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ADI nº 4.277, ADPF nº 132 do STF e outros avanços jurisprudenciais

2. EVOLUÇÃO E TRANSFORMAÇÕES DOS DIREITOS DAS FAMÍLIAS

2.4. ADI nº 4.277, ADPF nº 132 do STF e outros avanços jurisprudenciais

Existe uma omissão legal quanto às relações homoafetivas, que não receberam inclusão expressa quando a Constituição alterou o conceito de família, possibilitando a marginalização de tais relações, que ficaram desprotegidas juridicamente, à mercê de preconceitos e rejeição social.

Apesar de existirem projetos de lei que tratam de regularizar a matéria, reconhecendo a união civil entre pessoas do mesmo sexo, promovendo o bem de todos sem preconceito e criminalizando a homofobia, nenhum deles foi aprovado e alguns, como o PL nº 1.151/95, tramitam no Congresso há mais de 15 anos.

Isso posto, coube ao Poder Judiciário tratar do assunto, primeiramente por meio do julgamento de casos concretos até culminar na apreciação da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, proposta pela Procuradoria Geral da União em 2009, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, julgadas pelo STF, que reconheceram a união estável homoafetiva como unidade familiar.

Tais decisões foram complementadas pela Resolução nº 175/2013 do CNJ, que regularizou a formalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, vedando a recusa das autoridades competentes na celebração do casamento civil homoafetivo ou da conversão da união estável homoafetiva em casamento.

Inicialmente, diante da omissão legal e do preconceito contra as relações homossexuais, os juízes resistiam ao reconhecimento das relações homoafetivas como uniões estáveis. Para evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes por ocasião do fim da relação, a jurisprudência reconhecia a existência de sociedade de fato entre os parceiros, afastando a relação do direito de família ao negar o vínculo afetivo, inserindo-as no direito obrigacional.

Por consequência, o reconhecimento dessa sociedade de fato afastava os direitos sucessórios, resultando em injustiças quando do falecimento de um dos parceiros na relação homoafetiva, uma vez que o parceiro sobrevivente não era herdeiro, ficando seu direito restrito ao patrimônio resultante de sua contribuição na sociedade de fato, enquanto a herança do de cujus era entregue aos parentes, ainda que não fossem herdeiros necessários, ou à municipalidade, quando não houvessem parentes e fosse declarada herança vacante.

O primeiro julgado a reconhecer a união de pessoas do mesmo sexo como objeto do Direito das Famílias foi do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, embora ainda tratasse da relação homoafetiva como sociedade de fato.

RELACOES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido.31

O reconhecimento da relação homoafetiva como unidade familiar também foi uma inovação do TJ/RS, em um processo que tratava do direito de herança do parceiro sobrevivente.

União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação. Paradigma. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros.32

No mesmo sentido, pronunciou-se o STJ em 2008:

PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA. PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. [...] A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação

legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a

estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês (sic) que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 5. Recurso especial conhecido e provido.33 (grifos no original)

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TJRS, AI 599075496, 8ª Câm. Cív., Rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17/06/1999

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TJRS, AC 70001388982, 7ª Câm. Cív., Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 14/03/2001

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STJ, REsp: 820475 RJ 2006/0034525-4, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, j. 02/09/2008, T4 - QUARTA TURMA, Publicação: DJe 06/10/2008.

Diante do exposto, é possível observar a gradativa aceitação da união homoafetiva enquanto unidade familiar detentora de direitos pelo Judiciário, impulsionada pela necessidade de regularizar a situação instável dessa relação jurídica. A utilização da analogia para a concessão aos homoafetivos dos direitos inerentes às demais relações afetivas é cabível e indicada como solução à lacuna legal, de forma que possibilite garantir o tratamento igualitário a todos os cidadãos brasileiros.

Ainda que tenha se omitido o legislador de referir às uniões homoafetivas, não há como deixa-las fora do atual conceito de família. Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formam um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem.34 (grifo no original)

Na tentativa de uniformizar a jurisprudência e regulamentar a matéria, a Procuradoria- Geral da República ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, objetivando a declaração da obrigatoriedade do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar, com a concessão dos mesmos direitos e deveres da união estável entre heterossexuais, modificando a interpretação do art. 1.723 do Código Civil.

A ADPF nº 132 foi julgada procedente, em conjunto com a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277, pelo STF, que realizou a interpretação do art. 1.723 do Código Civil em conformidade com a Constituição Federal, reconhecendo a união homoafetiva como família.

EMENTA: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO,

NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE

INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. [...] 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. [...] 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO

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DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 200

CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO- REDUCIONISTA. [...] 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. [...] 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES.35 Em idêntico sentido é o julgado da ADI nº 427736.

Com a leitura das ementas e dos Acórdãos nas ações citadas, é possível identificar como objetivo principal a defesa da dignidade humana, uma vez que os indivíduos têm liberdade de dispor sobre sua orientação sexual, assegurada como direito fundamental, não podendo sofrer nenhuma espécie de prejuízo na vida civil pelo exercício dessa liberdade.

Os Ministros do STF consideraram o pluralismo como valor sócio-político-cultural, reconhecendo a existência de diferenças entre os indivíduos, mas não entenderam ser plausível como fatores de desigualação jurídica o sexo, o gênero e a sexualidade, salvo quando houver disposição constitucional em contrário, o que não é o caso das relações homoafetivas, onde existe somente o silêncio legal.

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STF, ADPF 132, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011

36 EMENTA: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO.CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. (...) 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. (...) 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA (...) 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA (...) 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. (...) 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. (...) (STF, ADI 4277, Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05/05/2011)

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