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A dissertação de mestrado intitulada O caso de seis contos de Eça de Queirós recontados por Luísa Ducla Soares, de autoria de Maria Cristina Viegas Santos Calado (2009), aborda a adaptação literária como modalidade da Literatura infanto- juvenil em três vertentes: a histórica, de análise textual e por meio da investigação em campo.

A autora explora o conceito de adaptação como modalidade que busca resolver as dificuldades de um leitor infanto-juvenil em receber um texto integral, dando expressão à intencionalidade comunicativa. Após isso, Calado (2009) traça o percurso da Literatura infanto-juvenil em Portugal e observa que a preocupação com o receptor parece estar relacionada ao surgimento da adaptação que ela nomeia como gênero. Na sequência, Calado (2009) identifica os procedimentos de adaptação mais comumente utilizados, tais como substituições, transformações e resumos.

Investigando o corpus com um grupo de alunos do sétimo ano de uma escola, a autora analisa como a adaptação pode motivar e auxiliar na formação de leitores infanto-juvenis sob a perspectiva da recepção do texto.

A metodologia de pesquisa adotada é bibliográfica-documental, além de se tratar de uma pesquisa qualitativa com observação participante em que a autora realiza um estudo com uma turma de sétimo ano do Ensino Fundamental II constituída por 28 alunos que produziu diários onde foram registradas “reações de adesão (agrado/concentração)” e “de não adesão (desagrado/desconcentração)” dos indivíduos pesquisados ao propor as leituras de seu corpus. Para complementar seu trabalho, Calado (2009) produziu questionários com perguntas abertas (para avaliar dificuldades, gostos e reações) e fechadas (para testar a compreensão de leitura dos sujeitos).

A pesquisa em questão dialoga com a nossa por abordar a adaptação literária, buscando analisar a história da mesma em seu país de origem. Estamos aqui tratando da adaptação no Brasil e com um corpus diferente do selecionado pela

pesquisadora, no entanto, a metodologia utilizada por ela se aproxima da nossa, de modo que as considerações da autora lançam luz sobre nossos problemas.

Caminhando para o fechamento de seu trabalho, Calado (2009) discorre acerca das intenções das adaptações infanto-juvenis, uma vez que, para ela, as escolhas feitas pelos adultos sobre o que adaptar se justificam pelo “fato de determinados textos preencherem requisitos educativos” ou pelo fato de alguns “se encaixarem em modelos canonicamente aceites como Literatura infanto-juvenil” (p. 116):

As adaptações infanto-juvenis parecem, pois, deter, uma dupla intenção comunicativa, não dissociada da própria acção educativa e moral da escola [...]: por um lado, aproximar os cânones do sistema adulto ao nível de compreensão das crianças e jovens e, por outro, configurar o que é “bom” (adequado, apropriado) para este público leitor – o didáctico sobressaindo de qualquer uma delas (CALADO, 2009, p. 116).

Dessa forma, Calado (2009) considera a aproximação das crianças com a linguagem do adulto por meio das adaptações. Pensando acerca da identidade ou constituição de autoria do texto adaptado, vale ressaltar ainda que a autora considera que, se a adaptação em questão estiver associada a uma editora ou a um escritor reconhecido, o nome do autor do texto base – a partir do qual surgiu a adaptação – fica resguardado, o que também ocorreu com as adaptações que nós estudamos.

Calado (2009, p. 117) conclui que sua investigação de campo permitiu comprovar a hipótese de que os leitores menos proficientes manifestam menor adesão às obras originais, além de apresentarem maiores dificuldades. Preferem, portanto, as obras adaptadas, que lhes conferem facilidade de leitura. Ressalta, também, a dimensão mercadológica de tais produtos/objetos de cultura:

A adaptação literária surge, assim, por um lado, como o resultado de uma necessidade (Bastin, 1993) de comunicação entre uma instância de produção adulta e uma instância de recepção infanto-juvenil, sendo esta assumida como o leitor-modelo (Eco, 1993) em função do qual são operados os procedimentos adaptativos considerados adequados, na perspectiva do adulto. Por outro lado, a adaptação pode também constituir uma oportunidade pedagógico-cultural e comercial: de divulgação do cânone junto de um público essencialmente escolar e de exploração de um nicho de mercado, com grande potencial, porque ainda pouco explorado, tirando partido das políticas educativas de promoção da leitura (CALADO, 2009, p. 118).

