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Adaptações musculares ao estresse celular

2 REVISÃO DA LITERATURA

2.3 Adaptações musculares ao estresse celular

O musculoesquelético é o maior tecido que compõe a massa corporal nos mamíferos, compreende cerca de 45% da massa corporal total e detém a principal reserva de aminoácidos e proteínas. Devido a sua responsividade à vários estímulos hormonais e nutricionais, ele é capaz de regular o suprimento de nutrientes aos demais órgão. Essa propriedade, além de sua óbvia função mecânica, o torna um grande centro modulador do metabolismo em condições normais e essencial em condições de estresse metabólico, como o jejum prolongado e alterações hormonais

(ex: diabetes, síndrome de Cushing). Devido suas funções adaptativas, o musculoesquelético é um tecido altamente influenciado pelo sistema endócrino, assim, a intercomunicação entre o músculo e os demais órgãos tem a tarefa de manter o metabolismo apropriado para a demanda metabólica (Vainshtein et al., 2014).

Além da função endócrina do musculoesquelético, sua função contrátil impõe um alto custo metabólico e induz diversos mecanismos adaptativos provenientes dos estímulos mecânicos, que podem variar de acordo com o padrão da atividade contrátil ou da ação das forças externas ao corpo (Nader and Esser, 2001). Essas propriedades fazem com que o musculoesquelético seja um tecido altamente plástico e tenha uma rápida capacidade de se adaptar às demandas metabólicas, garantindo o funcionamento tecidual e a sobrevivência celular.

Dois importantes mecanismos celulares são descritos como essenciais para manter a homeostase celular, o sistema autofagia-lisossomal (Vainshtein et al., 2014), responsável pela renovação de componentes celulares e o sistema redox, que compreende a capacidade de gerar e neutralizar radicais livres (Jackson, 2005). A falha/excesso em algum desses mecanismos está associada à um mal funcionamento celular e a ativação de mecanismos de apoptose e necrose celular (Faitg et al., 2017, Romanello and Sandri, 2015, Sandri, 2011).

A autofagia é um processo seletivo de captura e entrega de conteúdo citoplasmático ao lisossomo. A partir da interação de uma série de fatores (processo conhecido como nucleação), ocorre a formação de uma membrana de dupla camada, chamado de fagoforo. Durante o alongamento do fagoforo, ocorre o sequestramento do conteúdo citoplasmático que deve ser degradado, como organelas danificadas, complexos proteicos e agregados. Após o alongamento do fagoforo, ocorre a sua maturação, formando uma estrutura conhecida como autofagossomo, que após se fundir com o lisossomo, forma a estrutura conhecida como autolisossomo (Sandri, 2011). No interior do autolisossomo há enzimas proteases responsáveis pela degradação do conteúdo entregue pelo autofagossomo, como exemplo, a catepsina L (Bechet et al., 2005).

Atualmente há diversos fatores capazes de controlar a autofagia, sendo a proteína mTOR (do inglês mechanistic target of rapamycin kinase) uma das principais, cuja fosforilação é capaz de regular negativamente a autofagia em condições normais ou em um ambiente rico em nutrientes. A mTOR pode inibir a autofagia impedindo o processo de nucleação ou regular negativamente diversos efetores que regulam a

transcrição e tradução de proteínas necessárias para que ocorra a autofagia, como a proteína kinase A (Budovskaya et al., 2004), Gcn2 (general control nonderepressible 2) (Talloczy et al., 2002) e Snf1 (sucrose non-fermenting 1) (Huang et al., 1996). A inibição da atividade da mTOR pelo jejum prolongado ou pelo tratamento com rapamicina é capaz de aumentar o fluxo autofágico (Noda and Ohsumi, 1998). Dessa forma, a mTOR é considerada uma proteína chave, que estimula a síntese proteica e um sensor metabólico, cuja atividade é inibida durante o balanço energético negativo (Klionsky, 2005).

