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1.2. As teorias clássicas da verdade

1.2.1 Correspondência como congruência

A teoria da verdade correspondencial é dita por alguns autores como a mais venerável de todos os tipos38. Talvez isso se deva ao fato

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A filosofia do atomismo lógico foi exposta por Russell nas conferencias que proferiu em Londres dando origem ao texto The Philosophoy of Logical

Atomism [1918], e por Wittgenstein, em sua primeira fase, na obra Tractatus Logico-Philosophicus [1922].

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Cf. DUTRA, 2001, p. 61.

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dessa teoria estar muito próxima da concepção pré-teórica de verdade que é expressa de maneira mais neutra na máxima de Aristóteles, que foi exposta na última seção39. Apesar de alguns autores, como é o caso de Richard Kirkham, defenderem a formulação de Aristóteles como um tipo de teoria correspondencial40, nós, diferentemente, somos adeptos da concepção de que a máxima de Aristóteles expressa nossas intuições mais primitivas sobre a verdade, não se comprometendo com a natureza da correspondência. Concordamos com Dutra (2001), que a máxima aristotélica expressa apenas a noção de acordo que, por sua vez, parece estar presente em qualquer teoria da verdade que pretenda ser intuitiva. De acordo com a teoria da correspondência como congruência, uma proposição é verdadeira na medida em que corresponde a um fato no mundo. Diante disso, para termos um entendimento do que é correspondência, em tal perspectiva, é crucial adicionarmos também uma explicação do que são fatos e proposições41.

Russell, na Filosofia do atomismo lógico, oferece uma tipologia dos fatos. Para esse autor, há tanto fatos particulares, tais como ‘isto é branco’, quanto fatos gerais, como ‘todos os homens são mortais’. Para Russell, há a exigência de admitir fatos gerais, na medida em que não poderíamos descrever completamente o mundo apenas com fatos particulares. Mesmo se conseguirmos registrar todos os fatos particulares do universo, não teríamos ainda uma descrição completa, a menos que fosse adicionado também: “estes que eu registrei são todos os fatos particulares que existem” (RUSSELL, [1918], p. 184). Além disso, polemicamente, Russell admite tanto fatos negativos quanto fatos positivos42. Havendo, por isso, duas relações que uma proposição pode

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“Dizer do que é que não é, ou do que não é que é, é falso, enquanto que dizer do que é que é, ou do que não é que não é, é verdadeiro” (ARISTÓTELES,

Metaphysica, livro Γ 1011b).

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Cf. KIRKHAM, 1995, p. 120.

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Como já apontamos, a teoria da correspondência como congruência foi defendida por Russell e por Wittgenstein. Há algumas diferenças teóricas entre esses autores que não vamos destacar aqui, visto que nosso propósito é apenas fazer uma apresentação genérica da teoria. A tese central, compartilhada por ambos, é que a correspondência é uma relação estrutural de isomorfismo entre proposições e fatos (GRAYLING, 1990, p.145). Em nossa exposição, seguiremos a apresentação feita por Russell em The Philosophy of Logical

Atomism. 42

A justificativa de Russell para a admissão de fatos negativos é dada para garantir a correspondência de certas proposições. O tipo de proposição

ter com um fato: a relação verdadeira para com o fato e a relação falsa para com o fato (RUSSELL, [1918], p.187). Não vamos discutir esse ponto, pois, além de ser polêmico, não é fundamental para a explicação de sua teoria da correspondência43.

Na perspectiva de Russell, os fatos não seriam nem verdadeiros nem falsos. Eles são o tipo de coisa que torna verdadeira ou falsa uma proposição. Com isso, Russell elege as proposições como portadores de verdade44, ou seja, elas seriam as coisas que teriam a capacidade de ser verdadeiras ou falsas ao afirmarem ou negarem os fatos. A correspondência seria garantida ao admitir que fatos e proposições são ambos complexos que podem entrar em correspondência, ou em congruência, na medida em que têm uma estrutura isomórfica. Nas palavras de Russell, “há uma complexidade no mundo objetivo que é espelhada pela complexidade das proposições” (RUSSELL, [1918], p.197). Nessa perspectiva, isso será possível se tivermos uma linguagem logicamente perfeita. Em tal linguagem, haverá uma identidade fundamental de estrutura entre o fato e proposição. Com isso, as palavras em uma proposição corresponderiam os componentes dos fatos que elas expressam, com exceção das palavras tais como “e”, “ou”, “se”, “então”. Palavras como essas, que representam os conectivos usuais da lógica clássica (&, v, →), teriam a função de formar as proposições moleculares a partir das proposições atômicas.

