UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
DEPARTAMENTO DE DIREITO PRIVADO
LARA FORTE MOTA
A FAMÍLIA HOMOPARENTAL E O DIREITO À REPRODUÇÃO
ASSISTIDA
FORTALEZA
LARA FORTE MOTA
A FAMÍLIA HOMOPARENTAL E O DIREITO À REPRODUÇÃO
ASSISTIDA
Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Mestre William Paiva Marques Júnior
FORTALEZA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Setorial da Faculdade de Direito
M917f Mota, Lara Forte.
A família homoparental e o direito à reprodução assistida / Lara Forte Mota. – 2014. 65 f. : enc. ; 30 cm.
Monografia (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Curso de Direito, Fortaleza, 2014.
Área de Concentração: Direito de Família.
Orientação: Prof. Me. William Paiva Marques Júnior.
1. Inseminação artificial humana - Brasil. 2. Homosexuais - Brasil. 3. Direito de família - Brasil. I. Marques Júnior, William Paiva (orient.). II. Universidade Federal do Ceará – Graduação em Direito. III. Título.
LARA FORTE MOTA
A FAMÍLIA HOMOPARENTAL E O DIREITO À REPRODUÇÃO
ASSISTIDA
Monografia apresentada à banca examinadora e à coordenação do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, como requisito parcial à obtenção do grau de bacharel em Direito.
Aprovada em: ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Mestre William Paiva Marques Júnior (Orientador)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Mestre Maria José Fontenelle Barreira Araújo
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dra. Raquel Cavalcanti Ramos Machado
Dedico este trabalho aos meus pais, Samid e
Rubens, que sempre foram minha força, em
especial durante a jornada acadêmica e à
AGRADECIMENTO
Em primeiro lugar, quero agradecer aos meus pais, Samid e Rubens, que são meu
exemplo de caráter e conduta, pelo apoio constante durante toda a minha vida, em especial
durante a faculdade, que sempre foram os meus maiores incentivadores na busca pela
realização de meus sonhos.
Em seguida, agradeço ao meu irmão Lucas, que apesar de não ter seguido com a
carreira jurídica, sempre me serviu de exemplo e foi de grande valia durante todo o curso, seja
ajudando com minhas dúvidas acadêmicas, seja acalmando minhas angústias existenciais
sobre o futuro.
Agradeço, também, a minha irmã Liana, que se não pôde ajudar diretamente na
composição deste trabalho, prestou grande auxílio como confidente, com seu constante
incentivo ao meu sucesso e sua inabalável fé em minha capacidade.
À minha afilhada, Maria de Lourdes, todo o meu amor e gratidão, pela inspiração
e esperança no futuro.
Ao querido Prof. Mestre William Marques, meu agradecimento pelo tempo e pela
atenção. Agradeço, também, pela excelente orientação, que me abriu os olhos para as
oportunidades da pesquisa acadêmica e, por fim, pela amizade.
Aos professores participantes da banca examinadora, a sempre querida professora
Maria José Fontenelle Barreira Araújo, ou simplesmente Profa. Mazé, e à prestativa Profa.
Dra. Raquel Cavalcanti Ramos Machado, pelo tempo, pela atenção e pelas valiosas
colaborações e sugestões.
Ao meu tio, Dr. Lúcio Flávio, pela prestatividade e pela ajuda em relação aos
conceitos médicos.
Aos prezados amigos que acompanharam meu crescimento, que suportaram
comigo as dificuldades e o estresse, que aproveitaram comigo os bons momentos e que
seguirão comigo na construção de um futuro pleno.
E, finalmente, agradeceço a Deus por todas as graças alcançadas, pois sem Ele
“Eles se amam de qualquer maneira, vera
Eles se amam é pra vida inteira, vera
Qualquer maneira de amor vale o canto
Qualquer maneira me vale cantar
Qualquer maneira de amor vale aquela
Qualquer maneira de amor valerá”.
RESUMO
Pretende-se estudar a inovação trazida pela Resolução n° 2013/2013 do CMF, que
autorizou e garantiu o acesso de casais homoafetivos às técnicas de reprodução humana
assistida. Busca-se analisar os avanços jurídicos e sociais no Direito das Famílias ocorridos no
Brasil desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, até atingir sua realidade plural
contemporânea. Pretende-se alcançar o esclarecimento sobre a questão da homoafetividade,
apresentando um contexto histórico de sua identificação e de seu reconhecimento enquanto
comportamento natural do ser humano, traçando um paralelo com a evolução das famílias e
seu tratamento jurídico. Aborda-se, ainda, questões sobre a reprodução humana assistida,
apresentando seu conceito e suas espécies, sobre o tratamento legal dispensado para sua
regulação no ordenamento brasileiro, bem como sobre os direitos fundamentais relacionados à
sexualidade, à reprodução e à parentalidade, que, aplicados aos casais homossexuais, servem
de base para o reconhecimento da unidade familiar homoafetiva. O objetivo mais específico
do trabalho é analisar o modelo de família homoparental e a possibilidade da realização de seu
projeto parental por meio de procedimentos de reprodução assistida.
Palavras-chave: Homoparentalidade. Reprodução Assistida. Família homoafetiva. Direito
ABSTRACT
This work aims to study the innovation brought by the Resolution nº. 2013/2013 of the
Brazillian CMF (Federal Medicine Council), which authorized and secured access to
techniques of assisted human reproduction by homosexual couples. It seeks to examine the
legal and social advances in the Family Law occurred in Brazil since the promulgation of the
Constitution of 1988, until the contemporary plural reality. It is intended to attain
enlightenment on the issue of homoaffection, presenting a historical context of their
identification and recognition as a natural human behavior, drawing a parallel with the
evolution of families and their legal treatment. It also covers questions on assisted human
reproduction, with its concept and species, and the legal treatment given to their regulation in
the Brazilian law system, as well as on fundamental rights related to sexuality, reproduction
and parenting, which, applied to homosexual couples, composes the basis for the recognition
of homoaffective family unit. The more specific objective is to analyze the model of the
homoparental family and the possibility of carrying out their parental project through assisted
reproduction procedures.