Como reflexões finais, a autora afirma ser “indiscutível que cativar os mais jovens para o prazer da leitura é preferível a forçar a formação de um hábito sem qualquer prazer” e ainda afirma que é necessária a existência de adaptações de obras que poderiam cair no esquecimento, caso não houvesse versões adaptadas de “uma Odisseia, uma Peregrinação, uns Lusíadas, considerados marcos civilizacionais representativos do sistema adulto, mas cuja complexidade e extensão põem sérios entraves à compreensão”, mas as adaptações de seu corpus, a saber, as obras de Eça de Queirós parecem não se justificar, dada a facilidade de leitura dos textos integrais (2009, p. 119).

Corroborando com Calado (2009), percebemos que parece haver a intenção de perpetuação do cânone com as adaptações – até mesmo porque a cada dia a quantidade de literatura canônica adaptada cresce nas coleções das editoras – exemplo disso é a “Clássicos em HQ”, coleção da editora Ática à qual nossa história em quadrinhos investigada pertence. Parece não haver intenção das editoras em alterar a norma do que seja canônico ou não, mas um interesse em tornar o texto mais palatável à leitura e, portanto, um “produto” consumível por um maior número de sujeitos. Nossa discussão se pauta nas adaptações literárias no Brasil, na questão editorial, em suas intenções, mas nosso interesse maior é dar voz a esse sujeito leitor a quem a indústria cultural parece querer seduzir a todo custo.

A dissertação de mestrado de Eliane Dourado intitulada Adaptações Contemporâneas – um estudo sobre os Clássicos Literários em Graphic Novels, apresentada ao programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília em 2014, analisou o fenômeno das Graphic Novels adaptadas de clássicos literários. Sua intenção primordial foi comprovar a legitimidade dessas adaptações como obras de arte que utilizam a poética da imagem para traduzir o enredo contemplado.

A autora escolheu onze obras clássicas para análise que tratam de temas diversos como o comportamento humano, a memória, as questões de poder, dentre outros, e defende – assim como nós – que as formas reduzidas das adaptações não necessariamente diminuem o valor das narrativas nelas contidas.

Dourado (2014) fala dos altos preços das Graphic Novels, o que seria um impasse para a democratização do acesso, no entanto, o PNBE, desde 2006, incorporou os títulos em HQ aos acervos distribuídos, o que gerou grande interesse (com intenções comerciais) nas adaptações (2014, p. 14). A autora trabalha com a Poética da Tradução, sendo a temática abordada e o objeto de estudo ponto de contato com nossa pesquisa.

Na conclusão de seu trabalho, Dourado (2014) afirma ser ardilosa e divertida ao mesmo tempo a tarefa de pesquisar quadrinhos no Brasil, uma vez que o gênero é visto por muitos de forma pejorativa, mas é uma tarefa que rende boas reflexões, como de fato ela coloca nas análises de cada obra contemplada em sua pesquisa. A autora afirma que, apesar de não existir adaptação literal, o produto se constitui como arte legítima e original – o que de certo modo dialoga com a discussão teórica feita na segunda parte do trabalho.

Mariana Oliveira dos Santos e Maria Emilia Ganzarolli (2011) são da área de biblioteconomia e pesquisam, em artigo intitulado Histórias em quadrinhos: formando leitores, as possibilidades de incentivo à leitura na escola por meio das histórias em quadrinhos.

A metodologia é bibliográfica, qualitativa e exploratória, pois buscou fontes de informação acerca da trajetória histórica dos quadrinhos no Brasil, bem como obteve a participação do bibliotecário e do professor na mediação de leitura entre os quadrinhos e as crianças. Dialoga com nosso trabalho fornecendo informações da trajetória das adaptações no mercado editorial brasileiro.

Dois tópicos do artigo em questão nos interessam de forma considerável. O primeiro, intitulado “As histórias em quadrinhos no Brasil” faz um breve apanhado histórico do processo de constituição do mercado de histórias em quadrinhos no país e trata também das características da linguagem dos quadrinhos. O segundo, intitulado “Projetos que utilizam HQ como incentivo à leitura”, enumera algumas práticas interessantes para o uso de quadrinhos em sala de aula.

A conclusão do trabalho de Santos e Ganzarolli (2011) consiste na confirmação da hipótese de que a história em quadrinhos é um recurso muito eficiente como incentivo à leitura, além de um importante auxiliar no ensino, contribuindo para a formação de leitores mais competentes. Esse é um dos aspectos que nós colocamos em foco no processo de discussão com os sujeitos de nossa própria pesquisa.

