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2.3 A AGENDA POLÍTICA FEMINISTA

2.3.1 Agenda feminista brasileira

O ativismo político de gênero teve, no Brasil, um marco de crescimento com a redemocratização iniciada na década de 1980, momento em que as questões de igualdade e democracia passaram a fazer parte da agenda de partidos e governos (ALMEIDA, 2007; BANDEIRA, 2009; BLAY, 1994; TABAK, 1983). Nesse sentido, a internalização de uma concepção de Estado como ente protetivo (ARTICULAÇÃO DE MULHERES BRASILEIRAS, 2011; BLAY, 2003; IZUMINO, 2004) fez com que no decorrer das quatro últimas décadas fossem criadas expectativas referentes à efetivação de ações quanto à garantia de igualdade e segurança jurídica preconizadas na Constituição de 198814, que se somam ao desenvolvimento de uma rede

assistencial focada na identificação, no acolhimento e no tratamento da violência como questão de Estado.

Ao perscrutar as concepções sociopolíticas que exerceram influência no feminismo brasileiro, é possível detectar como o projeto de democratização articulado pelas instituições não governamentais e por intelectuais resultou na gradativa inserção das mulheres nas esferas públicas. A esse respeito, no século XX, emergem desde as ações da baiana Leolinda Daltro, com a criação em 1910 do Partido Republicano

Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos; Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos sobre a Mulher e Relações de Gênero; SOS Corpo; Themis.

14 Observe-se o texto constitucional: Constituição Federal, artigo 3º, IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação; Art. 5º, I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

Feminista, passando pela atuação de Bertha Lutz e do movimento sufragista na década de 1920 até o presente. No que toca às lutas do movimento feminista, envolvem múltiplas contestações, a exemplo da luta pelos direitos políticos (COSTA, 2005; GOLDBERG, 1989; MURARO, 1999; PINTO, 2003), por mais acesso ao sistema educacional, igualdade de oportunidades no mercado de trabalho, políticas específicas de saúde e proteção contra a violência, passando por reivindicações relativas à segurança jurídica para o caso de interrupção da gravidez (MACHADO, 2010; PORTO, 2009).

Ademais, o movimento feminista atuou em sintonia com outros movimentos sociais em articulações voltadas à redemocratização do Estado brasileiro (luta pela anistia e abertura política), que tiveram lugar nas décadas de 1970 e 1980, e que acarretaram metamorfoses nas instituições públicas para que, gradativamente, modificassem os paradigmas de interação entre sociedade civil e Estado (AVRITZER, 2002; COSTA, 2005). Com o fim da ditadura militar houve uma transformação do cenário político no país, o que consolidou lideranças, reativou a atuação de movimentos sociais e de outras organizações da sociedade civil. Esse novo cenário permitiu que o movimento feminista ganhasse relevância ao empreender interlocuções junto ao Estado, de modo a reivindicar o atendimento a demandas específicas das mulheres que eram consideradas, até então, pertinentes ao âmbito da vida privada.

Em relação à eclosão de experiências de participação social, tem servido como meio de expressar reivindicações para estabelecer estima social (HONNETH, 2009) e como base para influenciar a agenda pública. Assim, foram postos em evidência não apenas os limites do Estado em superar as desigualdades presentes mas também, e de maneira mais significativa, foi ampliada a visibilidade das lutas por reconhecimento (SANTOS, 2007).

Por sua vez, o espaço de inclusão social das mulheres nos mecanismos de poder, bem como a sua efetiva participação na atuação política, tem se apresentado como um tema de grande relevância para a compreensão dos limites e possibilidades da igualdade de gênero. Adicionalmente, com as transformações no cenário global, a política feminista tem sido lançada a operar em espaços transnacionais.

