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De caráter indutivo e inspiração fenomenológica (HUSSERL, 1980; SMITH; SMITH, 1998), a técnica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC) busca a identificação de representações sociais dos agentes em suas práticas sociais enquanto esquemas sociocognitivos. Trata de possibilitar uma ‘re-produção’ dos atos de fala dispersos em uma coletividade pela sua agregação e categorização. Para tanto, essa técnica serve- se de instrumentos de pesquisa que permitem a análise de conteúdo do discurso enquanto substrato empírico que articula o plano individual com o coletivo (LEFEVRE; LEFEVRE; MARQUES, 2009; LEFEVRE; LEFEVRE, 2010a). Em que pese outras opções metodológicas estejam disponíveis e possam ser consideradas em uma pesquisa dessa natureza, a opção pelo DSC decorreu em grande medida, dentre outros motivos, em função da necessidade de preservação total do sigilo acerca da identidade dos entrevistados, a que essa técnica se presta muito bem. A preocupação se justifica especialmente quanto a possíveis implicações para obtenção de relatos dos operadores do sistema de justiça, já que são servidores públicos de carreira e a mera possibilidade de identificação os levaria a negar-se a participar da pesquisa.

O DSC se destina a atender a necessidade de trazer à luz representações sociais enquanto forma de autoexpressão de uma coletividade, de modo a capturar as múltiplas dimensões que lhe são constitutivas. O que permite apreender o habitus (BOURDIEU, 2004 a), as estruturais mentais que a totalidade das falas dos entrevistados carrega, mesmo que de forma sub-reptícia para os indivíduos em particular. Dessa maneira, justifica-se a sua inclusão no conjunto de reflexões e abordagens destinadas a atender temáticas complexas nas mais variadas áreas do conhecimento37.

Para a coleta de dados, são realizadas entrevistas semiestruturadas a partir de questões temáticas que permitam a interlocução entre entrevistador e entrevistados. Digno de nota é o modo de elaboração das perguntas, que deve permitir um duplo

37 Para aprofundamento sobre a natureza da técnica e exemplos de sua utilização, consultar: Clementino, 2013; Lefevre; Lefevre, 2006, 2010a; Lefevre; Crestana; Cornetta, 2003; Lefevre; Lefevre; Marques, 2009; Massa, 2006.

movimento por parte dos entrevistados: a resposta ao que está sendo investigado e o resgate da linguagem e do pensamento das ações do mundo cotidiano.

Quanto aos procedimentos relativos à análise de dados objeto da investigação, o objetivo é identificar as diversas categorias que agregam em eixos comuns os discursos dos entrevistados. Na sua aplicação, é possível utilizar os seguintes operadores/operações:

1. Expressões-Chave (E-CH); 2. Ideias Centrais (ICs); 3. Ancoragens (ACs);

4. Discursos do Sujeito Coletivo (DSCs).

No que diz respeito ao procedimento de coleta de dados, requer o levantamento dos discursos individuais obtidos por meio de entrevistas em que são posteriormente selecionadas as Expressões-Chave, isto é, os segmentos de cada depoimento que melhor descrevem o conteúdo. A partir daí, são identificadas as Ideias Centrais e Ancoragens que os agrupam, especificadas como fórmulas de sintetização que denotam sentido semelhante ou complementar (LEFEVRE; LEFEVRE, 2005, 2010b). Desse modo, expressam uma soma qualitativa dos discursos individuais.

Com base nas operações anteriormente descritas, efetua-se a análise das sínteses obtidas, por meio das quais é possível obter informações qualitativas sobre as representações sociais da coletividade. Esse é o objetivo geral da análise. No processo de elaboração do Discurso do Sujeito Coletivo, cada categoria, ao ser congregada pelo pesquisador em um conjunto de opiniões a partir dessas E-CHs e ACs semelhantes, desdobra-se em um discurso coletivo, composto na primeira pessoa do singular para demarcar a presença de enunciação do pensamento coletivo na pessoa do Sujeito Coletivo de Discurso.

