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Breve exposição de aspectos históricos

1.16. Algumas questões adicionais sobre família

1.16.1. Breve exposição de aspectos históricos

O modelo de família nuclear conjugal desenvolveu-se como ideologia hegemônica na modernidade. Ao fazer uma análise do desenvolvimento das relações familiares nas sociedades ocidentais, Ponciano e Féres-Carneiro (2003) afirmam que antigamente essas relações perdiam-se em meio a uma ampla comunidade, e incluíam pai, mãe, filhos, parentes, agregados, vizinhos, amigos, entre outros. As relações familiares eram permeadas por relações comunitárias, de modo que a família e a sociedade confundiam-se. O indivíduo perdia sua visibilidade em meio às relações, e a hierarquia ditava as regras familiares. Todos os membros do grupo familiar deviam obediência e respeito ao pai, que os deveria proteger, vigiar e corrigir. A concepção de família predominante era a de linhagem, compreendida como solidariedade estendida a todos os descendentes de um mesmo ancestral, não levando em conta os valores da coabitação e da intimidade.

No fim do século XVII e início do XVIII ocorreu na Europa uma mudança social marcante nas características da criança e da família e em sua interação. A família tornou-se um lugar de afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, e passou a se organizar em torno da criança, em função da importância que passou a ser atribuída à sua educação. A família recolheu-se da rua, da praça, da vida coletiva em que antes se encontrava, para a intimidade, fazendo desaparecer a antiga sociabilidade. Assim, paulatinamente através dos séculos, o valor social da linhagem foi transferindo-se para a família conjugal (Ariès, 1981).

Dessa forma, de acordo com Ponciano e Féres-Carneiro (2003), percebe-se na modernidade uma mudança na relação entre a família e a comunidade circundante, de modo que os laços entre os membros da família reforçaram-se. A família, afastando-se cada vez mais da noção ampla de linhagem, foi se firmando num modelo nuclear, fundado no biológico, na união heterossexual e na procriação.

Esse modelo, vinculado ao aburguesamento e à industrialização das grandes cidades, é pautado ainda na intimidade, na privacidade e no isolamento, tornando-se fechado à sociabilidade pública.

A partir do século XVIII os jovens começaram a considerar os sentimentos para a escolha do cônjuge, desvalorizando aspectos exteriores como propriedade e desejo dos pais. As transformações econômicas, advindas da Revolução Industrial, permitiram as condições materiais necessárias para uma liberação da escolha conjugal, que não ameaçava mais o patrimônio familiar. Mas, apenas no século XIX o casamento por amor foi defendido abertamente (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003). Segundo Vaitsman (1994), o desenvolvimento da família conjugal moderna, fundada no casamento por livre escolha, ocorreu simultaneamente a uma reformulação dos papéis de homens e mulheres no casamento, criando novos modelos de comportamentos masculinos e femininos.

Na família nuclear o casal assume maior centralidade, e tem a função de constituir um núcleo em torno dos filhos. A família assumiu uma função moral e espiritual, e passou a ser o agente ao qual a sociedade confiou a tarefa de transmissão da cultura. As crianças, que passaram a ocupar o lugar central nessa família, são de responsabilidade dos pais, e à mulher coube a tarefa de criar seus filhos, de ser companheira do seu marido e de executar as tarefas domésticas (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003).

Nos primórdios da industrialização, segundo Vaitsman (1994), muitas mulheres integraram-se às atividades industriais, mas posteriormente, muitas empresas que utilizavam a produção doméstica das mulheres foram suplantadas pela produção fabril, o que significou paulatinamente a substituição do trabalho feminino pelo masculino. Assim, a industrialização provocou uma queda da participação feminina na força de trabalho, acarretando um processo de privatização da mulher no mundo da família. Ao ser privatizado na família, o trabalho doméstico não remunerado da dona de casa tornou-se invisível, e essa privatização, que segundo Vaitsman (1994) foi política, cultural e legal, trouxe implicações para o modo como as mulheres foram se definindo e sendo definidas na ordem moderna patriarcal. Passou a ser difundido um discurso que se tornou dominante sobre as características próprias da natureza de cada sexo, de modo que os papéis familiares eram atribuídos e normalizados segundo o gênero: era da natureza feminina

realizar-se como mãe e esposa devotada, e da masculina realizar-se como pai, responsável pela provisão material e moral da família.

