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Capítulo 2: A abordagem ortodoxa da verdade

2.1. As condições de adequação

2.1.2. Correção formal

Enquanto que a condição de adequação material é colocada para salvaguardar a intuição expressa pela máxima aristotélica, as condições de correção formal são evocadas para garantir precisão e consistência à teoria da verdade. Sendo assim, vamos apontar quatro condições para que uma teoria, de acordo com Tarski, seja formalmente correta. (I) a definição de verdade deve ser relativa a uma linguagem, para qual se vai definir ‘verdade’, que vai ser denominada de linguagem-objeto da definição; (II) a linguagem-objeto deve ter sua

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Cf. DUTRA, 2001, p. 76; 2004, p. 272.

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É interessante observar que essa equiparação só é possível se estivermos entendendo “intuição fundamental” como sendo meramente uma ideia mínima presente na noção de verdade.

sintaxe formalmente especificada; (III) a linguagem-objeto deve ser semanticamente aberta, isto é, essa linguagem não deve conter predicados semânticos, tais como ‘verdadeiro’ e ‘falso’, que se referem à própria linguagem; (IV) a definição de verdade para a linguagem- objeto terá de ser dada em uma metalinguagem.

As duas primeiras condições são colocadas para garantir, especificamente, precisão à teoria da verdade. Tarski assegura a condição (I) tendo em vista o fato de uma mesma sentença que é verdadeira em uma determinada linguagem pode ser falsa ou até mesmo sem significado em outra linguagem128. Já a condição (II), colocada por Tarski, possibilita definirmos verdade de maneira recursiva. Especificar uma linguagem, nessa perspectiva, consiste basicamente em caracterizar, sem ambiguidades, a classe das expressões que serão consideradas significativas (TASKI, 2007 [1944], p.165). Desse modo, ao especificar a estrutura de uma linguagem, deve-se listar os termos primitivos, e apresentar as regras de definição, isto é, as regras que permitem derivar novos termos a partir desses primitivos. Também, deve-se definir como formar expressões e quais dessas são ‘sentenças’129. Como se percebe, esse procedimento é puramente sintático, isto é, através dele é possível determinar, de maneira exata, a classe de expressões significativas apenas pela estrutura ou forma das expressões130. As linguagens com estrutura especificável da maneira descrita são linguagens formais, tais como as linguagens usadas nos sistemas de lógica.

As duas últimas condições de correção formal são colocadas para evitar inconsistências tais como o paradoxo do mentiroso. Como comentamos no capítulo precedente, Tarski considera tal paradoxo como sendo um problema sério para a semântica e para a lógica como um todo. Agora que já temos a condição que estipula o uso adequado para o predicado-verdade, vejamos como o paradoxo se dá, seguindo a mesma estratégia de Tarski 131. Seja ‘m’ o nome da seguinte sentença:

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Cf. TARSKI, 2007, [1944], p.160

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Dessa forma, é possível identificar precisamente as sentenças que, como vimos, é a entidade que Tarski elege como portador de verdade.

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Cf. TARSKI, 2007, [1933], p.33; [1969], p.218.

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Assim como fizemos, Tarski primeiramente considera o uso adequado do termo verdade extraindo daí a convenção (T) e depois considera o paradoxo do mentiroso de acordo com tal convenção. Para a construção do paradoxo do

m não é uma sentença verdadeira.

Colocando a sentença acima no esquema (T) temos, então, a seguinte instância:

(1) ‘m não é uma sentença verdadeira’ é uma sentença verdadeira se e somente se m não é uma sentença verdadeira.

Diante do significado de ‘m’, temos empiricamente, como diz Tarski, que:

(2) ‘m não é uma sentença verdadeira’ é idêntica a m.

Desse modo, Tarski aponta que pela lei de identidade, conhecida como lei de Leibniz, segue-se de (2) que podemos substituir em (1) ‘m não é uma sentença verdadeira’ por m. Com isso, obtemos o seguinte:

(3) m é uma sentença verdadeira se e somente se m não é uma sentença verdadeira.