Lista de abreviaturas e siglas
ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas
STF Supremo Tribunal Federal
CNJ Conselho Nacional de Justiça
CFM Conselho Federal de Medicina
ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADPF
CF/88
TJ/RS
LGBT
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
Constituição Federal de 1988
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ... 13
2. EVOLUÇÃO E TRANSFORMAÇÕES DOS DIREITOS DAS FAMÍLIAS ... 15
2.1. Evolução Histórica do Direito das Famílias ... 16
2.2. Breve contexto histórico das relações homoafetivas ... 19
2.3. Direitos Fundamentais relacionados à sexualidade, à reprodução e à parentalidade ... 23
2.4. ADI nº 4.277, ADPF nº 132 do STF e outros avanços jurisprudenciais. ... 30
3. REPRODUÇÃO ASSISTIDA ... 34
3.1. Conceito ... 34
3.2. Espécies ... 36
3.2.1. Fecundação Artificial Homóloga ... 36
3.2.2. Fecundação Artificial Heteróloga ... 37
3.2.3. Maternidade por substituição ... 38
3.3. Tratamento Legal ... 40
4. RESOLUÇÕES DO CFM ... 43
4.1. Reprodução Assistida por casais homoafetivos ... 45
4.2. Gestação por substituição como solução para a reprodução de casais homoafetivos masculinos ... 48
4.3. Impactos Jurídicos da aquisição do direito à Reprodução Assistida por casais homoafetivos ... 50
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 54
REFERÊNCIAS ... 56
1. INTRODUÇÃO
A Carta Magna de 1988 inovou a ordem jurídica brasileira, trazendo
transformações importantes para o direito privado, vez que trouxe alguns de seus institutos,
como a propriedade, para o plano constitucional, regulando-os de acordo com princípios
constitucionais, garantindo maior ênfase social, condicionando os tribunais e os particulares à
observância dos direitos e garantias fundamentais.
Tais transformações destacam a importância da proteção dos direitos humanos no
neoconstitucionalismo brasileiro, repercutindo especialmente no Direito das Famílias, que
trata das relações afetivas interpessoais dos indivíduos e que representa o fundamento das
suas relações sociais.
Dessa forma, com a constitucionalização do direito brasileiro, o conceito jurídico
de família foi ampliado, para estender a proteção estatal à todas as relações sociais afetivas
que compusessem unidades familiares, tais como famílias nucleares, monoparentais,
reconstituídas e homoafetivas, contando ou não com a adição de filhos biológicos ou
adotivos.
A proteção da família é notoriamente um dos principais interesses da legislação
brasileira e de nosso ordenamento jurídico, havendo previsão constitucional para sua
proteção, além de títulos e sessões inteiras nos Códigos Penal e Civil, essa proteção não
atingia a família homoparental que, até decisão recente do STF, não era reconhecida como
unidade familiar.
Depois do reconhecimento da união estável homoafetiva, o Conselho Federal de
Medicina regulou, por meio da Resolução nº 2013/2013, o acesso dos casais homoafetivos às
técnicas de Reprodução Assistida, como forma de realização do projeto parental,
aproximando a possibilidade do reconhecimento da igualdade de direitos entre a tradicional
família heteronormativa e as novas unidades familiares (homoparental, monoparental,
extensas).
De todas as novas espécies de família, a família homoafetiva é a mais
revolucionária, uma vez que quebra o parâmetro mais tradicional da família patriarcal, ou
seja, a diferença sexual, o binômio homem-mulher. A relação afetiva entre pessoas do mesmo
através de julgados do Supremo Tribunal Federal, recebendo, por consequência, o tratamento
legal e a proteção inerentes da união estável, já regulada em lei.
Apesar do reconhecimento, alguns setores da sociedade brasileira, influenciados
por ideologias religiosas ou simplesmente naturalistas, opõem resistência à concretização de
direitos do movimento LGBT, principalmente na seara do Direito das Famílias, combatendo
as conquistas referentes ao direito à liberdade de orientação sexual e ao planejamento
familiar, afirmando que a união entre homem e mulher heterossexuais, com a finalidade da
concepção de filhos, é a única forma de constituir família.
Esse discurso conservador é sustentado pela ideia de que a homossexualidade é a
concretização de um pecado ou a manifestação de uma doença psicológica, o que leva à
rejeição e à homofobia em diferentes intensidades nos segmentos sociais brasileiros. Dessa
forma, a família homoafetiva é alvo das complexas lógicas de intolerância, preconceito e
discriminação, aumentando a importância da legalização de suas relações.
Esses questionamentos acerca da legalidade dos direitos concedidos às relações
homoafetivas, decorrem da inexistência de norma que trate do assunto, bem como da
necessidade da formulação de novos ditames legais para uma proteção mais específica dessa
espécie de família.
Além da proteção da família, também é dever do Estado garantir o direito ao
planejamento familiar, ou seja, garantir o acesso aos recursos médicos e tecnológicos
necessários para o exercício de escolha dos indivíduos quanto à concepção ou a anticoncepção
de prole, visto que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos fundamentais, protegidos
constitucionalmente.
Sendo assim, uma vez que os casais homoafetivos são incapazes de conceber seus
filhos pelo meio natural (infertilidade social), é preciso garantir seu acesso ao sistema de
adoção, bem como às diversas técnicas de reprodução humana assistida, ainda que por meio
do sistema público de saúde, para possibilitar a realização do projeto parental e concretização
de seus direitos reprodutivos.
A metodologia a ser adotada consiste, majoritariamente, em pesquisa
bibliográfica, demonstrando o posicionamento de autores nacionais e estrangeiros acerca do
tema. Em conjunto com a pesquisa bibliográfica, será desenvolvida pesquisa legislativa e
2. EVOLUÇÃO E TRANSFORMAÇÕES DOS DIREITOS DAS FAMÍLIAS
O Direito Civil apresentou evoluções marcantes nos últimos 50 anos, em especial na
esfera do Direito de Família, como a possibilidade do divórcio, da união estável e o
reconhecimento de novas unidades familiares, gerando vasta discussão jurídica quanto à
conceituação da ordem familiar e dos direitos a ela inerentes.
Ainda assim, não foi exatamente de um dia para o outro que o divórcio, como percurso para o reencontro de destinos mais promissores, instalou-se no mundo contemporâneo. As pressões de toda a sorte, morais, religiosas, éticas e culturais, empataram durante grande número de décadas, e até hoje, a aceitação plena do rompimento da matrimonialização das relações conjugais. Às mulheres divorciadas se imputou o status da indignidade; e aos seus filhos, a pecha de filhos sem pai. Idas e vindas de aceitação e de rejeição ao novo modus de desfazimento da sociedade conjugal foram amplamente sentidas e registradas ao longo da modernidade. 1
A constitucionalização do Direito das Famílias foi um processo gradual, que enfrentou
oposição de diversas parcelas da sociedade, pois colocava os direitos de liberdade e de
dignidade humana acima de conceitos tradicionais, como a constância do matrimônio. A
institucionalização de novas espécies de família, além da família matrimonializada, foi uma
quebra de paradigma, onde o Estado reconheceu um fato social antes marginalizado.