CAPÍTULO 2

Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever.

Na tentativa de enfrentar e superar as questões discutidas nas páginas anteriores acerca da leitura literária na escola e relembrando meu percurso enquanto leitora, algumas vezes já questionei e entendo o motivo pelo qual muitos professores perguntam por que os jovens não leem como nós líamos há uma, duas ou três décadas. Na verdade, já aprendemos com Chartier (2002a) que diferentes pessoas não manipulam da mesma maneira um mesmo texto, pois há diferentes compreensões, diferentes maneiras de (não) ler o que lhes é imposto (p. 121), ou seja, em todas as épocas podem ter existido leitores e não leitores com práticas diferentes, por isso, esse não deveria ser o questionamento do professor, nem do pesquisador, supondo práticas homogêneas em cada diferente contexto social.

Pensando na questão do leitor de textos literários na escola, despertou-nos curiosidade algo que parece ser recente nas pesquisas, mas não na prática. A existência das adaptações literárias no mercado editorial, seja em forma de histórias em quadrinhos3 (texto associado à imagem), ou no processo de tradução4 em que as obras são adaptadas em textos mais curtos5 e em linguagem diferente da versão original. Chama-nos atenção até mesmo o fato de termos conhecido Os Lusíadas por intermédio de uma adaptação literária.

Como algumas adaptações literárias têm sido enviadas para as escolas pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE, a partir de agora), decidimos fazer um breve levantamento de obras adaptadas disponíveis na biblioteca da Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM, a partir de agora) “Angélica Paixão” do município de Guarapari (ES), observando tanto as obras enviadas pelo programa em questão, quanto livros frutos de possíveis doações e ainda alguns livros da coleção “É só o começo”, entregues à escola pelo SESI, que despertaram nosso interesse por serem direcionados a neoleitores6.

3

Discutiremos mais adiante a adaptação literária (com ou sem imagem) como um processo de tradução intersemiótica.

4

Entendemos tradução aqui como o processo por meio do qual uma obra literária é transformada em novo texto diferente da versão integral a partir da qual foi adaptada.

5 Não tomaremos aqui “mais curtos” como adjetivo em sentido pejorativo, visto que serve apenas para mencionar

a extensão do texto quando comparado à obra integral.

6Segundo o manual para o professor da coleção “É só o começo”, o neoleitor ou novo leitor é o “jovem com

acesso irregular à escolaridade ao longo de sua formação e que, em certo ponto de sua trajetória pessoal, retorna aos estudos a fim de se qualificar para o mercado de trabalho. Ele é o aluno que está saindo da infância e entrando na adolescência, para quem as histórias infantis já são passado, mas os livros adultos ainda constituem um horizonte distante. Ele é, também, o adulto que resolveu vencer a barreira do analfabetismo, começando a estudar ou retomando os estudos, adulto que tem já grande experiência de vida mas pouca

Quando falamos do SESI, inclusive, surge o questionamento de qual seria a motivação para que uma associação de empresários/indústrias – de tradição mecanicista e com ênfase na formação para o trabalho – se dispusesse a adaptar, publicar e distribuir obras como a de nosso estudo. Quais seriam os interesses subjacentes a essa iniciativa? Isenção de impostos? Qualificação do trabalhador? “Redução” da arte e da literatura a uma dimensão instrumental?

Muitos são os questionamentos, todavia, podemos afirmar que a constituição de nosso corpus por meio de obra distribuída pelo poder público e pelo sistema SESI, como representante inequívoco do sistema capitalista, ajuda a pautar como o sistema social contemporâneo – por meio do Estado e das empresas – tem pensado o literário e a educação literária dos sujeitos da classe que vive do trabalho.

O intuito do nosso trabalho é verificar a relevância dessas obras na formação do leitor literário, para isso, objetivamos responder às seguintes questões. A) Como se dá a apropriação do texto integral7 e das diversas adaptações de uma obra pelos estudantes? B) Os textos adaptados despertam no leitor o desejo de conhecer o texto integral? C) Como os alunos agem para (não) realizar as leituras propostas pelo currículo escolar? Utilizaremos para nossa investigação as noções do historiador Roger Chartier sobre práticas, apropriações e representações que serão discutidas mais adiante.