Previamente, a autofagia foi considerada uma via não seletiva de entrega de conteúdo celular ao lisossomo, no entanto, é crescente o nível de evidências que demonstram que esse processo ocorre de forma altamente seletiva, gerando a degradação de organelas disfuncionais e proteínas defeituosas. Estudos têm demonstrado que a autofagia é um processo altamente adaptativo, necessário para a manutenção das funções celulares. No entanto, no musculoesquelético, o excesso do fluxo autofágico está associado com a atrofia muscular, uma vez que ele é capaz de degradar uma grande quantidade de conteúdo citoplasmático em uma condição de balanço energético negativo. Por outro lado, a falha em qualquer passo do processo de autofagia, que ocasiona sua inibição, resulta no acúmulo do conteúdo que deveria ser degradado (“lixo celular”), causando o mal funcionamento e morte celular (Sandri, 2011).

Em relação ao sistema redox no musculoesquelético, por ser um tecido rico em mitocôndrias e, associado ao fato dele apresentar uma grande atividade contrátil, o caracteriza como um tecido com alto potencial de produção de radicais livres. Radical livre é qualquer espécie que contém um ou mais elétrons desemparelhados (Halliwell and Gutteridge, 1984) e o termo ERO’s se refere a uma variedade de moléculas reativas, que são derivadas do O2 e que podem ser radicais livres. Além disso, há a

produção de espécies reativas de nitrogênio (ERN), que se referem às espécies reativas derivadas do nitrogênio, que podem ser classificadas como íons (peróxido nitrito) e não íons (óxido nítrico) (Jackson, 2005).

Através da dissociação parcial da molécula de O2 na cadeia respiratória

mitocondrial, é formado o superóxido (O2•−), que pode reagir com o oxido nítrico (NO•)

e formar o peróxido nitrito (ONOO−), ou alternativamente reagir com a enzima

manganês superóxido desmutase (MnSOD) para formar o peróxido de hidrogênio (H2O2). O H2O2 pode sofrer ação enzimática da glutationa peroxidase (GPx) para

formar água, ou na presença de ferro, rapidamente é formada a espécie mais reativa conhecida, o radical hidroxila (OH•) (Bolisetty and Jaimes, 2013). A figura 5 ilustra a

produção de ERO’s e ERN’s.

Figura 5. Estrutura mitocondrial e a produção de espécies reativas mitocondriais. Em virtude de suas

bicamadas lipídicas, a mitocôndria pode ser subdividida em membrana externa, espaço intermembranoso, membrana interna e matriz. A parte inferior da imagem demonstra a produção do ânion superóxido através dos diferentes complexos da cadeia transportadora de elétrons. O superóxido reage com o óxido nítrico (NO•)para formar o peróxido nitrito (ONOO). Alternativamente, o superóxido

é convertido pela MnSOD em H2O2 que é subsequentemente convertido em água pela glutationa

peroxidase (GPx). Na presença de ferro, o H2O2 é rapidamente convertido para o radical hidroxila (OH•).

Traduzido de Bolisetty e Jaimes, Int. J. Mol. Sci. 2013, 14, 6306-6344.

Uma vez que as ERO’s são formadas, há dois possíveis destinos. Um deles é a interação das ERO’s com quaisquer estruturas subcelulares, como membranas, organelas, proteínas, lipídeos e DNA. Essas interações ocorrem para que os radicais livres se estabilizem, a partir da abstração de elétrons, às custas do dano de outras estruturas que perderam seus elétrons, causando prejuízos ao funcionamento celular, mutações, autofagia e apoptose. Outro possível desfecho é a neutralização por enzimas antioxidantes, como as isoformas mitocondrial e citoplasmática de SOD (MnSOD e CuZnSOD, respectivamente), catalase e GPx, ou pelos eliminadores diretos de ERO’s, como glutationa, vitamina E e o ácido ascórbico (Jackson, 2005).

Muitos estudos têm demonstrado os efeitos deletérios da produção excessiva de radicais livres no musculoesquelético, ou mesmo em situações em que o sistema neutralizador está comprometido ou insuficiente (McArdle et al., 1999, Abrigo et al., 2016, Musaro et al., 2010), condição chamada de estresse oxidativo. Uma vez que os radicais livres não são neutralizados, ocorre uma série de alterações nas estruturas subcelulares, que podem ser mensurados a partir da análise de alguns produtos, como a peroxidação lipídica, a oxidação proteica e a mutação do DNA. No entanto, em condições fisiológicas, as ERO’s e ERN’s têm se mostrado capaz de interagir com diversas sinalizações para modificar a expressão gênica e atividade vasomotora, principalmente após o exercício físico. Embora os mecanismos não sejam totalmente elucidados, os radicais livres possivelmente estão associados com expressões gênicas associadas ao aumento de força muscular com o treinamento físico (Haddad, 2002, Droge, 2002, Stamler and Meissner, 2001).