Deve-se, portanto, vislumbrar na família uma possibilidade de convivência marcada pelo afeto e pelo amor, fundada não apenas no casamento, mas também no companheirismo, na adoção e na monoparentalidade. É ela o núcleo ideal do pleno desenvolvimento da pessoa. É o instrumento para a realização integral do ser humano.2
Diante do reconhecimento da União Estável Homoafetiva enquanto unidade familiar,
através da ADI nº 4.277 e da ADPF nº 132 do STF, bem como a possibilidade do casamento
civil trazida pela Resolução nº 175/2013 do CNJ, se fez necessária a reorganização dos institutos do Direito de Família, de forma a abranger, com igualdade de direitos, essa nova
espécie de unidade familiar.
Para melhor compreensão dos conceitos e percepção das transformações que
caracterizam o Novo Direito das Famílias, cabe uma breve digressão, para esclarecer o
contexto histórico que possibilitou tal evolução, descobrindo seus aspectos sociais, religiosos
e econômicos.
1 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Direito das Famílias por Juristas Brasileiras. São Paulo:
Saraiva, 2013, p. 26.
2 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: 5. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 2011, p.
2.1Evolução Histórica do Direito das Famílias
A família romana é o referencial da família ocidental contemporânea, não sendo
relevante a análise da família primitiva (pré-histórica), sendo a Idade Antiga Ocidental o
ponto de partida do presente estudo.
A unidade familiar na Roma Antiga era caracterizada como monogâmica, patriarcal,
autônoma e exclusivista. Não tinha por fundamento de formação nem o parentesco e nem os
vínculos afetivos, e sim o pátrio poder, centrado na figura do homem mais velho, que exercia
esse poder sobre seus parentes, determinando, inclusive, sobre o reconhecimento do indivíduo
como parte da família, sendo também juiz e sacerdote dentro da célula familiar.
Foi a Antiga Roma que sistematizou normas severas que fizeram da família uma sociedade patriarcal. A família romana era organizada preponderantemente, no poder e na posição do pai, chefe da comunidade. O pátrio poder tinha caráter unitário exercido pelo pai. Este era uma pessoa sui júris, ou seja, chefiava todo o resto da família que vivia sobre seu comando, os demais membros eram alini júris3
Outro ponto de destaque na família romana é a relação com a religião. O agrupamento
familiar surge como consequência da religião, com o objetivo de manter e perpetuar o culto
aos antepassados, por meio do fogo sagrado, sendo dever dos descendentes manter vivo o
culto dos mortos, bem como preservar suas sepulturas.
O arcabouço da família não era tampouco o afeto natural, visto que os direitos grego e romano não tomavam na menor conta esse sentimento. Poderia ele existir no íntimo dos corações, mas para o direito não representava nada. O pai podia amar sua filha, mas não lhe podia legar os seus bens. As leis da sucessão, isto é, aquelas que entre todas traduzem com mais fidelidade as idéias (sic) que os homens tinham acerca da família, estão em flagrante contradição, tanto com a ordem de nascimento como com o afeto natural.
Os historiadores do direito romano, observando com acerto que nem o nascimento nem o afeto foram alicerces da família romana, julgaram que tal fundamento deveria residir no poder paterno ou no poder do marido. (...) a autoridade paterna ou marital, longe de ter sido causa principal, foi, ela mesma, um efeito; originou-se da religião e por esta foi estabelecida.4
O templo religioso era a propriedade da família, onde também eram sepultados seus
mortos, promovendo o estabelecimento e desenvolvimento de comunidades e normas sociais,
bem como de leis sobre propriedade.
A família antiga seria, pois, uma associação religiosa, mais que associação natural. Também veremos como a mulher só será de fato levada em conta quando a cerimônia sagrada do casamento a tiver iniciado no culto; que o filho deixa de fazer
3
MACHADO, José Jefferson Cunha. Curso de Direito de Família. Sergipe: UNIT, 2000, p. 03
4
parte da família quando renuncia ao culto ou quando se emancipa; o filho adotado, ao contrário, se torna verdadeiro filho para a família, quando, embora não tenha laços de sangue, passa a ter na comunhão do culto algo melhor que isso; o legatário que se recusa a adotar o culto dessa família não fará jus à sucessão; enfim, como o parentesco e o direito à herança são regulamentados não pelo nascimento, mas de acordo com os direitos de participação no culto, conforme o estabeleceu a religião.5
A religião doméstica foi, então, o principal elemento constitutivo da família antiga,
que se caracterizava pelo culto aos antepassados comuns, onde o casamento era marcado pelo
abandono, por parte da mulher, do culto aos antepassados do pai, em prol do culto aos
antepassados do marido, de forma a consolidar a união familiar, sendo impossível pertencer a
mais de um culto familiar, a mais de uma família.
Fumulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família “id est
patrimonium” (isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles.6
Com o advento do Cristianismo e a dominação da religião católica apostólica romana,
a Sagrada Família passou a ser o modelo ideal a ser seguido, ou seja, a família deveria ser
composta por um homem, uma mulher e sua prole. Permanece, portanto, a importância da
capacidade de procriação, que na família antiga tinha relevância para a perpetuação do culto
aos antepassados, bem como consolida o modelo heteronormativista e patriarcal.
No Brasil, o modelo patriarcal de família foi normatizado com o Código Civil de
1916, até então não havia tratamento legal específico para as relações pessoais familiares ou
para as questões patrimoniais envolvendo os bens de família, que contava somente com a
regulamentação religiosa.
Nesse antigo modelo de família, o lar se compunha de um grande número de pessoas, considerando-se a prole numerosa, os agregados, os aparentados de toda a sorte e os serviçais, todos se misturando pelo espaço amplo durante todo o tempo, o que impedia a consolidação de maior intimidade ou amizade entre os membros, tornando os relacionamentos muito sérios, rigorosos, rígidos e severos, sem grande manifestação de afetividade ou de cumplicidade.7
5
COULANGES, Fustel de. A cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 45/46.
6
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Global Editora, 1985, p. 95/96
7
O Código Civil de 1916 determinou todas as características e os requisitos de
formação das relações jurídicas familiares de forma detalhada, como forma de garantir a
segurança jurídica do instituto, resultando em um conceito rígido de família.
... modelo de família legítima, matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e transpessoal, fundada em um vínculo matrimonial indissolúvel, na indissociabilidade entre a relação conjugal e a paterno-filial, com papéis inflexíveis e com destaque à proteção da consaguinidade na filiação.8
Dessa forma, ficaram excluídas da proteção legal todas as relações familiares não
constituídas nos termos do novo Código.
