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CAPÍTULO 1. ARTICULAÇÕES TEÓRICO METODOLÓGICAS

1.6 AFETO COMO PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO

O afeto é uma categoria central para a presente dissertação, não somente como articulador do problema de pesquisa, mas também como fundamento para a construção teórica do percurso metodológico. Partimos da ideia de um corpo spinozano, onde o racional não está separado do corporal. A separação cartesiana acaba por hierarquizar, sempre colocando o corpo como inferior perante a mente racional. Para Spinoza, a alma e o corpo são atributos da

mesma substância e, desta forma, portanto, corpo e alma são passivos ou ativos de forma conjunta. Para Spinoza o ser humano é um animal afetivo além de racional. Afeto, para esse autor, é tudo aquilo que mexe com as pessoas (tanto no sentido negativo quanto positivo), o que as move, o que altera a sua potência de agir, sendo um corpo tanto mais potente quanto é capaz de sofrer afetações. O afeto diminui ou aumenta nossa potência para agir, uma vez que pensamento e alma são funções do corpo determinadas pelas afecções corporais.

Está claro que poderíamos dedicar toda dissertação à reflexão sobre os afetos segundo Spinoza. No entanto, este é um trabalho ancorado no campo da comunicação. Como bem relatam Baccega e Peres-Neto (2013) a interdisciplinaridade no campo da comunicação é um exercicio intelectual que permite ao pesquisador buscar, em áreas correlatas, ideias e conceitos que serão vistos e trabalhados a partir das lentes epistêmicas próprias do campo da comunicação. Ainda que de maneira resumida, essas ideias de Spinoza pautaram uma primeira reflexão sobre os afetos e como, neste trabalho, poderíamos articulá-lo.

As imagens possuem um enorme potencial para o afeto. Rose Rocha (2010) relaciona o consumo de imagens com a teoria das afecções de Spinoza, colocando a questão se imagens de violência aumentariam ou diminuiriam nossa potência de agir. A partir de Spinoza e Rocha gostaríamos de pensar os afetos engajados no consumo de pornografia.

Não seria demais afirmar, portanto – e neste caso não estou senão tomada por inspirações de Spinoza (2008) – que podemos desejar ou repugnar com intensidade as representações. Podemos ir além: somos, em nosso indissociável vínculo corpo/mente, capazes de desejar com fervor imagens de coisas e obviamente imagens de nós mesmos. O mito de Narciso apenas confirmaria um dos planos das paixões auto-encantatórias e, por vezes, os sedutores desvios do “auto-engano”. (ROCHA, 2010, p. 202)

A separação cartesiana entre corpo e mente acaba por gerar uma hierarquia que pode ser percebida também imagética ou artisticamente. Artisticamente, no sentido de uma divisão entre pornográfico e erótico, que será explorada no próximo capítulo; imageticamente, por sua vez, no sentido em que os filmes voltados para os chamados “gêneros corporais” como a comédia, o terror e a pornografia teriam menos valor cultural que os filmes dramáticos.

Chegar a um acordo sobre a pornografia não significa gostar, aprovar ou ser despertado por ela - embora essas reações também não sejam impedidas. Em vez disso, significa reconhecer que, apesar do apelo quase visceral da pornografia ao corpo - sua capacidade, como Richard Dyer (1985, 27) coloca, de "mover" o corpo ou, nas palavras de Annette Kuhn (1985, 21), provocar reações "viscerais" - não é o único gênero que provoca essas reações corporais "automáticas". Dyer observa que outros gêneros de filmes destinados a mover o corpo, como thrillers, weepies e baixa comédia, também não têm sido reconhecidos como fenômenos culturais. Arrepios,

lágrimas, risos e excitação podem ocorrer, podem parecer reflexos, mas todos são culturalmente mediados. (WILLIAMS,1989 ,p.5)11

A presente dissertação busca compreender a relação entre corpo e imagem pornográfica, os afetos mobilizados a partir do consumo pornográfico. A partir de entrevistas com mulheres que consomem pornografia. O consumo de pornografia é uma experiência corporal, é uma imagem pensada para causar reações físicas nas pessoas que as consomem. A despeito disso - ou precisamente por isso, se considerarmos as reações do corpo/mente como uníssonas - como detalharemos mais adiante, em boa parte das entrevistas realizadas, existiram longas pausas. Apesar de mobilizar sentidos e afetações, muitas das entrevistadas verbalizaram com cautela os afetos dos filmes pornográficos.

