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As adoções ilegais, ou “adoções à brasileira”, são aquelas que não passam pela esfera jurídica, ou seja, ocorrem quando uma pessoa encontra uma criança e a registra num cartório como seu filho biológico, sem passar pelos trâmites legais da adoção.

Para fazer um registro de nascimento num cartório é necessária a apresentação do documento de identidade do responsável (pai ou mãe) que for registrar a criança, certidão de casamento (se os pais forem casados), e um documento da maternidade onde a criança nasceu, denominado “Declaração de Nascidos Vivos”, indicando o nome da criança e dos pais biológicos. Se o parto foi feito em casa, deve-se levar duas testemunhas que atestem o parto domiciliar, as quais assinarão a documentação de registro. Esse procedimento é realizado para crianças de até 11 anos, e para crianças acima desta idade o registro só é feito mediante autorização judicial8. Assim, para uma pessoa registrar ilegalmente uma criança de até 11 anos, ou seja, registrá-la como seu filho biológico, mesmo a criança não o sendo, é necessário apenas levar duas testemunhas que declarem falsamente a ocorrência de parto domiciliar.

A realização de registro civil falso, por exemplo, o de uma criança, pode fazer com que a pessoa seja objeto de ação civil pública que vise à anulação do ato jurídico (Abreu, 2002). Além disso, de acordo com o artigo 242 do Código Penal Brasileiro, é crime “dar parto alheio como próprio, registrar como seu o filho de outrem, ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando o direito inerente ao estado civil”, tendo por pena “reclusão, de dois a seis anos”. Porém, de acordo com o Código Penal, “se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza”, a pena é a “detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena”. Caso seja concedido o perdão judicial, o ato jurídico nem fica registrado, de modo que o autor não perderia o direito de ser considerado réu primário em um eventual crime futuro. Ou seja, a adoção ilegal é considerada crime de acordo com a legislação brasileira, mas a própria lei é permissiva com quem o comete, podendo a pessoa não sofrer qualquer tipo de penalização. Segundo Abreu (2002), é um crime privilegiado, pois conta com uma condição atenuante, e acaba sendo incentivado na ausência da aplicação da lei, pois quem o comete será perdoado. O fato é que

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Informações obtidas no Cartório Sarlo, com endereço na Avenida Nossa Senhora da Penha, n.º 595, Praia do Canto, Vitória-ES, em 11/01/2005.

muitos não conseguem perceber essa prática como um crime, e sim como uma ação para apressar a adoção, como um ato nobre, caridoso, motivado pelo desejo de salvar a criança. Assim, as punições do Código Penal acabam não tendo força social nem jurídica no que se refere às adoções ilegais, e isso tudo parece revelador dos esquemas de percepção e ação postos em prática pela sociedade brasileira no que diz respeito ao assunto. Em uma declaração feita à revista Época (23/08/04) sobre adoções ilegais, numa reportagem de autoria de Mendonça e Fernandes (2004), o próprio juiz da Primeira Vara da Infância e da Juventude do Rio de Janeiro afirmou: “... quem vier aqui (ao Juizado) e confessar esse crime tem a situação regularizada e o perdão da Justiça” (p.99).

Por outro lado, a legislação é extremamente rígida no que se refere à prescrição do crime de falsificação de registro civil, pois, segundo o Código Penal, a prescrição se dá após um período de 10 anos, mas só começa a correr a partir da data em que o fato se tornou conhecido (artigo 111). Ou seja, o crime não começa a prescrever antes que uma autoridade tome ciência do caso, o que garante, ao menos temporalmente, a possibilidade de punição do autor pela justiça.

Abreu (2002) afirma que muitos operadores do direito não conhecem com exatidão a lei que rege e pune a adoção à brasileira. Juizes e técnicos do juizado desconhecem este crime e sua tipificação, seus efeitos e mesmo seus detalhes, como, por exemplo, a particularidade da lei no que se refere à prescrição.

Segundo Fu I e Matarazzo (2001), a prática de adoção sem registro judicial é um procedimento comum no Brasil. Não se sabe ao certo o número real de adotantes ilegais no país, talvez devido à característica cultural do povo brasileiro em diferenciar pouco os procedimentos legal e ilegal da adoção, e também à despreocupação dos governantes em investir num cadastro que inclua as adoções ilegais.

De acordo com alguns juízes, estima-se que a proporção varia de 80 a 90% do total das adoções realizadas no Brasil, o que foi confirmado em alguns debates entre membros do Judiciário, técnicos e militantes de grupos de apoio à adoção (Abreu, 2002).

Apesar das incertezas dos números, tudo indica que essa proporção era maior ainda no passado. Segundo Abreu (2002), antigamente os cartórios não eram obrigados a exigir um documento da maternidade indicando o nome da criança e da mãe biológica para que o bebê pudesse ser registrado. As adoções à brasileira se

realizavam muitas vezes com a cumplicidade dos responsáveis pela execução das adoções legais, e com a cumplicidade da sociedade. As ilegalidades ocorriam dentro dos próprios juizados (destruição de documentos, entrega de guarda a pais não cadastrados, entre outros), com o apoio, a cumplicidade, e mesmo a participação ativa dos juízes e técnicos do juizado. Além disso, algumas adoções legais (a Adoção Simples e a regida pelo Código Civil) não garantiam ao filho adotivo os mesmos direitos do filho legítimo, e após uma adoção legal, no registro de filiação constava o termo “adotado”, o que era visto com maus olhos pelos pais adotivos pois era motivo de discriminação. Essas distinções foram abolidas em 1990 com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente, o que tenderia a facilitar o uso da adoção legal e a diminuir as adoções à brasileira. Porém, outros fenômenos continuam servindo de barreira à adoção legal, como a morosidade da Justiça, e o fato de esta parecer, tanto para quem doa como para quem adota uma criança, um poder ineficaz (Abreu, 2002).

Weber (1999) aponta alguns dos motivos que podem levar as pessoas que querem adotar a romper com o sistema oficial de adoção: as pessoas em geral acham que as adoções realizadas através dos Juizados são demoradas, discriminatórias e burocráticas; alguns não confiam nos sistemas legais de adoção, são imediatistas e não se conformam em ficar na lista de espera no momento em que decidem adotar; o fato de a adoção ser controlada pelos técnicos do Juizado às vezes é visto como uma invasão de privacidade; e o tempo estabelecido para a guarda da criança antes da adoção muitas vezes é visto pelos adotantes como traumático, porque eles não sabem se ficarão ou não com a criança.

Para as pessoas que resolvem romper com o sistema oficial de adoção existem os intermediários, que são geralmente mulheres “caridosas” que indicam ou arranjam bebês para pessoas que querem adotar, profissionais de saúde como médicos e enfermeiras, e às vezes os próprios serviços assistenciais e judiciais e as maternidades, que oferecem dinheiro para a mãe biológica para que seu filho seja inscrito como filho legítimo da pessoa ou casal adotante (Weber, 1999).

De acordo com Abreu (2002), as próprias mães biológicas preferem agir pessoalmente quando querem entregar um filho para adoção, sem a interferência da justiça. Parece que o fato de ter um contato pessoal com o mediador ou com os pais adotivos é mais reconfortante para essas mães do que entregar a criança para o anonimato e a impessoalidade estatal, dando a sensação de que não entregou o

filho para qualquer um, de que sabe quem vai criá-lo e de que vão cuidar bem dele. O Estado, como mediador de adoções, não parece a essas mães uma entidade suficientemente consistente e confiável para a qual a criança pudesse ser entregue.