Temos em (3) uma contradição patente. Na perspectiva de Tarski, um trabalho sério deve averiguar a causa do paradoxo. Especificamente, devemos analisar as premissas nas quais a antinomia é baseada. Diante disso, analisando o paradoxo do mentiroso, Tarski diz que a contradição surge de: (a) aceitarmos as leis da lógica e (b) da pressuposição de que a linguagem-objeto é semanticamente fechada, isto é, a linguagem, além de conter predicados semânticos, como ‘verdadeiro’ e ‘falso’, contém meios para se referir as suas próprias expressões132. Sendo assim, na perspectiva de Tarski, se quisermos evitar o paradoxo, temos que rejeitar a condição (a) ou a condição (b), ou seja, ou negamos as leis da lógica, coisa que Tarski não pretende fazer, ou rejeitamos as linguagens semanticamente fechadas como objeto das definições de verdade, o que, na perspectiva do autor, deve ser o procedimento adequado133.

Frente a isso, Tarski elabora a seguinte condição relativa à forma da definição, que, na ordem de nossa exposição, será a terceira condição de adequação formal: (III) A linguagem-objeto L deve ser mentiroso, vamos adotar aqui uma estratégia semelhante à que Tarski adotou em seus artigos (Cf. TARSKI, 2007 [1933], p.25; [1944] p.167; [1969], p.212).

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“A análise das antinomias mencionadas mostra que os conceitos semânticos simplesmente não têm lugar na linguagem à qual eles se relacionam, que a linguagem que contém sua própria semântica, e na qual valem as leis usuais da lógica, inevitavelmente deve ser inconsistente” (TARSKI, 2007 [1936], p.150).

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semanticamente aberta, isto é, L não deve conter predicados semânticos, tais como ‘verdadeiro’ e ‘falso’, que se referem às suas próprias expressões. Devido a essa condição de adequação, foi preciso estipular a seguinte condição de adequação formal que será, por fim, a quarta e última condição de correção formal apresentada aqui: (IV) A definição de verdade em L terá de ser dada em uma metalinguagem M. Visto que pela terceira condição aqui apresentada, a linguagem não pode ser auto- referente, foi necessário que Tarski estipulasse essa separação entre linguagem-objeto e metalinguagem134. A primeira sendo, como dissemos acima, a linguagem para qual se define o predicado-verdade, e a segunda, a linguagem na qual construímos a definição135.

Respeitando essas condições de adequação formal, os paradoxos semânticos se dissolvem. Por exemplo, a sentença do mentiroso (S) ‘esta sentença é falsa’, na verdade, é apenas uma abreviação para ‘esta sentença é falsa - em-L’ que, por sua vez, deve ser uma sentença de uma metalinguagem M da definição, pois ela contém um predicado expressando uma propriedade semântica de uma expressão de L, e a linguagem-objeto, pela cláusula (III), não possui tais predicados. Sendo uma expressão da metalinguagem M, ela não pode ser falsa na linguagem objeto L, porque ela não está nessa linguagem. Assim, a sentença do mentiroso não tem predicados semânticos que fazem referência a ela própria. Desse modo, a sentença do mentiroso é simplesmente falsa, e não paradoxal.

Tendo em vista que, para uma definição ser adequada do ponto de vista material, ela deve implicar todas as equivalências da forma (T) (X é verdadeiro se e somente se p), a metalinguagem da definição deve conter todas as sentenças que ocorrem na linguagem-objeto ou traduções dessas sentenças, visto que ‘p’, em (T), representa uma sentença qualquer da linguagem-objeto. A metalinguagem deve conter, também,

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Cf. TARSKI, 2007, [1944], p.170.

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É importante salientar que essa distinção entre linguagem-objeto e metalinguagem é relativa. Se, por uma eventualidade, estivermos interessados na noção de verdade que se aplique a uma linguagem M que estávamos usando como metalinguagem, essa se tornaria a linguagem-objeto nessa ocasião. E teríamos, assim, que adotar outra metalinguagem, digamos Z, para falarmos sobre M. E toda uma hierarquia de linguagem seria necessária para definir verdade em todo nível. Mas, na teoria de Tarski o predicado, ‘verdade’ de cada linguagem na hierarquia refere-se apenas a sentença das linguagens inferiores dentro dessa hierarquia, que, por sua vez, ascende indefinidamente.

nomes para as sentenças da linguagem-objeto, na medida em que o símbolo ‘X’, em (T), representa o nome da sentença que ‘p’ representa. Além disso, a definição deve conter termos de caráter lógico usual, tais como ‘se e somente se’136. Diante da possibilidade da construção de antinomias, como o paradoxo do mentiroso, “a metalinguagem, que fornece meios suficientes para definir a verdade, deve ser essencialmente mais rica que a linguagem-objeto; não pode coincidir com esta última (...)” (TARSKI, 2007, [1969], p.212).

2.2. O conceito de verdade para as linguagens de primeira