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Capítulo 2: A abordagem ortodoxa da verdade

2.1. As condições de adequação

2.1.1. Adequação material

Como já foi dito121, Tarski pretende capturar as intuições clássicas do conceito de verdade, isto é, aquelas intuições que são expressas pela máxima que Aristóteles expõe no livro Γ da

Metafísica122. Segundo Tarski, as formulações que foram dadas às intuições clássicas, tais como a formulação correspondencial, não foram suficientemente claras e precisas. De acordo com Tarski, nem a máxima

121

Cf. Seção 1.1.

122

“Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, enquanto que dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro” (ARISTÓTELES,

aristotélica, nem as formulações posteriores podem ser consideradas uma definição satisfatória de verdade123. Assim, na perspectiva tarskiana, seria necessário encontrar uma maneira precisa e coerente para expressar as intuições da concepção clássica.

Frente a isso, Tarski toma uma sentença concreta, ‘a neve é branca’, e pergunta sob quais condições essa sentença é verdadeira ou falsa. Se tomarmos por base a concepção clássica, diríamos que a sentença, apontada acima, é verdadeira se a neve é branca e falsa caso a neve não seja branca. Desse modo, temos que a sentença ‘a neve é branca’ é verdadeira se, e somente se, a neve é branca.

A frase “a neve é branca” (entre aspas), que ocorre do lado esquerdo da equivalência, é um nome da sentença ‘a neve é branca’, que ocorre do lado direito da equivalência124. Tem-se o nome da sentença, e não a própria sentença, no lado esquerdo, pois quando fazemos uma afirmação sobre um determinado objeto, é o nome do objeto que deve ser empregado, e não o próprio objeto. Desse modo, para afirmar alguma coisa de uma determinada sentença, por exemplo, que ela é verdadeira ou falsa, utiliza-se o nome da sentença e não ela própria.

123

Cf. TARSKI, 2007 [1933], p.23; [1944] p.161; [1969], p.205.

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Colocar uma expressão entre aspas é o método mais comum de formar um nome para ela. Porém, há outras maneiras de fazer isso como, por exemplo, o método de descrever a expressão letra por letra. Desse modo, a instância do esquema (T) ‘A neve é branca’ é verdadeira se, e somente se, a neve é branca poderia se substituída pela seguinte formulação: A sequência de quatro palavras, sendo a primeira, uma sequência constando da letra A, a segunda, uma sequência constando das letras Ene, E, Vê e E, a terceira, uma sequência constando da letra E (com acento agudo) e a quarta, uma sequência constando das letras Bê, Erre, A, Ene, Cê e A é uma sentença verdadeira se e somente se a neve é branca (TARSKI, 2007, [1969], p. 208). Tarski diz que essa última formulação não difere em significado da primeira, sendo a primeira apenas uma forma abreviada para a última. Entretanto, Tarski aponta que essa última maneira tem a desvantagem de ser menos clara que a primeira; porém, tem a vantagem de não criar a aparência de um círculo vicioso. Colocar a mesma expressão no lado esquerdo e no direito do esquema, com a mera diferença das aspas no lado esquerdo, pode dar margem a pensar o esquema como um círculo vicioso. Contudo, como tentamos mostrar – e essa última formulação parece ter ajudado nisso – a ocorrência da expressão no lado esquerdo tem um caráter inteiramente distinto de sua ocorrência do lado direito (Cf. TARSKI, 2007, [1969], p. 207- 208).

Diante disso, podemos generalizar a equivalência, substituindo a sentença pela variável p e o nome pela variável X. Com isso, temos a seguinte equivalência, conhecida como convenção (T):

(T) X é verdadeira se e somente se p

Uma definição de verdade é adequada materialmente se ela implica logicamente todas as instâncias do esquema (T). Nas palavras do autor, “queremos usar o termo ‘verdadeiro’ de tal maneira que todas as equivalências da forma (T) possam ser afirmadas, e diremos que uma definição de verdade é ‘adequada’ se todas essas equivalências dela se seguem” (TASKI, 2007 [1944], p.163, grifo do autor).

É importante salientar que nem o esquema (T), nem alguma instância particular dele, como a do exemplo acima, pode ser compreendido como uma definição de verdade. Esse esquema é apenas uma condição de adequação que toma as sentenças de uma determinada linguagem e especifica as suas condições de verdade.

Exposta a condição de adequação material, seria interessante, antes de fecharmos esta seção, fazermos alguns comentários sobre o esquema (T). Aladdin Yaqüb (1993) defende que o esquema (T) representa a mais fundamental intuição sobre o conceito de verdade. Porém, segundo esse autor, o esquema tarskiano é apenas um dentre as muitas possíveis formulações para essa intuição. De acordo com Yaqüb, poderíamos escolher, por exemplo, a já citada máxima que Aristóteles expõe na Metafísica, ou o seu bicondicional sobre a falsidade, que esse filósofo expõe na obra Da Interpretação, “se não é o caso, então é falso; se é falso, então não é o caso”. Outra escolha poderia ser a formulação que Platão expõe no Crátilo, “uma proposição verdadeira diz o que é, e uma proposição falsa diz o que não é” 125. Na perspectiva de Yaqüb, tanto essas últimas formulações quanto o esquema (T) apreenderiam a “intuição fundamental” subjacente ao conceito de verdade. Todavia, de acordo com esse autor, o esquema tarskiano teria duas vantagens sobre as outras formulações. Primeiro, ele é muito mais facilmente formalizável e, assim, mais adaptável a um sistema de semântica formal. Segundo, o esquema (T) não envolve qualquer menção de afirmação ou o caso que requeira alguma clarificação para evitar um compromisso

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prévio com proposições ou com a noção correspondencial de verdade (YAQÜB, 1993, p. 7).

Concordando com Yaqüb, o esquema (T) tem um caráter formal e adequado para os sistemas de semântica formal, como era de fato o objetivo do próprio Tarski. No que diz respeito ao segundo ponto apontado por Yaqüb, o esquema (T) teria vantagem em relação às formulações presentes no Crátilo e no Da interpretação, mas não em relação à máxima da Metafísica. Visto que em tal máxima não há qualquer menção da natureza da afirmação (tal como proposição ou enunciado) e nem diz respeito ao “caso”. Se formos avaliar essas formulações de acordo com as menções levantadas por Yaqüb, a máxima da Metafísica seria tão neutra quanto o esquema (T). Segundo Dutra, tanto o esquema (T) quanto a máxima da Metafísica são tão gerais que não expressam nada mais que a ideia de acordo126. Dessa forma, concordando com Dutra, todas essas formulações parecem expressar a ideia comum que a verdade consiste num tipo de acordo.

Avaliando o texto de Yaqüb e o de Dutra, parece que a “ideia de acordo”, no relato de Dutra, é justamente aquilo que aparece sob o nome de “intuição fundamental”, no relato de Yaqüb127. Assim, concordando com Dutra, tanto a máxima aristotélica quanto o esquema tarskiano expressam de maneira neutra intuições importantes sobre o conceito de verdade; porém, como foi apontado por Yaqüb, o esquema (T) é mais adequado para as teorias semânticas, já que é mais formal que a máxima aristotélica.