As relações familiares, antes reguladas pela hierarquia, passaram a sofrer intervenção do Estado, em aliança com especialistas da área de saúde. O saber médico-psicológico passou a prescrever as normas de comportamento de todos os membros da família, de modo que sua liberdade tornou-se restrita (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003). De acordo com Vaitsman (1994), o relacionamento familiar começou a modificar-se mediante a difusão de normas da disciplina médico- higiênica, pois a partir de então o discurso médico passou a exigir a superação da separação entre sexo e amor, e a integração desses dois elementos dentro do casamento. A sexualidade e o amor entre homem e mulher no casamento transformaram-se em normas de saúde.

É interessante ressaltar que, segundo Vaitsman (1994), o padrão de família conjugal patriarcal na verdade jamais se generalizou no conjunto da sociedade ocidental, mas se difundiu como ideal de comportamento e papéis sexuais. Segundo Romanelli (2002), apesar da família nuclear conjugal ter se firmado como modelo hegemônico na modernidade, as formas de sociabilidade familiar nem sempre se adequaram inteiramente a esse modelo, pois o modo como as características modelares se articulavam entre si dependia da camada social e do repertório cultural das famílias.

A domesticação da mulher fez surgir aspirações de crescimento pessoal feminino, e a partir dos anos 70 consolida-se o movimento feminista, que foi uma das principais fontes de questionamento e transformação para a família. O movimento feminista gerou uma crise do modelo conjugal hegemônico desde o fim do século XIX, e a partir dos debates advindos desse movimento, uma nova revolução sexual realizou-se na sociedade, de modo que situações de recasamento e de “casais” homossexuais passaram a tornar-se visíveis (Ponciano e Féres- Carneiro, 2003).

O movimento feminista reivindicava relações igualitárias entre homens e mulheres, e a autoridade patriarcal, até então reforçada pela comunidade, tornou-se intolerável. Os valores conjugais, antes baseados na fidelidade, na cadeia de gerações e na responsabilidade perante a comunidade, passam a basear-se primordialmente na felicidade pessoal, no autodesenvolvimento e no desejo de ser livre para desenvolver a própria personalidade e realizar as ambições pessoais

(Ponciano e Féres-Carneiro, 2003). As mulheres, de forma cada vez mais maciça, foram invadindo os domínios da política, da cultura e das atividades profissionais, redefinindo a divisão sexual do trabalho e desafiando o modelo patriarcal (Vaitsman, 1994).

Assim, segundo Costa e Rossetti-Ferreira (2004), os movimentos sociais das décadas de 60 e 70, associados às mudanças no âmbito econômico e tecnológico, promoveram intensas transformações não apenas no cenário político-econômico mundial, mas também modificaram as relações entre os gêneros, as relações familiares, redefinindo papéis sexuais e funções atribuídas aos sexos. As expressões de masculinidade e feminilidade foram questionadas, repensadas, ressignificadas e mutuamente configuradas a partir das práticas sociais.

Com a crescente democratização das relações, advindas com a própria modernização, a família foi contaminada por valores democráticos, baseando-se na comunicação livre e aberta e no diálogo. A imposição modelar da família nuclear moderna não pôde mais ser controlada, já que era advogado o direito à livre escolha. Construiu-se a possibilidade de não se seguir um modelo único, tal qual o da família conjugal, e passaram a ganhar visibilidade inúmeras formas de configurações familiares: uniões conjugais sem vínculos legais, famílias monoparentais (caracterizados pela presença do pai com filhos ou da mãe com filhos, contando ou não com outros parentes habitando conjuntamente), famílias compostas por homossexuais e seus filhos, entre outras (Berquó, 1998). Mas, apesar de o modelo de família nuclear ter sido questionado, as configurações familiares atuais têm preservado algumas de suas características, como a intimidade e a privacidade (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003).

Assim, na atualidade, a família tende cada vez mais a ser pautada na idéia da diversidade e da ausência de um parâmetro norteador único. O estabelecimento de um modelo fixo já não se mantém, pois se estabelece a diversidade como valor fundamental. No plano teórico, percebe-se uma dificuldade de se buscar uma definição exclusiva de família, de modo que a literatura refuta a busca de uma estrutura familiar universal (Ponciano e Féres-Carneiro, 2003).