... o nascimento de uma família legítima estava condicionado à celebração de um casamento civil válido, de modo que a ausência de matrimônio, dentro das condições legais, colocava o grupo familiar, automaticamente, à margem do sistema jurídico e lhe atribuía o qualificativo de ilegítima9
A instituição familiar é um fato natural e cultural, uma vez que não se identifica a
formação de uma sociedade sem uma instituição que carregue as funções de criação e
socialização dos filhos; produção, acúmulo e consumo de bens; exercício da sexualidade
consensual entre indivíduos; e continuidade da prole biológica.
A família é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentesco, pelo contrário, são passivos; só depois de longos intervalos, registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou radicalmente.10
Enquanto fato cultural, a família é um instituto de alta mobilidade, que está em
constante transformação para adaptar-se às novas demandas da sociedade. Para acompanhar
essas transformações, foram editadas leis ordinárias que modificaram pontualmente o Código
Civil de 1916, que diminuíram o caráter patriarcal do modelo familiar jurisdicionalizado.
Com o advento do Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4121/1962, a mulher casada foi
retirada da condição de incapaz, com a Lei nº 6515/1977, foi consagrada a possibilidade da
ruptura matrimonial através do divórcio e convolação de novas núpcias e com a Constituição
8
CARBONERA, Silvana Maria. Direito das Famílias por Juristas Brasileiras. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 36.
9
CARBONERA, Silvana Maria. Direito das Famílias por Juristas Brasileiras. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 37.
10
Federal de 1988, o acesso ao estatuto da filiação foi alargado, inserindo os filhos nascidos fora
do casamento em condição de igualdade de direitos.
Percebe-se, nesse contexto, um divisor de águas entre a família codificada na década de 20 e a família constitucionalizada na década de 80: aquela, caracterizada como matrimonial, patriarcal, heterossexual e hierárquica; esta, caracterizada pela informalidade (união estável), monoparentalidade (comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes), respeito à diversidade sexual e igualdade conjugal.11
Todas essas transformações ilustram a transição do modelo patriarcal antigo para um
modelo plural de família, principalmente com o advento da Constituição Federal de 1988, que
trouxe a proteção aos direitos fundamentais e priorizou a tutela da dignidade da pessoa
humana dos indivíduos inseridos em relações familiares.
2.2 Breve contexto histórico das relações homoafetivas
A questão da sexualidade sempre foi encarada pela sociedade como tabu, crime ou
pecado, sendo objeto de estudo de variadas ciências médicas e humanas, portanto, é possível
traçar um parâmetro evolutivo do reconhecimento da homossexualidade como exercício da
liberdade sexual individual.
Em resumo, em todo o mundo antigo e medieval é possível diferenciar duas tradições distintas em torno dos afetos e das emoções. Uma é a tradição médica e ética, que defende o uso moderado e prudente da sexualidade. A outra é a tradição ascética e religiosa, que propõe a renúncia total em função de ideais superiores. 12
As relações homossexuais podem ser identificadas em todas as fases da
humanidade, seja na sociedade ocidental, seja na oriental. Em cada período histórico, estas
relações receberam tratamento diferenciado, como nas sociedades antigas, em que a prática de
atos homossexuais era considerada normal, até a rejeição absoluta durante a Idade Média.
Na Idade Antiga, a pederastia, assim denominada a homossexualidade masculina, era
aceita e, em alguns casos, até mesmo incentivada, mas não era reconhecida como unidade
familiar, devido a necessidade de garantir a descendência, restringindo a família ao modelo
heteronormativo.
11 MOSCHETTA, Sílvia Ozelame Rigo. Homoparentalidade: direito à adoção e reprodução humana assistida
por casais homoafetivos. Curitiba: Juruá, 2011, p. 36
12 GRACIA, Diego. Pensar a bioética: metas e desafios. São Paulo: Edições Loyola e Centro Universitário São
Nas antigas civilizações era comum o relacionamento sexual entre mestre e aluno,
como parte da educação masculina, bem como entre companheiros de um mesmo grupo
militarizado, nessas relações não importava o aspecto homossexual, mas a posição de
dominante assumida pelo ativo, que era o superior hierárquico, já denotando conceitos
machistas, ainda que os atos homossexuais não fossem repreendidos.
... o amor por pessoas do mesmo sexo já existia e era amplamente aceito por outros povos que não apenas os da Grécia Clássica e de Roma, civilizações vistas pela atual sociedade como as mais tolerantes em relação à homoafetividade. Realmente foi sobre elas que os historiadores mais se debruçaram para estudar as origens históricas da homossexualidade, o que se explica por formarem elas (especialmente a primeira) o berço do mundo ocidental.13
Em Roma e na Grécia Clássica, existia como costume o culto ao corpo masculino, que
seria a tradução da perfeição, do divino, esse culto também legitimava a manutenção de
relações homossexuais, que eram consideradas como parte do crescimento masculino,
podendo assumir diversos significados, seja de subordinação do passivo em relação ao ativo,
na prática do ato sexual, seja como forma de expressão de confiança e amizade.
Ao expor o mito grego da criação do homem, Platão abrange todas as possibilidades
de gênero e sexualidade, ao afirmar que, no início, o ser humano era composto de duas partes
e vivia pleno, mas, por agir com arrogância em relação aos deuses, foram separados ao meio
por Zeus e Apolo, vagando pelo mundo incompletos, em insaciável busca de sua outra
metade.
Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirige muito sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, como cortículos do macho, gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles deitar-se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade,
13
intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento.14
Na Idade Média, ainda que o exercício saudável da sexualidade fosse reconhecido
como benéfico em termos médicos, a tradição religiosa dominante construiu uma moral que
condenava o prazer sexual, somente sendo possível a cópula quando autorizado pelas
autoridades religiosas, ou seja, na esfera do matrimônio para fins de procriação, sendo
qualquer outra demonstração de sexualidade considerada imoral e, portanto, reprovável.
Com o domínio da religião católica, o desejo e a sexualidade foram reprimidos de
forma geral, sendo a prática da sodomia, ainda que entre marido e esposa, proibida em
particular, taxada como pecado de natureza grave, cuja prática seria penalizada com morte na
fogueira, imposta pelo direito canônico, reduzindo o ato sexual ficou aos fins de procriação,
consolidando uma moral homofóbica, que criminalizava o comportamento homossexual.
Longe de expurgar a homoafetividade, tal rejeição causou somente a
marginalização das relações entre pessoas do mesmo sexo, que agora agiam com discrição, às
escondidas da sociedade intolerante, a fim de evitar as sanções criminais impostas pelo
Estado.