Quanto ao volume de relatos contabilizados, refere-se ao percentual de extratos de respostas que é aglutinado para a constituição de um discurso, formado do desdobramento de uma ideia em seus conteúdos e argumentos correspondentes. Desse modo, evidencia a força (intensidade) e o grau de espalhamento (amplitude) de uma categoria no grupo social.

Para viabilizar o tratamento dos dados, é utilizado o Programa Qualiquantsoft, software elaborado pela Sales e Paschoal Informática, fruto de parceria com a Universidade de São Paulo (USP), a Faculdade de Saúde Pública e os professores

Fernando Lefevre e Ana Maria Lefevre, seus criadores. Trata-se, portanto, de um recurso para a análise quali-quantitativa em tela, qual seja, as representações sociais relativas à aplicação da Lei da Maria da Penha pelo sistema de justiça criminal.

No intuito de viabilizar a coleta de dados, foram estabelecidas perguntas com seus respectivos objetivos, conforme descrito a seguir.

Objetivo 1: Apreender a visão de ativistas do movimento de mulheres e de operadores do sistema de justiça criminal sobre o amparo legal e institucional voltado às mulheres em situação de violência doméstica.

Pergunta 1: Como você vê as leis e os programas que visam à proteção das mulheres em situação de violência doméstica?

Objetivo 2: Conhecer o modo de apropriação das práticas do sistema de justiça. Pergunta 2: Quando solicitado, como se dá o funcionamento do sistema de justiça? Objetivo 3: Conhecer as expectativas relativas ao cumprimento da Lei Maria da Penha.

Pergunta 3: Justiça para mulheres em situação de violência doméstica, como você definiria?

3.5.1 Definição da amostra e mecanismos de coleta de dados

Tomando como ponto de partida o tratamento de dados bibliográficos, foi realizada a caracterização preliminar do cenário, com posterior realização de entrevistas semiestruturadas, de modo a apreender a dinâmica social instalada e, assim, delinear as representações sociais relativamente à compreensão quanto à efetividade dos procedimentos e encaminhamento para esferas institucionais no âmbito do campo jurídico, no que concerne às ocorrências de violência contra mulheres.

O período de realização da pesquisa foi compreendido entre 06 de março de 2013 a 28 de junho de 2014. A entrada no campo foi realizada a partir do contato com as representantes dos Conselhos de Defesa dos Direitos da Mulher do polo Juazeiro/BA-Petrolina/PE e de ativistas feministas que se predispuseram a colaborar com a execução da pesquisa. Já o acesso às instituições do sistema de justiça foi disponibilizado por: delegadas de polícia titulares das delegacias especializada para atendimento às mulheres de Juazeiro/BA e de Petrolina/PE; administração do Ministério Público de Petrolina/PE; juízes titulares tanto da 2ª Vara Crime de

Juazeiro/BA quanto das 1ª e 2ª Varas Crime de Petrolina/PE; comando das polícias militares do 5º Batalhão de Polícia Militar de Petrolina/PE e da 76ª Companhia da Polícia Militar de Juazeiro/BA.

Como instrumentos para coleta de dados, foram utilizados:

a) Caderno de campo – instrumento na forma escrita, usado para acompanhar a coleta de dados nas instituições, como recurso à memória de acontecimentos e também fixar reflexões durante a trajetória da investigação, o que permitiu a descrição densa de algumas das relações sociais observadas e relatadas. b) Entrevistas – As entrevistas foram gravadas (voz e imagem), com a

aquiescência expressa das pessoas abordadas, seguindo-se de transcrição literal dos depoimentos e leitura para apreensão dos aspectos gerais.

No tocante à estratégia de coleta de dados de campo, ocorreu de maneira multissituada (WACQUANT, 2006) da seguinte forma:

a) foram colhidos 72 depoimentos em amostra não probabilística (DIEHL; TATIM, 2004; SCHUTT, 2012) que foi selecionada pela representatividade em termos de vivência com a temática da violência de gênero, considerando-se o quadro institucional existente na região, qual seja: duas DEAMs, Casa Abrigo, três varas crime, conselho Centro Integrado de Assistência à Mulher – CIAM, Centro de Referência de Atendimento à Mulher – CRAM, conselhos municipais dos direitos das mulheres. Os dados para análise foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas (vide Apêndice), com aplicação simultânea em dois grupos:

 Ativistas feministas: 34 entrevistas;

 Operadores do sistema de justiça com atuação no sistema de justiça criminal: 38 entrevistas (amostra composta por delegadas(os) de polícia, juízes criminais, promotoras(es) públicos, advogadas(os), policiais e serventuárias(os)).

b) para a construção dos relatos etnográficos, foram realizadas entrevistas de profundidade e sessões de observação, com utilização de cadernos de campo. Além disso, para fins de preservação do sigilo sobre a identidade das pessoas entrevistadas, todos os nomes próprios utilizados são fictícios.

Nos capítulos a seguir será apresentada a descrição dos resultados obtidos e a análise correspondente.

4 CONSTRUIR O DIREITO, VIVER POLÍTICAS PÚBLICAS

Em âmbito mundial, são intentados discursos por meio de ações políticas articuladas por grupos feministas e organizações comprometidas com a promoção da igualdade social, que recorrem ao argumento de “direitos humanos das mulheres” para que sejam considerados os diversos contextos de sua inserção nas estruturas das nações, como é o caso das avaliações produzidas pela ONU Mulheres ou pelo consórcio permanente de movimentos de mulheres do Brasil para acompanhamento da implantação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW38. Contudo, as desejáveis homogeneidades

pensadas em termos globais em busca de igualdade para as mulheres são vividas nos espaços locais, em que estão em jogo identidades pessoais e estratégias de posicionamento nas interações no plano cotidiano.

Na polifonia do mundo social, ativistas feministas desempenham um papel no sentido de identificar necessidades, propor possibilidades de acesso e de modificações no espaço de práticas que limitam as mulheres nas relações sociais (BANDEIRA, 2009; DEBERT; GREGORI, 2008; MACHADO, 2010). São agentes sociais que se projetam para o campo jurídico (CAMPOS; CARVALHO, 2006; CAMPOS, 2011), com base na ação política, em busca de construir novas perspectivas para a supressão da posição subordinada da mulher.

O protagonismo feminista em suas variadas manifestações (SAFIOTTI, 1994, 1995; PINTO, 2003, 2012; YOUNG, 2000), indica que é justificável e legítimo querer modificar o sentido do jogo social, em que o papel da mulher, como objeto de subordinação (DELPHY, 2009), parece traduzir evidências históricas, incorporadas aos sistemas de disposições dos agentes, e nas expectativas e exigências de seus contextos do ponto de vista do senso comum. Ademais, feministas são uma espécie

38 O consórcio é formado pelas seguintes organizações: Coletivo Feminino Plural; Red Nacional Feminista de Salud, Derechos Sexuales y Derechos Reproductivos; Comité de América Latina y el Caribe para la Defensa de los Derechos de la Mujer - CLADEM/Brasil; Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM/UFRGS) Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras; Associação Casa da Mulher Catarina; Comissão de Cidadania e Reprodução; ECOS – Comunicação em Sexualidade; Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero; Instituto Brasileiro de Inovações pró-Sociedade Saudável/CO; Instituto Mulher pela Ação Integral à Saúde e Direitos Humanos (IMAIS); Plataforma DHESCA Brasil e THEMIS Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero. O último relatório foi elaborado em dezembro de 2013 e está disponível em: <http://monitoramentocedaw.com.br/documentos/cedaw>. Acesso em: 12 out. 2014.

de agentes de desconstrução e reconstrução de sentidos, que intentam esquemas cognitivos alternativos e confrontam o que é predominante como universo transcendente de significações nas relações hierarquizadas entre os sexos.

Este capítulo traz a perspectiva de ativistas feministas acerca da Lei Maria da Penha no polo Juazeiro/BA-Petrolina/PE, captada por meio da apreensão das suas representações sociais. Com isso, são demonstrados os resultados obtidos com o levantamento de campo a partir da coleta de depoimentos, em amostra não probabilística, que abrange membros dos conselhos municipais dos direitos das mulheres e de ativistas que se destacam pela sua liderança, articulação e tempo de atuação no movimento social por meio do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC).