. Alex. Protr 2.17.2.

827 Vide Martin P. Nilsson, “The Bacchic Mysteries… p. 194.

828 Vide Fritz Graff, Sarah Iles Johnston, Ritual Texts for the Afterlife… p. 137.

829 Vide Ana Isabel Jiménez San Cristóbal, “Orfismo y Dionisismo”… p. 698.

830 Vide Idem, ibidem p. 699; Eratosth. Cat. 24. 831 Vide Idem, ibidem; Hyg. Astr. 2.7.

832 Vide Idem, ibidem p. 710.

833 Vide Idem, ibidem pp. 711-712

834 Vide Ana Isabel Jiménez San Cristóbal, “Los Libros del Ritual Orfico”, Estudios Clássicos, 121, 2002,

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Filopator, no qual o rei exige que os sacerdotes dionisíacos lhe entreguem os textos sagrados. O mais provável é esses textos conterem o mito do desmembramento de Dioniso, que seria o ponto central dos rituais dionisíacos. Os textos órficos seriam bastante mais elaborados, como é o caso do que consta do Papiro de Gurob.

Nos rituais báquicos o êxtase seria atingido com base em sacrifícios cruentos, ao contrário do que acontecia no orfismo. Apesar de o papiro de Gurob mencionar sacrifícios cruentos e consumo de carne, tal seria apenas aplicado durante o processo de iniciação835,

podendo simplesmente significar simbolicamente o despedaçamento do deus e a ingestão da sua carne por parte dos titãs836. O orfismo obrigaria a uma filosofia de vida mais dura, assente na purificação, ascetismo, abstinência e vegetarianismo do iniciado. Esta necessidade explicar-se-ia pela crença na dualidade corpo/alma e na transmigração da alma837. Pelo contrário, o dionisismo não exigia um tipo de vida específico aos seus fiéis. Directamente oposta ao vegetarianismo órfico é a expressão de Eurípides nas Bacantes, quando o poeta afirma o deleite de comer carne crua838. A finalidade dos rituais báquicos seria a felicidade no Além, não existindo nenhum género de dogma que visasse ciclos de reencarnação da alma. Na questão da alimentação, devemos ressalvar que o vinho seria um ponto de contacto entre as duas formas cultuais839.

Tal como não existiam restrições alimentares para os iniciados nos rituais báquicos, também não existiam limitações referentes ao traje. No caso órfico, existia a proibição de usar vestimentas de lã, sendo que deveriam ser utilizadas roupas de cor branca840. Heródoto refere que os órfico-báquicos estavam proibidos de usar roupa de lã, contudo o mais provável é o historiador usar os dois termos como sinónimos841.

A grande dispersão de ambos os cultos revela que ambos se terão expandido de modo análogo. Apesar de o dionisismo beneficiar, em certos casos, de uma vivência cultual que assentava tanto na parte privada como em festividades públicas, o modelo do sacerdote dionisíaco seria itinerante. Já Dioniso assim se afirma nas Bacantes842. O mesmo aconteceria no orfismo, tal como observável pelo exemplo, já citado, de Platão.

835 Vide Idem, ibidem p. 121. 836 Vide Idem, ibidem p. 121. 837 Vide Idem, ibidem p. 726. 838 Vide E. Ba. 139.

839 Vide Ana Isabel Jiménez San Cristóbal, “Orfismo y Dionisismo”… p. 716.

840 Vide Idem, ibidem. 841 Vide Idem, ibidem. 842 Vide E. Ba. 465-74.

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Ao contrário dos rituais báquicos, no orfismo não haveria mulheres a desempenhar um papel de especial relevância nas confrarias, sendo possível observar conotações misóginas em certos poemas órficos843.

Concluindo, apesar de existirem diferenças de fundo entre os rituais báquicos e órficos, o facto de Dioniso ser a figura central em ambos possibilitou, em alguns casos, uma coexistência, noutros, uma evolução diferencial e ainda fenómenos sincretismo religioso. Tanto quanto pudemos apurar, o orfismo surgiu como uma teologização dos rituais báquicos, não cumprindo o mesmo efeito em todas as confrarias. Contudo, como foi possível observar, estas diferenças nem sempre seriam claras, sendo os dois cultos várias vezes confundidos. Estas são duas tradições que se revelaram distintas em vários pontos, mas que ao longo dos séculos beberam avidamente uma da outra.

Para o objetivo final desta Dissertação, esta diferenciação assume um papel secundário. Propomo-nos tratar Dioniso, englobando na análise todos os seus aspectos e diferentes universos em que se insere, incluindo, obviamente, tanto o dionisismo mais arcaico como a interpretação órfica do mesmo. Sendo que a conclusão deste estudo incidirá sobre o período tardo-imperial, as diferenças entre orfismo e dionisismo não têm uma importância relevante, visto que nessa época seria praticamente impossível distinguir os dois cultos ou expressões do culto.

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