oferecida, por esse filósofo, são as proposições afirmativas falsas, tais como “Sócrates está vivo”. Segundo Russell, tal proposição seria falsa por causa de um fato no mundo real. Com isso, Russell diz que “é extremamente difícil dizer o que acontece quando você faz uma asserção afirmativa que é falsa, a menos que você admita fatos negativos” (RUSSELL, [1918], p.214).

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Nem mesmo Russell parece estar seguro quanto à admissão de fatos negativos em várias passagens do seu texto. Ele comenta a forte reação adversa que sua defesa de fatos negativos teve em Harvard, admitindo ser uma questão difícil, chegando, por fim, a enfraquecer a sua tese quanto à defesa da existência de fatos negativos: “Eu não digo positivamente que existem, mas que podem existir” (RUSSELL, [1918], p. 212). Como dissemos acima, não pretendemos discutir a questão dos fatos negativos por ser demasiadamente polêmica e fugir do escopo dessa pequena apresentação. Porém, apenas para nos posicionarmos quanto a essa questão, concordamos com Susan Haack que a admissão de fatos negativos é gratuita, na medida em que a verdade da negação de uma proposição p consistiria em sua correspondência com o fato que não p, em vez da falha de p em corresponder aos fatos (HAACK, 2002, p.134).

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Percebemos, com isso, duas classes de proposições, a saber, as atômicas e as moleculares. As proposições atômicas são definidas por Russell como aquelas que correspondem a fatos atômicos, tais como “isto é branco”, expressando uma relação monádica, “Sócrates é mestre de Platão”, expressando uma relação diádica etc. Assim, haverá um sujeito em uma relação monádica, dois em uma relação diádica, e assim por diante. Desse modo, na definição de Russell, as proposições atômicas são aquelas que contêm apenas um verbo. Já as proposições moleculares são compostas funcional-veritativamente pelas proposições atômicas através dos conectivos lógicos usuais. Não haveria fatos conjuntivos, disjuntivos etc. que pudessem corresponder a proposições moleculares conjuntivas, disjuntivas etc. As condições de verdade das proposições moleculares, tais como p & q, p q, dependem da verdade ou falsidade das proposições que as compõem e dos significados dos operadores lógicos. Assim, p & q só será verdadeira se tanto p quanto q forem verdadeiras, p q será verdadeira se pelo menos um dos disjuntos for verdadeiro, e assim por diante45.

Quanto a uma proposição geral, tal como ‘todos os homens são mortais’, ela será verdadeira se houver um fato geral no mundo que a ela corresponda. Ao comentar isso, Russell evidencia o problema da indução, conhecido também como problema de Hume, que diz, de maneira bem geral, que proposições gerais sobre fatos não podem ser inferidas de proposições particulares. Russell pensa que quanto aos fatos ocorreria a mesma coisa, ou seja, não é possível chegar a fatos gerais a partir de fatos particulares (RUSSELL, [1918], p.235). Assumindo, assim, a existência de fatos gerais, Russell garantiria as condições de verdade de proposições gerais na medida em que essas poderiam corresponder àqueles.

Vemos, portanto, que Russell, para sustentar sua teoria da correspondência como congruência entre fatos e proposições, assume tanto uma teoria metafísica sobre fatos no mundo quanto a possibilidade de uma linguagem perfeitamente clara que possa corresponder exatamente aos componentes dos fatos que ela pode expressar, teses que estão completamente relacionadas com a metafísica atomista46.

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Cf. RUSSELL [1918], p.208 – 211.

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