Isso nos remeteu a alguns dos pressupostos de Donna Haraway (1995) acerca da pornografia em tanto que um saber localizado e corporificado. As formas de conhecimento também são construções sociais e como tais estão sujeitas a negociações de poder assimétricas. Haraway propõe dessa forma um saber localizado em que assumimos a posição que ocupamos diante do objeto.

Precisamos aprender em nossos corpos, dotados das cores e da visão estereoscópica dos primatas, como vincular o objetivo aos nossos instrumentos teóricos e políticos de modo a nomear onde estamos e onde não estamos, nas dimensões do espaço mental e físico que mal sabemos como nomear. Assim, de modo não muito perverso, a objetividade revela-se como algo que diz respeito à corporificação específica e particular e não, definitivamente, como algo a respeito da falsa visão que promete transcendência de todos os limites e responsabilidades. A moral é simples:

apenas a perspectiva parcial promete visão objetiva. Esta é uma visão objetiva que abre, e não fecha, a questão da responsabilidade pela geração de todas as práticas visuais. A perspectiva parcial pode ser responsabilizada tanto pelas suas promessas quanto por seus monstros destrutivos. Todas as narrativas culturais ocidentais a respeito da objetividade são alegorias das ideologias das relações sobre o que chamamos de corpo e mente, sobre distância e responsabilidade, embutidas na questão da ciência para o feminismo. A objetividade feminista trata da localização limitada e do conhecimento localizado, não da transcendência e da divisão entre sujeito e objeto. Desse modo podemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver.

(HARAWAY, 1995, p.21)

11 No original: “Coming to terms with pornography does not mean liking, approving of, or being aroused by it- though these reactions are not precluded either. Rather, it means acknowledging that despite pornography'salmost visceral appeal to the body- its ability, as Richard Dyer (1985, 27) puts it, to "move" the body or, in Annette Kuhn's words (1985, 21), to elicit "gut" reactions-it is not the only genre to elicit such

"automatic" bodily reactions. Dyer notes that other film genres aimed at moving the body, such as thrillers, weepies, and low comedy, have been almost as slow to be recognized as cultural phenomena. Goose bumps, tears, laughter, and arousal may occur, may seem like reflexes, but they are all culturally mediated.”

A epistemologia proposta por Haraway (1995) em que “a racionalidade é simplesmente impossível, uma ilusão de ótica projetada de maneira abrangente a partir de lugar nenhum” (p.28) converge em alguns pontos com a proposta por Favret-Saada (2005). A última autora narra sua experiência em campo ao investigar a feitiçaria no Bocage francês, propondo uma nova forma metodológica de interagir em campo, uma em que ela se permite ser afetada. Transformando suas sensações em objeto empírico.

Ora, eu estava justamente no lugar do nativo, agitada pelas “sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali se passa é literalmente inimaginável, sobretudo para um etnógrafo, habituado a trabalhar com representações:

quando se está em um tal lugar, é-se bombardeado por intensidades específicas (chamemo-las de afetos), que geralmente não são significáveis.

Esse lugar e as intensidades que lhe são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de aproximá-los. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159)

Tal metodologia permite uma simetria entre a pesquisadora e as pessoas estudadas. A categoria afeto surge em oposição ao dualismo crença e razão.

Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 160)

Haraway e Favret-Saada propõem um projeto para o conhecimento que reconhece o papel ativo da pesquisadora, numa tentativa de permitir uma relação mais simétrica de pesquisa. Dessa forma gostaríamos de pensar as entrevistas realizadas como um encontro, onde uma mulher que consome pornografia conversa com outras mulheres sobre pornografia.

Não nego que o material pornográfico também me afeta, não gostaria de tornar minha dissertação em uma “aventura pessoal” em que exerço meu narcisismo, mas penso que negá-las em nome de uma imparcialidade inatingível não me torna mais objetiva, só ignora dados ou sensações que podem auxiliar a compreender melhor as afetações provocadas pela imagem pornográfica, é neste contexto em que minhas experiências aparecem relatadas no texto embaralhadas com a das outras entrevistadas.

CAPÍTULO 2. ATRAVESSAMENTOS COMUNICACIONAIS E POLÍTICOS DA

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