A começar pelo direito ao sufrágio até as medidas protetivas (ALMEIDA, 2007), com um reenquadramento dos atores institucionais para se atingir a justiça de gênero (FRASER, 2007), tem se buscado uma transformação do “espírito de Estado”

(BOURDIEU, 1996), o que propiciou que fossem criadas expectativas acerca da efetivação de ações quanto à garantia da segurança jurídica nos espaços locais. Nesse sentido, o movimento feminista tem conduzido um processo de constituição de mentalidades para uma nova concepção de democracia representativa (BANDEIRA, 2009; BLAY, 2003; FERREIRA, 2004; IZUMINO, 2004), com desdobramentos significativos na forma de adjudicação de direitos. Como exemplo da influência do lobby do batom quando da Assembleia Nacional Constituinte, temos os reflexos na Constituição Federal de 1988 que, no Artigo 226, parágrafo 8º, assegura “a assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência, no âmbito de suas relações”. Desse modo, o Estado incorporou a responsabilidade de garantir o gozo da condição de cidadania com o afastamento da violência doméstica e sexual.

No que diz respeito às lutas por reconhecimento (HONNET, 2009), articuladas nesse prisma pelas vozes e ações de feministas brasileiras, tornaram-se instrumentos para questionar a lógica hegemônica que estabelece assimétricos papéis de gênero (SCOTT, 1995) no Brasil. Essas lutas são contingentes em contextos históricos, portanto, transformam-se ao longo do tempo.

Ademais, cumpre observar que, travadas nas esferas públicas, essas lutas têm a capacidade de dar suporte ao processo democrático por meio de uma crítica vigorosa que dá voz ao dissenso. A esse respeito, Iris Young (1990, 2000) argumenta que a crítica, frequentemente baseada em pressões para mudar políticas públicas, tem o papel de fomentar novas práticas sociais, bem como de criar perspectivas relativas à compreensão de como o Estado pode estabelecer justiça social.

Quanto à incorporação das demandas públicas na agenda política, depende da constituição de agentes que irão formar uma base de hegemonia (LACLAU; MOUFFE, 1987; MOUFFE, 2005, 2011) capaz de organizar valores e ideologias para direcionar a condução de um projeto político. Isso implica uma intervenção direta desses agentes sociais, com base em mobilizações de interesses que irão sustentar a ação política e farão parte da agenda governamental como formas de oportunidades políticas (TARROW, 2009). É nesse sentido que o movimento feminista tem contribuído na construção de demandas voltadas para a constituição de agendas que se transformam em políticas públicas, desdobradas em planos, programas e projetos.

Ao se argumentar em favor da incondicionalidade da igualdade como instrumento voltado a trazer estabilidade às relações sociais, foi reforçada a

internalização da noção de segurança jurídica, por meio do aparato legal e institucional do Estado (ÁVILA, 2012; GÜNTHER, 2009). Esse aspecto implica levar em conta que a cidadania está sustentada na pressuposição de uma prática política propensa a requerer o cumprimento de normas jurídicas preestabelecidas, exprimir as carências dos sujeitos de direitos e pronunciar novos direitos (FERNÁNDEZ; BARRIENTOS, 2000).

Conforme assevera Celi Pinto (2003), existe agora uma terceira onda do feminismo, caracterizada por um “feminismo difuso”, com foco nos processos de institucionalização, na discussão das diferenças entre as mulheres e das novas formas de organizar-se coletivamente (MATOS, 2010). Por conseguinte, o feminismo toma novas dimensões com a expansão dos espaços de articulação da política feminista, o que provoca o aumento da visibilidade e sentido de outras variadas identidades, quais sejam: feminismo popular, movimento lésbico, movimento negro, organização das mulheres sindicalistas e das trabalhadoras rurais (FUNCK, 2014).

Em outros termos, são lutas por reconhecimento e/ou distribuição que servem para reformular ou, minimamente, chamar a atenção para que o Estado não reproduza injustiças (PINTO, 2008), bem como para produzir uma base social de legitimidade para orientar e validar as práticas sociais, como acumulação de um capital simbólico de reconhecimento (BOURDIEU, 1987, 2001b). Dessa maneira, a luta política feminista é uma luta cognitiva por legitimidade. Façamos agora um parêntesis para discutir a trajetória da mulher na legislação brasileira.