O musculoesquelético possui algumas peculiaridades quanto a capacidade de produção e neutralização de radicais livres. As fibras musculares do tipo I, caracterizadas pelo metabolismo predominantemente oxidativo (fibras de contração lenta), possuem maior capacidade de produção de radicais livres, quando comparadas às fibras musculares do tipo II, que por sua vez possuem o metabolismo predominantemente glicolítico (fibras de contração rápida). As fibras do tipo I possuem maior número de mitocôndria, que são as principais produtoras de ERO’s, além disso, possui maior atividade de enzimas antioxidantes (Jackson, 2005). Por esse motivo, as fibras do tipo I são mais susceptíveis ao dano pelo estresse oxidativo. Por outro lado, as fibras musculares do tipo II possuem maior propensão à atrofia pela a atividade de vias que são ativadas pelos glicocorticoides, como SAL e SUP, por serem ricas em RG (Schakman et al., 2013).

Cabe ressaltar que ambos os mecanismos de adaptação celular, o SAL e o sistema redox se comunicam entre si, podendo haver uma modulação recíproca. O estresse oxidativo é capaz de estimular o SAL, devido seu efeito lesivo nas estruturas subcelulares, principalmente pela maior ocorrência de disfunções mitocondriais, que é um dos principais ativadores de autofagia, processo também conhecido por mitofagia (Zhang et al., 2013b, Dobrowolny et al., 2008), por outro lado, a redução do fluxo autofágico gera o acúmulo de mitocôndrias danificadas, que resulta na maior produção de ERO’s (Wohlgemuth et al., 2010).

Toda condição de estresse celular, que eleva a atividade das vias catabólicas, a um nível superior à síntese proteica por um tempo prolongado, resulta em atrofia muscular. A atrofia muscular é um processo caracterizado pela redução do volume muscular e está associada à grande perda de proteínas contráteis, que resulta na proporcional perda da capacidade de gerar força (di Prampero and Narici, 2003) e a limitação das atividades de vida diária. A perda de massa e força muscular é atualmente um problema de saúde pública, visto que é a principal causa de queda em idosos, levando a um subsequente aumento da morbidade e mortalidade (Brocca et al., 2017). Em síndromes caquéticas, como no câncer, cardiopatias, insuficiência renal, entre outras, o trofismo muscular é um preditor de sobrevida, o que justifica estudos relacionados a essa temática (Tisdale, 2004, Ventadour and Attaix, 2006, Cunha et al., 2012).

Histologicamente, a atrofia muscular é caracterizada pela redução da área transversal das fibras musculares, com consequente perda de conteúdo mitocondrial e do retículo sarcoplasmático (Roseno et al., 2015). É observado a desintegração de miofibrilas, com linhas Z estendidas e lesão mitocondrial. A redução da vascularização, a proliferação de tecido conjuntivo e o aumento do fluido intersticial é característica do processo atrófico. As células satélites abandonam seu estado de quiescência e se tornam ativas, com potencial disponibilidade, caso ocorra algum sinal de regeneração (Lu et al., 1997). Apesar desse aparente estímulo inicial, após 3 dias, a atividade proliferativa das células satélites é reduzida durante a atrofia muscular induzida pela suspensão da cauda em ratos (Darr and Schultz, 1989). No entanto, esse fenótipo pode variar de acordo com a predominância do tipo de fibra que compõe o músculo analisado e com o modelo de atrofia aplicado.

Assim, o músculo esquelético é um tecido altamente plástico, capaz de se adaptar rapidamente às condições de estresse celular, para garantir a quantidade suficiente de substrato energético para a demanda metabólica. Alguns mecanismos celulares são reconhecidos como essenciais para que o ocorra o processo adaptativo, sendo o SAL, o SUP e o sistema redox. A proteína mTOR é um sensor metabólico que modula a atividade de vias de síntese e degradação proteica e, a persistência do estresse celular gera adaptações no sarcômeros, que resultam na atrofia muscular, prejuízo da funcionalidade e deterioração da qualidade de vida.

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