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3 Os seus Cultos

3.2 O início do Cristianismo

3.3.1 Templo, Sexo e Sacrifício

Antes de partirmos para uma análise de cada ponto passível de ser comparado, devemos salientar diferenças de fundo que existem entre dois sistemas religiosos distintos.

A maior diferença será o meio através do qual os crentes atingem o seu momento de catarse: os seguidores de Dioniso vivem a comunhão com o deus no excesso, ao passo que muito da união entre Jesus e os cristãos se dá na frugalidade.

O culto de Dioniso é claramente vivido no excesso, no êxtase provocado pela imoderação de ingestão de vinho pelo seu cultuante. Num sentido mais público, esta comunhão é vivida na competição, atingindo o seu auge no sucesso das representações de tragédias que comocionam a multidão que assiste. O culto cristão incide exactamente na restrição, no atingir o divino através da parcimónia, no procurar viver o sofrimento de Jesus, um culto bastante mais rígido assente na necessidade de sofrer.

Existem pontos em que os dois cultos se afastam naturalmente, visto o culto dionisíaco estar inserido num sistema religioso cuja vivência usual difere à partida dos costumes da vivência cristã. Falamos de traços e conceitos tão básicos como a noção de santuário, a de carácter sexual ou a de sacrifício. Para os Gregos, o santuário não se prende a uma construção física mas refere-se sim a uma ideia de espaço sagrado, um témenos, sendo que “o culto dos Gregos é quase sempre fixado localmente: os locais de veneração foram estabelecidos pela tradição e não podem ser alterados nunca mais.”1013. Esse recinto pode incluir, ou não, um templo, esse sim a casa do deus, sendo que as celebrações não ocorrem normalmente no interior do templo, mas sim no exterior para facilidade de acesso a uma maior multidão. No seio do cristianismo, sabemos que o templo assume outra importância, não sendo necessário que sejam dedicados à única divindade professada pelo monoteísmo cristão, sendo que a vivência religiosa quotidiana ocorre no interior do templo. É curioso que certos témenoi foram posteriormente espaços em que foram construídos templos cristãos. Isto pode ter acontecido tanto pela facilidade de identificarem o local como um recinto sagrado ou simplesmente pelo facto de reconhecerem a sacralidade ancestral do espaço.

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A questão sexual é outro ponto de divergência teológica. As religiões antigas viam uma enorme importância neste aspecto ao ponto de terem divindades completamente conotadas com a imagem do falo, como Priapo, deus representado sob a forma de um falo gigante e curiosamente entendido em muitas tradições como filho de Dioniso e de Afrodite. Essa era mesmo uma figura que integrava o cortejo báquico1014. O próprio

êxtase dionisíaco possivelmente poderia compreender um momento de libertinagem sexual, obviamente provocado pela falta de restrições desencadeada pelo excesso alcoólico. No seio do culto mistérico de Dioniso encontramos a figura do falo como representante do “orgão gerador de Dioniso, ao mesmo tempo deus e mortal que vencera

a morte”1015. Sendo um elemento intimamente conotado com a sexualidade e reprodução, era principalmente associado à fertilidade e à fecundidade. Nas festividades públicas de Dioniso, o aspecto sexual estava intrinsecamente relacionado com a fertilidade telúrica, um dos pontos essenciais do quotidiano das sociedades antigas, visto ser o campo que sustém a vida.

Esta noção de sexualidade sagrada é dificilmente compreendida nos dias de hoje, visto o cristianismo a ter negado, logo à partida. Mesmo em questões sociais, o sexo é encarado de forma diferente a partir da massificação cristã. Nas sociedades gregas e romanas, podendo não ser a actividade mais bem vista aos olhos da comunidade, era certo que existia uma grande proliferação de práticas hoje entendidas como homossexuais ou de sexo livre com escravos, por exemplo, os quais, por definição, era considerados “penetráveis” pelos seus senhores1016. Este género de liberdade sexual não é aceitável aos

olhos do cristianismo, no qual a prática sexual, o verdadeiro mistério do sexo, só tem sentido se ocorrer com o objectivo de procriar. A prática sexual, apenas com a finalidade de prazer, passou a ser veementemente criticada1017, apesar de esta postura ser encontrada

já em escolas filosóficas não-cristãs, como o estoicismo. Este contraste entre os dois mundos é bem demonstrado em S. Paulo quando adverte os Coríntios quanto a práticas consideradas sexualmente imorais1018. O apóstolo refere inclusive um caso particular, no qual um homem se teria envolvido com a sua madrasta, sendo tal tolerado pela

1014 Vide Pierre Grimal op. cit. p. 395.

1015 Vide Mircea Eliade, História das Ideias e Crenças Religiosas, vol. II, tradução de Daniela de Carvalho

e Paulo Ferreira da Cunha, Porto, RÉS-Editora, [s.d.] p. 240.

1016 Vide “Sexuality”, John Roberts (ed.), The Oxford Dictionary of the Classical World, Oxford, Oxford

University Press, 2005, p.701.

1017 Vide D. Von Hildebrand, “Sex”, James A. Magner, William J. Mcdonald, e Outros (eds.), New Catholic

Encyclopedia, vol. 13, Washington, The Catholic University of America, 1967, p.148. 1018 Vide 1Cor 5,9.

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comunidade1019, parcimónia que ele obviamente censura, afirmando que alguém que cometa tamanho ultraje deve ser entregue “ao poder de Satanás”1020.