A sodomia – a dos antigos direitos civil ou canônico – era um tipo de ato interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX tona-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e, talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que é, no fim das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo: subjacente a todas as suas condutas, já que ela é o princípio insidioso e infinitamente ativo das mesmas; inscrita sem pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial, não tanto como pecado habitual porém como natureza singular. (...) A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.15
A repressão às práticas homossexuais e o não reconhecimento das relações
homoafetivas enquanto relações familiares perdurou até o século XX. Em 1975 o termo
homossexualismo foi inserido na Classificação Internacional das Doenças (CID) como um
“desvio ou transtorno da sexualidade”, adicionando ao preconceito já existente a ideia de que
a homossexualidade seria uma enfermidade passível cura.
14
PLATÃO. O banquete. Minas Gerais: Virtual Books, 2003. Disponível em: <http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/protagoras2/links/O_banquete.pdf>. Acesso em: 12 maio 2014.
15
Até o final do século XVIII, três grandes códigos explícitos – além das regularidades devidas aos costumes e das pressões de opinião – regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Eles fixavam, cada qual à sua maneira, a linha divisória entre o lícito e o ilícito. Todos estavam centrados nas relações matrimoniais: o dever conjugal, a capacidade de desempenhá-lo, a forma pela qual era cumprido, as exigências e as violências que o acompanhavam, aas (sic) carícias inúteis ou indevidas às quais servia de pretexto, sua fecundidade ou a maneira empregada para torna-lo estéril, os momentos em que era solicitado (períodos perigosos da gravidez e da amamentação, tempos proibidos da quaresma ou das abstinências), sua frequência ou raridade: era sobretudo isso que estava saturado de prescrições. O sexo dos cônjuges era sobrecarregado de regras e recomendações. 16
Somente em 1985, depois de diversas evoluções e mudanças sociais, o Conselho
Federal de Medicina (CFM) retirou a validade do citado registro de doenças, não mais
classificando a homossexualidade como desvio ou transtorno do comportamento sexual.
O preconceito contra os homoafetivos era amplo e não se restringia ao campo médico
e psiquiátrico, era disseminado também pela religião, pelo direito e pela filosofia, sempre
implicando que o indivíduo homossexual era detentor de anomalia física, psicológica ou
comportamental.
A retratação de tais preconceitos se fez necessária, uma vez que não houve
comprovação científica de qualquer imperfeição genética ou degeneração entre os
homossexuais. Sua presença constante na sociedade ao longo da história e, ainda, a
identificação de práticas homossexuais em animais irracionais, solidificaram a ideia de que se
trata de um comportamento natural do ser humano.
Apesar do reconhecimento enquanto fato natural do comportamento humano pelas
ciências médicas e sociais, a homossexualidade continua a ser objeto de preconceito dentro da
sociedade, seja de forma explícita, com ações homofóbicas e violentas, seja de forma velada,
por meio do não reconhecimento das relações homoafetivas, pela proposta de projetos de leis
contra os direitos civis provenientes da formalização dessas relações.
A forma particular de dominação simbólica de que são vítimas os homossexuais, marcados por um estigma que, à diferença da cor da pele ou da feminilidade, pode ser ocultado (ou exibido), impõe-se através de atos coletivos de categorização que dão margem a diferenças significativas, negativamente marcadas, e com isso a grupos ou categorias sociais estigmatizadas. Como em certos tipos de racismo, ela assume, no caso, a forma de uma negação de sua existência pública, visível. A opressão como forma de ‘invisibilização’ traduz uma recusa à uma existência legítima, pública, isto é, conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por uma
16 FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
estigmatização que só aparece de forma realmente declarada quando o movimento reivindica visibilidade. Alega-se, então, explicitamente, a ‘discrição’ ou a dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se impor.17
O preconceito, portanto, se manifesta na imposição da discrição sobre o casal
homoafetivo, que não pode apresentar o mesmo comportamento social que um casal
heteroafetivo em um ambiente público, bem como na necessidade da omissão de sua
característica homossexual diante de pessoas desconhecidas, que poderiam se sentir ofendidas
pela sua existência, ou quando busca um emprego em áreas consideradas tradicionais e, ainda,
quando realiza contratos e acordos da vida cotidiana, como compra e venda ou aluguéis.
A superação dessa opressão social é o principal objetivo dos movimentos sociais
LGBT, seja por meio de ações e campanhas de conscientização, seja por meio de propostas de
lei que legitimem a união homoafetiva e que proporcionem proteção a essa classe contra a
violência de que são alvo.
2.3Direitos Fundamentais relacionados à sexualidade, à reprodução e à
parentalidade
A Constituição é a lei principal de um Estado Democrático de Direito. O Brasil,
portanto, traz em sua Constituição Federal de 1988 os principais direitos, garantias e deveres
do cidadão, como forma de garantir a segurança jurídica e proporcionar uma organização
social equilibrada.
O princípio de proteção da dignidade da pessoa humana é a regra maior da
Constituição brasileira e está expresso em seu artigo 1º, inciso III, orientando todos os outros
princípios e garantias constitucionais, bem como servindo de norte ao sistema jurídico como
um todo.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;18
17
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. Tradução de: Maria Helena Kühner. Disponível em: <file:///D:/Documentos/monografia/LIVROS/BOURDIEU, P. A Dominação Masculina.pdf>. Acesso em: 12 maio 2014, p. 70/71.
18
O direito à igualdade, à isonomia e à liberdade, também garantidos
constitucionalmente (tanto no preâmbulo, quanto no art. 5º), são os que guardam maior
relação com as questões de sexualidade e reprodução, servindo de base aos projetos que visam
regulamentar a matéria.
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (grifo nosso.)1
Desse modo, é possível identificar o compromisso assumido pelo Estado, que é a
inclusão de todos os cidadãos sob a proteção de sua tutela jurídica, de forma igualitária,
protegendo a liberdade individual e garantindo a busca da felicidade.
Os primados da isonomia e da liberdade tem grande potencial transformador no
tratamento das relações jurídicas. Por serem princípios fundamentais, são admissíveis como
base legal nas decisões que tratam de lacunas da lei, como é o caso das relações homoafetivas.
A Constituição Federal de 1988, de acordo com os princípios já citados, visando maior
proteção das relações familiares afetivas, trouxe mudanças no conceito de família,
expandindo-o de forma a promover o reconhecimento da união estável entre homem e mulher
e a família formada por um dos pais e seus filhos, enquanto entidades familiares.
Cabe destacar, ainda, que a norma constitucional não apresenta regra de exclusão, se
tratando de cláusula geral de inclusão, uma vez que retirou a exigência da celebração do
matrimônio na constituição da família. Sendo assim, apesar de não constar de forma expressa
na lei maior, cabe também o reconhecimento da união estável homoafetiva, por tratar-se de
direito ao livre exercício da sexualidade e de relação jurídica baseada em vínculo afetivo,
típica do Direito das Famílias.
Além dos direitos expressos na Constituição, é importante mencionar outras questões
relacionadas à homoafetividade. Os direitos reprodutivos são os direitos humanos que tratam
da autonomia reprodutiva exercida pelo indivíduo, ou seja, direitos relacionados à saúde
reprodutiva, englobando o bem-estar físico, mental e social, implicando em uma liberdade
para desfrutar da vida sexual de forma segura, e na capacidade de optar por procriar ou não.
documentos de acordos. Esses direitos se baseiam no reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do mais alto padrão de saúde sexual e de reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme expresso em documentos sobre direitos humanos.19
Os direitos sexuais têm menor reconhecimentos jurídico, não existindo uma definição
propriamente dita no direito positivo. Isso ocorre porque trata-se de situação extremamente
privada, relacionada com o prazer do indivíduo, que vai de encontro à moral social
dominante, que incentiva a ocultação da diversidade sexual, por sofrer forte influência
religiosa.
Para obter um maior reconhecimento dos direitos sexuais, cada vez mais indivíduos
recorrem ao Judiciário para a resolução dos conflitos que envolvem esses direitos, originando
o fenômeno denominado judicialização da sexualidade.
Os juristas usam o termo judicialização para se referirem à obrigação legal de que um determinado tema seja apreciado judicialmente. Próximo a esse sentido, mas já com caráter normativo, afirma-se que judicialização é o ingresso em juízo de determinada causa, que indicaria certa preferência do autor por esse tipo de via. Refere-se a decisões particulares de tribunais, cujo conteúdo o analista consideraria político, ou referente a decisões privadas dos cidadãos (como questões de família). Decisões judiciais particulares poderiam ser sujeitas a escrutínio e seu conteúdo poderia ser avaliado como “grau de judicialização”.20
É possível identificar essa judicialização ao analisar o grande número de demandas
para reconhecimento de direitos relacionados ao livre exercício da sexualidade, como as
decisões judiciais que autorizaram as operações de mudança de sexo, reconheceram os
direitos dos homoafetivos de constituir família, bem como os direitos de adoção, de sucessão
e de livre expressão da própria sexualidade, sem risco à dignidade ou integridade física.
A causa dessa judicialização da sexualidade pode ser atribuída à enorme lacuna legal
referente a esses direitos, antes da Constituição de 1988, as questões sobre os direitos sexuais
eram ignoradas pelo legislador, somente entrando em foco com a constitucionalização do
direito brasileiro, que trouxe a proteção à dignidade humana como cerne de todo o
ordenamento jurídico.
19
EGITO, Relatório da Conferência Internacional de População e Desenvolvimento, 1994, Capítulo VII, 7.3. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/Arquivos/relatorio-cairo.pdf> Acesso em: 18/05/2014
20
Em relação às causas do processo de judicialização, alguns atribuem-na à ação do legislador, constituinte ou ordinário, o governo federal, os agentes políticos, grupos oposicionistas ou de associações (...). Há referências a macroprocessos de mudança social que teriam embaralhado as relações entre direito, política e sociedade. Outros concentram sua atenção no próprio Poder Judiciário (suas atribuições, as práticas e cultura de seus agentes) ou na legislação defasada (...) A expressão faz parte do repertório das ações de grupos políticos que defendem o recurso das arenas judiciais para ampliar a proteção estatal à efetividade de direitos de grupos discriminados ou excluídos.21
Apesar das dificuldades na sua conceituação, o direito à sexualidade é um direito
humano e fundamental, personalíssimo, decorrente da própria natureza do indivíduo, sendo,
portanto, inalienável e imprescritível, uma vez que acompanha a pessoa desde o seu
nascimento.
Ninguém pode se realizar como ser humano se não tiver assegurado o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende tanto a liberdade sexual como a liberdade à livre orientação sexual. O direito ao tratamento igualitário independente da tendência afetiva. Todo ser humano tem o direito de exigir respeito ao livre exercício da sexualidade, pois é um elemento integrante da própria natureza humana e abrange sua dignidade.22
Dessa forma, as minorias buscam a via judicial como forma de garantir seus direitos,
uma vez que a realidade social é bem mais dinâmica que a composição de leis que a regulem,
fazendo com que os tribunais assumam o papel regulador, típico das normas jurídicas, quando
enfrentam lacuna legal, criando uma jurisprudência que assume força de lei até que a matéria
seja apreciada propriamente pelos legisladores.
Revisando, assim, através de uma democracia direta (via Internet), a longa tradição secular e jurídica de dissimular a diversidade de comportamento sexual, de modo a fazer, abertamente, a judicialização da sexualidade humana. Espero que nos próximos dez anos, o Estado nacional venha a determinar, juridicamente, que a homossexualidade não é uma inversão ou doença, como julgam alguns párocos e educadores mais duros, mas uma opção sexual. Em substância, no século XXI em construção, a homossexualidade não será tabu.23
Já podem ser identificados, atualmente, avanços na positivação dos direitos sexuais,
principalmente na forma de tratados internacionais, garantindo a livre manifestação da
sexualidade humana, buscando a proteção das minorias e a emancipação da saúde sexual,
desvinculando-a das restrições religiosas.
21
MACIEL, Débora Alves, KOERNER, Andrei. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ln/n57/a06n57.pdf> Acesso em: 18/05/2014, p. 116.
22 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
200.
23
MARTINS, Vicente. Por que excluir os gays das escolas? Disponível em: < http://www.ggb.org.br/
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, foi assegurada a defesa da dignidade
humana24 e o direito à segurança pessoal25, que se relacionam como direitos sexuais de
personalidade e de livre arbítrio, combatendo ameaças à integridade física e mental do
indivíduo.
Apesar de ser um dos mais importantes tratados internacionais vigentes, a Declaração
Universal dos Direitos do Homem surte efeito somente nos países signatários, não tendo
eficácia diante dos outros Estados.
O Irã, por exemplo, assume uma política discriminatória e violenta, pois considera
crime capital a prática de atos homossexuais, com penas que de castigos físicos, que vão de
chicotadas e apedrejamento, até a pena de morte pela reincidência. O país mantém uma
polícia moral em atividade, responsável por deter pessoas que apresentem um comportamento
inadequado ou pecaminoso. Apesar da reprovação da comunidade internacional, a ONU não
pode interferir diretamente no tratamento legal dos homossexuais no país, devido a soberania
estatal.
