• Nenhum resultado encontrado

1.3. Portadores de verdade

1.3.1. Sentenças, proposições e enunciados

Começamos então pelas sentenças. Em nossa análise, sentenças são entendidas como sendo quaisquer sequências de símbolos, construídas de acordo com as regras sintáticas de uma determinada linguagem. Por exemplo, ‘A neve é branca’, ‘Abra a janela!’, ‘Que horas são?’ são claramente sentenças do português. Porém, as sequências de símbolos ‘ Branca neve a é’ ‘Os está nas carro garagem’,

67

Além da expressão ‘portador de verdade’, podem-se encontrar também as expressões ‘veículos de verdade’ (cf. RUSSELL, [1918], p.185 e KRIPKE, [1975], p. 691) e ‘suportes de verdade’. Já haveria uma discussão preliminar sobre qual dessas expressões seria a mais apropriada para nos referirmos àquelas coisas que supostamente possuem a propriedade ‘verdade’. Não faremos essa discussão aqui, e vamos assumir a expressão mais comum na literatura sobre o tema, ‘portadores de verdade’ (truth bearers). Tal discussão preliminar pode ser encontrada, por exemplo, em DUTRA, 2001, p. 73-75.

certamente não são sentenças do português, na medida em que não obedecem às regras gramaticais dessa língua.

É interessante mencionar que há várias classificações de sentenças e que, no entanto, nem todas podem receber o predicado ‘verdadeiro’. Por exemplo, as sentenças ‘Abra a janela!’ e ‘Que horas são?’, citadas acima, não podem ser nem verdadeiras, nem falsas. Dessa forma, os autores que defendem que a verdade é uma propriedade das sentenças normalmente negam que as sentenças imperativas e interrogativas possam receber o predicado ‘verdadeiro’. Assim, esses autores, dentre eles Tarski, quando falam em sentenças, estão se referindo às sentenças declarativas. “Por ‘sentença’ entendemos aqui o que se quer dizer usualmente na gramática por ‘sentença declarativa’” (TARSKI, 2007, p.159). Desse modo, para esses autores, as sentenças declarativas são as que podem ser consideradas como sendo verdadeiras ou falsas, pois essas sentenças afirmam ou negam algo sobre alguma coisa. Um exemplo de sentença declarativa é ‘A neve é branca’, que citamos acima. Essa sentença afirma algo sobre a neve, a saber, a propriedade de ela ser branca. Portanto, nessa concepção, a verdade ou falsidade é atribuída às sentenças declarativas, dependendo do que elas afirmam ou negam.

Todavia, alguns teóricos da verdade defendem que não são as sentenças que recebem o predicado ‘verdadeiro’ e sim os sentidos destas. Desse modo, para esses autores, a verdade é uma propriedade das proposições que as sentenças expressam. Mas o que são proposições? Entendemos por proposição aquilo que Frege denomina pensamento, ou seja, o conteúdo objetivo expresso pelas sentenças. Na perspectiva de Frege68, os pensamentos expressos pelas sentenças são entendidos como uma espécie de objeto abstrato que subsiste independentemente da mente de algum sujeito. Desse modo, podemos fazer a seguinte distinção: situamos as sentenças como uma sequência de sons ou de caracteres, sequência construída de acordo com as regras sintáticas de uma determinada linguagem, enquanto que uma proposição é um objeto abstrato que corresponde ao significado dessa sequência de sons ou de caracteres que denominamos por sentença. Por exemplo, tomemos as seguintes sentenças: “A neve é branca”, “The snow is white” e “Der Schnee ist weiss”; são claramente sentenças diferentes, na medida em que são sequências de palavras distintas e de línguas distintas. A

68

primeira é uma sentença do português, a segunda, uma sentença do inglês e a terceira, uma sentença do alemão. No entanto, apesar de as sentenças serem diferentes, elas expressam a mesma proposição, isto é, a proposição de que a neve é branca. Na teoria de Russell69, essas três sentenças se referem a um mesmo fato, a saber, o fato que torna a proposição verdadeira. Nesse sentido, o que é verdadeiro ou falso é a proposição que diz que a neve é branca, e não as sentenças que expressam essa proposição. Dessa forma, para essas teorias que aceitam as proposições como sendo os portadores de verdade, as sentenças são apenas sequências de símbolos não interpretados e, por isso, não são nem verdadeiras, nem falsas; elas são indiretamente verdadeiras ou falsas na medida em que expressam uma proposição verdadeira ou falsa70.

Por outro lado, existem autores que afirmam que a verdade não é uma propriedade nem de sentenças, nem de proposições, e sim de enunciados71. Pois bem, o que são enunciados? Enunciados, como diz Austin, são eventos históricos, isto é, acontecimentos datáveis em que certo falante afirma algo, fazendo uso de uma sentença, para certa audiência (AUSTIN, [1950], p. 113). Os enunciados teriam a vantagem de lidar com dêiticos72 tais como ‘agora’, ‘eu’, ‘aqui’. Por exemplo, tomemos a seguinte sentença declarativa: ‘Está chovendo agora’. Essa sentença pode estar sendo usada para afirmar que está chovendo em Londrina no dia 12 de janeiro de 2011 às 8h e 10m, o que é verdade; e, no entanto, se essa mesma sentença for usada por algum indivíduo no mesmo horário e no mesmo local só que no dia posterior, poderia não ser verdadeira. Assim, nessa perspectiva, os enunciados estão relacionados com a circunstância em que foram realizados, envolvendo, assim, o falante, o tempo, o lugar etc. Visto isso, não podemos dizer que a sentença citada acima seja verdadeira ou falsa independentemente da circunstância em que ela foi utilizada. É importante salientar que nem sempre os enunciados são verdadeiros ou falsos. Austin, em seu texto Quando dizer é fazer, chama a atenção para um tipo de enunciado

69

Cf. RUSSELL, [1918].

70

É interessante notar que predicar a verdade restringindo apenas às sentenças declarativas também vale para proposições, ou seja, as proposições que são capazes de verdade e falsidade são aquelas que são expressas pelas sentenças declarativas (Cf. RUSSELL, [1918], p.185)

71

Cf. AUSTIN, [1950].

72

denominado por ele de performativo, que não é avaliado em termos de verdade ou falsidade. Um exemplo de performativo dado por Austin nesse trabalho é: ‘Aposto cem cruzados como vai chover amanhã’. Segundo Austin, uma determinada pessoa, ao proferir isto, nas circunstâncias apropriadas, não estaria descrevendo o ato de apostar, e sim praticando o ato da aposta. Sendo assim, nessa perspectiva, não podemos dizer que esse ato de apostar seja verdadeiro ou falso, e sim que o ato de apostar foi realizado ou não73.