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O livro O cortiço versão integral de Aluísio Azevedo está separado em vinte e três capítulos onde o autor trabalha detalhadamente a vida de muitos personagens construídos a partir de suas observações e percepções acerca da sociedade carioca no fim do século XIX. Em função de ter sido editado pela primeira vez há mais de um século – precisamente em 1890 – sua linguagem apresenta certo grau de dificuldade de compreensão para leitores que não conquistaram habilidades além da decifração. Estamos trabalhando com a 1ª edição/4ª reimpressão de O cortiço da editora Paulus (2014).

Figura 7 – Capa de O cortiço – Aluísio Azevedo

Fonte: Arquivo da autora (2016).

A versão adaptada por Fabio Pinto para novos leitores de O Cortiço da coleção “É só o começo” da editora LP&M, distribuída pelo SESI (2009) (ver figura 2), contém quinze capítulos que foram adaptados a partir do texto integral conforme menciona a editora:

Esta edição foi baseada na versão integral do texto de Aluísio Azevedo. O texto original foi reduzido, e a linguagem foi adaptada para um público específico, o de neoleitores, segundo critérios linguísticos (redução do repertório vocabular, supressão ou mudança de pronomes, desdobramento de orações, preenchimento de sujeitos, etc.) e literários (desdobramento de parágrafos, eventual reordenação de capítulos e/ou informações, ênfase na caracterização de personagens, etc.) que visam oferecer uma narrativa fluente, acessível e de qualidade (PINTO, 2009, contracapa).

Interessante ressaltar que no manual para o professor preparado pela editora há uma discussão sobre a adaptação dizendo que seu objetivo geral é oferecer a um leitor “menos habilitado” ou “menos experiente” “a oportunidade concreta de ler clássicos da literatura, de ter um primeiro contato com eles” (FISCHER, 2009, p. 12). Esse discurso de direcionamento aos neoleitores (segundo os conceitos da editora e conforme já discutimos), entretanto, entra em contradição com o que vemos no site da mesma, onde os livros são indicados para jovens e adolescentes do 7º ano do Ensino Fundamental II até o 3º ano do Ensino Médio, conforme imagem abaixo para um dos livros da coleção.

Figura 8 – Informações Gerais e indicação de leitura

Fonte: site da editora14.

A editora confessa respeitar os textos originais, mas deixa claro que até um certo ponto, uma vez que “não há tradução perfeita, não há adaptação sem modificação, tanto quanto não se faz omelete sem quebrar ovos” (FISCHER, 2009, p. 16). Inclusive, quando lemos sobre o processo de adaptação pelo qual passam os textos, percebemos que o formato é bastante industrializado de compartimentalização do conhecimento, uma vez que o processo de adaptação se figura em três etapas: a editora escolhe algum escritor ou jornalista (com formação em Letras, ou em Tradução e Jornalismo) e lhe dá a tarefa de “reduzir o texto levando em conta aqueles dois modelos de neoleitor, mas sem maiores preocupações a não ser de reduzir o tamanho do texto aos limites necessários editorialmente e de simplificar o vocabulário” (p. 17, 18). Na sequência, passa-se o texto a outro profissional (Sociolinguista) que altera a “redação das frases em busca de maior eficácia comunicativa, numa dimensão propriamente linguística e numa dimensão literária” (p. 18). Por fim, o texto é revisado cotejando os resultados “medindo o mais precisamente possível a aproximação da adaptação aos leitores desejados” (p. 18).

A versão adaptada para novos leitores de O Cortiço da coleção É só o começo traz na contracapa informações aos leitores e aos professores e uma nota editorial.

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Disponível em:

<http://www.lpm.com.br/site/default.asp?Template=../livros/layout_produto.asp&CategoriaID=292715&ID=748482 >. Acesso em 12-out-2016.

Aos nossos leitores

A Coleção “É só o Começo” foi feita para você, com o objetivo de facilitar o seu acesso ao livro, fazer com que você conheça os grandes autores e suas inesquecíveis obras, desperte sua paixão pela leitura e expanda o seu conhecimento.

Queremos estimulá-lo a viver o mundo dos pensamentos, no qual, com sua inteligência, é possível transformar a imaginação em conquistas na vida real.

Leia mais e sempre. Boa leitura!

Aos professores

Essa Coleção “É Só o começo” é uma inovação no campo editorial brasileiro, sendo os primeiros livros produzidos e destinados especificamente para a formação de mais leitores, e para muitos deles poderá ser o primeiro livro.

Uma rápida leitura da Coleção dará uma compreensão objetiva sobre o potencial desses livros na formação dos seus alunos e no enriquecimento dos seus planos e programas didático-pedagógicos. O livro é como o professor: o primeiro jamais se esquece.

Professores: se suas aulas já eram boas imaginem agora com a presença dos protagonistas de O Guarani, de O Alienista, dos casais de Garibaldi & Manoela e Romeu & Julieta, da simpática Escrava Isaura e tantos outros personagens.

Boa aula e boas leituras. (PINTO, 2009, contracapa)

Nesse despertar da paixão pela leitura, a oferta de facilitação do acesso ao livro nos faz pensar em um possível barateamento da leitura literária. O comunicado ao professor de que as aulas se tornarão melhores a partir do compartilhamento da coleção deixa-nos o questionamento para que o grupo focal responda.

De uma forma bastante redundante, a edição traz ainda um convite ao leitor – reforçando o antigo discurso da importância da leitura – incentivando – de uma maneira romantizada – sua viagem pelas histórias de homens e mulheres que foram construídos a partir da observação da realidade. O indivíduo é alertado de que a história aconteceu muito tempo antes do presente e é orientado a nela mergulhar colocando-se “no lugar dos personagens”. O texto é “adaptado numa linguagem simples” para que o leitor tenha “maior facilidade”, acompanhado de notas geográficas e culturais. A nota ainda especifica que o maior desejo é que o sujeito leia e goste de ler, que reconte a história, que o livro seja seu companheiro (“Prezado leitor, prezada leitora” in PINTO, 2009, p. 3).

Contra esse discurso romântico em torno do livro mantemos algumas ressalvas juntamente com Dalvi (2013), quando afirma ter grande preocupação no discurso de “ler por prazer”. Tal visão de Literatura pode ter por consequência dois fatores: desconsiderá-la como algo que deve ser ensinado e aprendido, “pensado, problematizado, discutido, avaliado” e o “falseamento ou mascaramento do papel social, ideológico, histórico, político e cultural da literatura, em seus circuitos, tensões e sistemas” (p. 74). Então temos que abrir ressalvas quando ouvimos esse discurso de livro como companheiro, de viajar no mundo da leitura, transportar-se para outro universo, viver com o personagem ou como o mesmo, etc. Não podemos, entretanto, deixar de considerar que em meio a esse convite bastante romântico à leitura, há a preocupação com a contextualização histórica do leitor, há cuidado na tentativa de fazê-lo entender questões de produção da época da obra.

O livro inclui também notas geográficas, históricas e culturais – o que pode de fato ajudar o leitor a pensar algumas questões ou podem se tornar enfadonhas quando o sujeito traz conhecimento prévio de conceitos básicos. A primeira nota (PINTO, 2009, p. 5) traz um resumo sobre o texto e explica brevemente quem foi Aluísio Azevedo, o que pode ser proveitoso para o leitor. Na página seguinte encontramos as personagens trazidas pela adaptação literária e na outra, o cenário do livro, o que parece ser uma informação relevante, pois explica que o romance se passa no bairro de Botafogo no Rio de Janeiro, que deixa de ser zona rural e passa a ser povoado por ricos e pobres no final do século XIX, quando surgem os cortiços (p. 7). Seguem abaixo a página contendo mapa do trecho do Rio de Janeiro pelo qual transitam os personagens (p. 8) e nota sobre o significado de “carta de alforria” (p. 10).

Figuras 9 e 10 – Mapa e exemplo de nota histórica/cultural

A História em Quadrinhos de O cortiço da editora Ática, fornecida às escolas pelo PNBE com adaptação de Ivan Jaf e arte de Rodrigo Rosa, ao contrário do livro adaptado pela editora LP&M, não é dividida em capítulos, mas ainda assim mantém coerência em relação ao texto que serviu como base para a adaptação. O início do livro traz uma reflexão sobre a obra de Aluísio Azevedo, sua representação no movimento literário denominado Naturalismo e fala da importância dada ao povo humilde que tem papel central na obra. Faz um convite sucinto ao leitor:

Acompanhe os dramas cotidianos e os conflitos pessoais dos personagens de O cortiço. Além de se comover e rir com várias histórias surpreendentes, aqui você mergulha no passado do Brasil e tem um retrato vivo de seu povo! (O cortiço em HQ, 2010, nota editorial, p.3).

Interessante ressaltar que as páginas finais trazem bônus ao leitor, apresentando a biografia dos autores: Aluísio Azevedo e seu percurso enquanto escritor, Rodrigo Rosa – o desenhista que trabalha desde a adolescência como “cartunista e chargista” já tendo recebido diversos prêmios e Ivan Jaf – roteirista “autor de mais de 40 livros”, tendo começado a produzir histórias em quadrinhos a partir de 1979 (ROSA e JAF, 2010, p. 72).

As últimas páginas do livro – conforme já mencionamos – trazem alguns bônus. Falam do contexto histórico e social em que a obra – versão integral – foi produzida, da vida difícil nos cortiços e de seu povo que mesmo com problemas alegrava-se. Além dos pagodes das pessoas humildes, havia também outro tipo de festa nas casas e salões da burguesia (p. 73) à luz de velas – já que ainda não existia energia elétrica (p. 74). A rotina das lavadeiras é mostrada também juntamente com o costume de se mandar cartas.

A editora mostra alguns segredos dos autores da adaptação. Esclarece que o primeiro passo é conhecer integralmente e “a fundo a obra a ser adaptada” para compreender quais as intenções do autor do texto “original”. Fazendo várias leituras do texto base e recriando “a época em que se passa a narrativa do clássico” começa-se o processo de produção da HQ que envolve roteirista e diagramador. Os autores contam que foram até a pedreira de João Romão no Botafogo e, assim como Aluísio Azevedo fez na época, observaram “cenários e construções que foram muito úteis para a reconstituição da época” (ROSA E JAF, 2010, p. 76).

Os bônus ainda trazem exemplo do processo de adaptação pelo qual os textos passam e a importância da intervenção de Ivan Jaf e Rodrigo Rosa um no trabalho do outro. Quando o desenhista vai finalizar a cena, por vezes, afirma a editora, ele faz algumas alterações. Exemplo disso foi a briga entre brasileiros e portugueses no cortiço. No terceiro quadrinho o golpe de navalha parecia muito violento, Rodrigo Rosa substituiu-o por um dedo no olho, conforme imagem abaixo (2010, p. 79).

Figura 11 – Mudança no acabamento da Ilustração

Fonte: Arquivo da autora (2016).

Não podemos desconsiderar que o processo de construção da HQ em questão parece mais coeso quando comparado ao livro da coleção “É só o começo”, isso porque ilustrador e roteirista trabalham juntos, enquanto as etapas de produção da outra versão em questão são fragmentadas e os agentes não se comunicam. Ambas, entretanto, são produtos da indústria cultural, uma vez que estão inseridas em programas que visam “fomentar” a leitura e são feitas sob encomenda de suas respectivas editoras, tornando-se mercadorias que precisam ser vendidas e gerar lucros que compensem os investimentos financeiros.

2.8 TRADUÇÃO, REFACÇÃO, TRANSCRIAÇÃO E O PROCESSO DE