No novo Código Penal Islâmico, que está sendo escrito, as relações homossexuais são oficialmente criminalizadas, segundo o relator. Os artigos 232 e 233 do código preveem pena de morte para “o homem envolvido em sodomia, independentemente de seu papel ser consensual ou não”. Homens solteiros e muçulmanos “ativos” na relação podem receber penas de 100 chicotadas, desde que não tenham realizado um estupro. Homens casados ou não muçulmanos estão sujeitos à pena de morte. Se a relação homossexual (entre dois homens ou duas mulheres) não envolver penetração, o praticante está sujeito a receber 100 chicotadas.26
Ainda sobre o Irã, vale ressaltar que os transexuais recebem um tratamento legal
diferenciado, pois a cirurgia de mudança de sexo é autorizada no país desde de 1987,
recebendo, inclusive, subsídios estatais. Porém, esse reconhecimento é baseado em um
preconceito, pois considera a transexualidade como uma doença, uma anomalia que deve ser
curada por meio de cirurgia.
24
“Artigo I: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.” ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: < http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_Humanos
VersoInternet.pdf> Acesso em: 18/05/2014
25
“Artigo III: Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: < http://unicrio.org.br/img/DeclU_D_Humanos
VersoInternet.pdf> Acesso em: 18/05/2014
26
REDAÇÃO DA REVISTA CARTA CAPITAL. "Homossexualidade é doença", diz autoridade de direitos humanos do
Irã <http://www.cartacapital.com.br
/internacional/homossexualidade-e-doenca-diz-autoridade-de-direitos-humanos-do-ira.> Acesso em: 28 abr. 2014. Publicado em 14/03/2013, às 17:45h, última modificação
Com o paradoxo criado pela criminalização da homossexualidade e a autorização e
incentivo da cirurgia de mudança de sexo para os transexuais, o país é um dos que mais
realizam a operação, pois esta acaba se tornando a única alternativa para que os homoafetivos
possam viver uma vida normal em sociedade.
O exemplo acima mostra que, apesar da grande evolução apresentada pela edição da
Declaração Universal de Direitos do Homem, ainda existe um longo caminho a ser percorrido
para que esses direitos sejam garantidos para toda a população mundial.
Cabe, também, destacar a situação de Uganda, que, apesar de ser país signatário da
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos desde setembro de 1999, recentemente
aprovou uma lei que agravou as penalidades impostas àqueles que praticam atos
homossexuais prevendo a prisão perpétua para os reincidentes e para os que mantiverem
relações com menores de idade ou portadores do vírus HIV.
A homossexualidade já era considerada crime em Uganda, bem como em mais de 30
países africanos, devido à forte influência do cristianismo protestante, e a pena anteriormente
prevista pela prática de atos homossexuais era de até 14 anos de prisão restritiva de liberdade.
O Presidente Ugandês Yoweri Museveni assinou uma lei que agrava as penalidades impostas contra as pessoas gays e define alguns atos homossexuais como crimes puníveis com prisão perpétua.
Os atos homossexuais já são ilegais em Uganda, e Museveni titubeou recentemente em sua decisão sobre a assinatura da lei controversa, em face da vocalização da oposição do Ocidente.
(...) A lei foi proposta primeiramente em 2009, originalmente incluindo a pena de morte pela prática de atos homossexuais. Foi rapidamente engavetada quando a Inglaterra e outras nações europeias ameaçaram retirar o apoio a Uganda, que depende da comunidade internacional em milhares de dólares.
O parlamento nacional aprovou a lei em Dezembro, substituindo a previsão da pena de morte com a proposta da prisão perpétua para “homossexualidade grave”, que inclui relações nas quais uma das pessoas é portadora do vírus HIV, reincidentes e relações com menores de idade, de acordo com a Anistia Internacional.27
27 Ugandan President Yoweri Museveni has signed into law a bill that toughens penalties against gay people and
Fica claro, portanto, que apesar de tratar-se da proteção de direitos humanos
internacionalmente reconhecidos, como o direito à dignidade da pessoa humana, à integridade
física e à liberdade, a homofobia, traduzida tanto na segregação social quanto na violência
física, é legitimada em diversos países, sem que exista uma forma de interferência das
organizações internacionais que não ofenda a soberania estatal.
O direito à segurança pessoal, já garantido pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos, é reafirmado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos28, bem como o
direito à privacidade e à liberdade de pensamento. A Convenção Americana de Direitos
Humanos29 traz, ainda, o direito à integridade física, mental e moral. Todos esses direitos se
associam aos direitos constitucionais à dignidade, à igualdade e à liberdade.
Com a evolução dos direitos fundamentais, associada com o desenvolvimento de
novas técnicas de medicina, surgiram questões referentes à parentalidade, que se resumem no
direito de cada indivíduo de dispor dos meios científicos para, com autonomia e liberdade,
realizar seu planejamento familiar, decidindo conscientemente sobre a concepção de filhos.
... cabe lembrar que o planejamento familiar é livre (CF 226 §7º), não podendo nem o Estado nem a sociedade estabelecer limites ou condições. O acesso aos modernos métodos de concepção assistida é igualmente garantido em sede constitucional, pois planejamento familiar também significa buscar a realização do projeto de parentalidade.30 (grifos no original)
Além de ampliar o direito da mulher sobre o próprio corpo, por meio de técnicas
anticoncepcionais, os direitos humanos, sexuais e reprodutivos, ligados à parentalidade,
também se aplicam aos parceiros envolvidos em relações homoafetivas, possibilitando a
formação de novos núcleos familiares, como a família homoparental, objeto do presente
trabalho.
28 “ARTIGO 17 1. Ninguém poderá ser objetivo de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em
sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais às suas honra e reputação. (...) ARTIGO 18: 1. Toda pessoa terá direito a liberdade de pensamento, de consciência e de religião. Esse direito implicará a liberdade de ter ou adotar uma religião ou uma crença de sua escolha e a liberdade de professar sua religião ou crença, individual ou coletivamente, tanto pública como privadamente, por meio do culto, da celebração de ritos, de práticas e do ensino.” ONU, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, 1966. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0592.htm> Acesso em: 18/05/2014.
29“
Artigo 5º - Direito à integridade pessoal - 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral.” OEA, Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica), 1969. Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm> Acesso em: 18/05/2014.
30 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p.
2.4 ADI nº 4.277, ADPF nº 132 do STF e outros avanços jurisprudenciais.
Existe uma omissão legal quanto às relações homoafetivas, que não receberam
inclusão expressa quando a Constituição alterou o conceito de família, possibilitando a
marginalização de tais relações, que ficaram desprotegidas juridicamente, à mercê de
preconceitos e rejeição social.