As questões associadas a práticas sexuais em Corinto prendem-se em larga medida com a longa tradição de culto a Afrodite, divindade com grande importância naquela cidade. A este propósito, Pausânias conta uma história do túmulo de uma hetaira, uma cortesã. A sepultura era de uma mulher chamada Lais, que teria sido vendida em Atenas e trazida para Corinto, destacando-se de entre as cortesãs do seu tempo como a mais bela1021. Já aqui vemos uma afinidade particular com a prostituição em Corinto, ao ponto de se destacar o túmulo de uma hetera, sendo que no século II d.C. ainda se tinha memória de uma história que teria ocorrido no século V a.C. Também Estrabão conta que no templo de Afrodite em Corinto existiam mais de mil escravos e cortesãs, tanto homens como mulheres, destacando-os como factores de grande importância para a riqueza da cidade1022. A grande afluência de marinheiros a Corinto traduzia-se num grande número de clientes das prostitutas do templo de Afrodite, ao ponto de se tornar famoso o ditado:

“Not for every men is the voyage to Corinth.” 1023

Estrabão conta também que uma hetera, após ter sido repreendida por outra mulher devido ao facto de a cortesã não trabalhar a lã, respondeu que só naquele dia tinha já tratado de três redes1024, uma metáfora para três marinheiros. Isto mostra que, no período em que S. Paulo fundou a comunidade cristã de Corinto, ainda se viviam, na cidade e de forma intensa, os costumes que eram tradição havia vários séculos. Estas seriam práticas difíceis de abandonar por parte dos novos cristãos de Corinto, cuja vivência sexual tradicional, ausente das restrições cristãs, era francamente apreciada.

Em linhas muito resumidas, o sacrifício é o acto através do qual se torna algo sagrado. O acto sacrificial foi já, em larga medida, definido nos Poemas Homéricos, sendo

1019 Vide 1Cor 5,1-5. 1020 Vide 1Cor 5,5. 1021 Vide Paus. 2.2.4-7.

1022 Vide Str. Geog. 8.6.20. Devemos fazer aqui referência a Heródoto e a descrição que ele faz dos rituais

sexuais em honra de Afrodite, na Babilónia (Hdt. 1.199.). O historiador grego, no final da sua descrição, refere que um costume semelhante é atestado em alguns locais de Chipre. Isto mostra que poderá ter existido uma importação ocidental destes rituais. Chipre é tradicionalmente uma porta de entrada de cultura oriental no ocidente, e o culto de Afrodite em Corinto muito provávelmente será herdeiro desta tradição.

1023 Vide Strab. Geog. 8.6.20. οὑ παντός ἁνδρός ἐς Κόρινθον ἔσθ ὁ πλοῦς - “A viagem a Corinto não é para

todos os homens”.

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que se manteria quase sem mudanças durante vários séculos1025. A tradição ditava que o animal mais nobre para ser sacrificado fosse o touro, sendo também a oferta mais dispendiosa. Esta importância ritual atribuída à figura taurina é semelhante a diferentes sociedades, sendo já observável em Israel:

no primeiro dia dos meses, oferecereis um holocausto em honra do SENHOR: dois touros, um carneiro, sete cordeiros de um ano, sem defeito, e três décimos de flor de farinha em oblação, amassada em azeite por cada touro; dois décimos de flor de farinha em oblação, amassada em azeite por cada carneiro e um décimo de flor de farinha em oblação amassada em azeite por cada

cordeiro: holocausto de odor agradável, oferta queimada em honra do SENHOR.1026

Esta importância do touro é também observável na estipulação das regras na celebração pascal, segundo as quais “Oferecereis como sacrifício para ser queimado em holocausto em honra do SENHOR dois touros, um carneiro e sete cordeiros de um ano, sem defeito”1027, assim como nas restantes celebrações estipuladas para os Israelitas1028.

Esta importância da figura bovina era semelhante ao que acontecia no culto de Dioniso, tal como já aqui foi referido.

Este é um ponto que o cristianismo repensa e altera na formulação da sua identidade teológica, de forma completamente original. O sacrifício deixa de ser do físico para o divino, passando a operar-se no sentido contrário, sendo Jesus o ente sacrificado. Esta acção continua a ser uma acção com um objectivo, pois é através da morte do Messias que a redenção e consequente salvação da raça humana são possíveis. A própria narração da sua morte, de acordo com os Evangelhos, tem um carácter sacrificial1029,

acontecendo faseadamente e sempre em direcção ao desfecho já anunciado pelo próprio sacrificado. É este sacrifico que é relembrado diariamente na eucaristia, em que o corpo e sangue de Cristo são consumidos em memória do sacrifício de Jesus, acto que atinge o

1025 Vide E. Des Places, “Sacrifice, II (Greco-Roman)”, James A. Magner, , William J. Mcdonald, e Outros

(eds.), New Catholic Encyclopedia, vol. 12, Washington, The Catholic University of America, 1967, p. 832.

1026 Vide Nm 28,11-14.

1027 Vide Nm 28,19.

1028 Festa do Pentecostes, Festa das Aclamações, Festa da Expiação e Festa das Tendas, respectivamente

Nm 28,26-31; Nm 29,1-6; Nm 29,7-11 e Nm 29,11-39. Destaca-se esta última, Festa das Tendas, por ser uma celebração que durava sete dias e em que eram sacrificados cerca de setenta e um touros, num conjunto de cento e noventa e nove animais.

1029 Vide B. J. Cooke, “Sacrifice, IV (in Christian Theology)”, James A. Magner, , William J. Mcdonald, e

Outros (eds.), New Catholic Encyclopedia, vol. 12, Washington, The Catholic University of America, 1967, p. 838.

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seu expoente máximo de vivência nas passagens da Via Sacra, hoje integrante do ciclo pascal1030.