Apesar de existirem projetos de lei que tratam de regularizar a matéria, reconhecendo
a união civil entre pessoas do mesmo sexo, promovendo o bem de todos sem preconceito e
criminalizando a homofobia, nenhum deles foi aprovado e alguns, como o PL nº 1.151/95,
tramitam no Congresso há mais de 15 anos.
Isso posto, coube ao Poder Judiciário tratar do assunto, primeiramente por meio do
julgamento de casos concretos até culminar na apreciação da Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental nº 132, proposta pela Procuradoria Geral da União em 2009, e na
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277, julgadas pelo STF, que reconheceram a união
estável homoafetiva como unidade familiar.
Tais decisões foram complementadas pela Resolução nº 175/2013 do CNJ, que
regularizou a formalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, vedando a recusa das
autoridades competentes na celebração do casamento civil homoafetivo ou da conversão da
união estável homoafetiva em casamento.
Inicialmente, diante da omissão legal e do preconceito contra as relações
homossexuais, os juízes resistiam ao reconhecimento das relações homoafetivas como uniões
estáveis. Para evitar o enriquecimento ilícito de uma das partes por ocasião do fim da relação,
a jurisprudência reconhecia a existência de sociedade de fato entre os parceiros, afastando a
relação do direito de família ao negar o vínculo afetivo, inserindo-as no direito obrigacional.
Por consequência, o reconhecimento dessa sociedade de fato afastava os direitos
sucessórios, resultando em injustiças quando do falecimento de um dos parceiros na relação
homoafetiva, uma vez que o parceiro sobrevivente não era herdeiro, ficando seu direito
restrito ao patrimônio resultante de sua contribuição na sociedade de fato, enquanto a herança
do de cujus era entregue aos parentes, ainda que não fossem herdeiros necessários, ou à
municipalidade, quando não houvessem parentes e fosse declarada herança vacante.
O primeiro julgado a reconhecer a união de pessoas do mesmo sexo como objeto do
Direito das Famílias foi do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, embora ainda tratasse
RELACOES HOMOSSEXUAIS. COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO DE SEPARAÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO DOS CASAIS FORMADOS POR PESSOAS DO MESMO SEXO. Em se tratando de situações que envolvem relações de afeto, mostra-se competente para o julgamento da causa uma das varas de família, a semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido.31
O reconhecimento da relação homoafetiva como unidade familiar também foi uma
inovação do TJ/RS, em um processo que tratava do direito de herança do parceiro
sobrevivente.
União homossexual. Reconhecimento. Partilha do patrimônio. Meação. Paradigma. Não se permite mais o farisaísmo de desconhecer a existência de uniões entre pessoas do mesmo sexo e a produção de efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos, são realidades que o Judiciário não pode ignorar, mesmo em sua natural atividade retardatária. Nelas remanescem conseqüências semelhantes às que vigoram nas relações de afeto, buscando-se sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo onde se debruça a melhor hermenêutica. Apelação provida, em parte, por maioria, para assegurar a divisão do acervo entre os parceiros.32
No mesmo sentido, pronunciou-se o STJ em 2008:
PROCESSO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE UNIÃO HOMOAFETIVA.
PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ. OFENSA NÃO
CARACTERIZADA AO ARTIGO 132, DO CPC. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. ARTIGOS 1º DA LEI 9.278/96 E 1.723 E 1.724 DO CÓDIGO CIVIL. ALEGAÇÃO DE LACUNA LEGISLATIVA. POSSIBILIDADE DE EMPREGO DA ANALOGIA COMO MÉTODO INTEGRATIVO. [...] A despeito da controvérsia em relação à matéria de fundo, o fato é que, para a hipótese em apreço, onde se pretende a declaração de união homoafetiva, não existe vedação legal para o prosseguimento do feito. 4. Os dispositivos legais limitam-se a estabelecer a possibilidade de união estável entre homem e mulher, dês (sic) que preencham as condições impostas pela lei, quais sejam, convivência pública, duradoura e contínua, sem, contudo, proibir a união entre dois homens ou duas mulheres. Poderia o legislador, caso desejasse, utilizar expressão restritiva, de modo a impedir que a união entre pessoas de idêntico sexo ficasse definitivamente excluída da abrangência legal. Contudo, assim não procedeu. 5. É possível, portanto, que o magistrado de primeiro grau entenda existir lacuna legislativa, uma vez que a matéria, conquanto derive de situação fática conhecida de todos, ainda não foi expressamente regulada. 6. Ao julgador é vedado eximir-se de prestar jurisdição sob o argumento de ausência de previsão legal. Admite-se, se for o caso, a integração mediante o uso da analogia, a fim de alcançar casos não expressamente contemplados, mas cuja essência coincida com outros tratados pelo legislador. 5. Recurso especial conhecido e provido.33 (grifos no original)
31
TJRS, AI 599075496, 8ª Câm. Cív., Rel. Des. Breno Moreira Mussi, j. 17/06/1999
32
TJRS, AC 70001388982, 7ª Câm. Cív., Rel. Des. José Carlos Teixeira Giorgis, j. 14/03/2001
33
Diante do exposto, é possível observar a gradativa aceitação da união homoafetiva
enquanto unidade familiar detentora de direitos pelo Judiciário, impulsionada pela
necessidade de regularizar a situação instável dessa relação jurídica. A utilização da analogia
para a concessão aos homoafetivos dos direitos inerentes às demais relações afetivas é cabível
e indicada como solução à lacuna legal, de forma que possibilite garantir o tratamento
igualitário a todos os cidadãos brasileiros.
Ainda que tenha se omitido o legislador de referir às uniões homoafetivas, não há como deixa-las fora do atual conceito de família. Passando duas pessoas ligadas por um vínculo afetivo a manter relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formam um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem.34 (grifo no original)
Na tentativa de uniformizar a jurisprudência e regulamentar a matéria, a
Procuradoria-Geral da República ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)
nº 132, objetivando a declaração da obrigatoriedade do reconhecimento da união homoafetiva
como entidade familiar, com a concessão dos mesmos direitos e deveres da união estável
entre heterossexuais, modificando a interpretação do art. 1.723 do Código Civil.
A ADPF nº 132 foi julgada procedente, em conjunto com a Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 4277, pelo STF, que realizou a interpretação do art. 1.723 do
Código Civil em conformidade com a Constituição Federal, reconhecendo a união
homoafetiva como família.
EMENTA: 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO,
NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU
RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. [...] 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. [...] 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO
34