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Capítulo 3. Conceito de Banalidade do Mal a partir de Hannah Arendt

3.7 Os agentes da Banalidade do Mal

Em Origens do Totalitarismo, Arendt ligou o declínio do estado-nação ao fenômeno do Imperialismo, dominante entre 1884 e 1914. O Imperialismo foi decorrência de uma inversão de valores que priorizou a economia sobre a política e correspondeu à primeira fase da “emancipação política da burguesia” ao se estender além das fronteiras nacionais. Segundo a autora, a “expansão pela expansão” deu-se “em nome de uma crescente economia que abraça o modelo da acumulação capitalista encarregada de um dinamismo infinito visando partilhar o planeta”67. O Totalitarismo representaria a culminação de um processo que iniciou com o Imperialismo e caminhou até a dissolução das sociedades nacionais em agregados de homens supérfluos.

Foi o que aconteceu na Alemanha e na Áustria após a Primeira Guerra Mundial, quando as consequências da derrota militar foram agravadas pela inflação e pelo desemprego.68 O dramático colapso do sistema de estratificação social e político das classes dos estados-nações européias resultou na desestruturação do sistema partidário, no caráter apolítico de suas populações e favoreceu a ascensão do nazismo. O colapso das classes transformou-as numa grande massa desorganizada e desestruturada de indivíduos furiosos, de homens insatisfeitos e desesperados que só possuíam em comum a vaga noção de que as

65 Hannah ARENDT, A Condição Humana, p. 147. 66 Ibid., p. 335.

67 Apud Nadia SOUKU, Hannah Arendt e a Banalidade do Mal, p. 50. 68 Cf. Hannah ARENDT, Origens do Totalitarismo, p 365 et seq..

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esperanças partidárias eram vãs. O homem de massa da Europa passou a se avaliar em termos de fracasso, o que lhe provocava amargura egocêntrica e lhe enfraquecia o instinto de autoconservação. A consciência da própria não importância e dispensabilidade tornaram-se um fenômeno geral, com perda do interesse em si mesmo, indiferença cínica ou enfastiada diante da morte, inclinação apaixonada por noções abstratas e desprezo geral pelas óbvias regras do bom senso.

Esse isolamento de indivíduos atomizados constitui a base para o domínio totalitário. A atomização social e a individualização extrema precederam os movimentos destas massas isoladas e carentes de relações sociais normais que emergiram dos fragmentos da sociedade. O nazismo deu a esta massa de indivíduos indefiníveis, instáveis e fúteis, um meio de se autodefinirem e se identificarem, restaurando a dignidade que antes lhes advinha da sua função na sociedade. Os nazistas recrutaram seus membros dessa massa de pessoas indiferentes, apáticas e estúpidas, “um grande corpo flácido destituído de educação política”69. Até então, fora do sistema de partidos e rejeitadas por ele, formavam um grupo que nunca fora alcançado por nenhum dos partidos tradicionais.

Todavia, foi a ralé que se tornou a força motriz das massas durante o nazismo. A ralé, diferentemente da massa, representa os resíduos de todas as classes, é o subproduto da produção capitalista, o submundo da classe burguesa. Situa-se fora de qualquer ramificação social e representação política normal. A ralé odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamento onde não é representada.70 Hitler veio da ralé. Seu antigo partido era composto

quase que exclusivamente de desajustados, fracassados e aventureiros, “um exército de boêmios” 71.

A Primeira Guerra Mundial impactou uma camada de soldados, o chamado “soldado da linha de frente” – e Hitler era um deles –, em grande parte proveniente da classe média e média baixa que, após o término da guerra, ressentiu-se da sua perdida oportunidade de heroísmo. Eles proporcionaram grande parte dos esquadrões de ultranacionalistas violentos

69 Maxim GORKI apud Hannah ARENDT, Origens do Totalitarismo, p. 363. 70 Hannah ARENDT, Origens do Totalitarismo, p. 129

76 que formaram a maioria do freikorps72 alemães, quando então tiveram ampla possibilidade de liberar sua brutalidade latente.

As ideologias do fascismo, do bolchevismo e do nazismo foram formuladas na década de 1920 pela vanguarda intelectual européia. No livro Fascismo de Esquerda, Jonah Goldberg considera que uma coalizão de intelectuais com denominações diversas acreditou que a era da democracia liberal havia chegado ao fim e que cabia ao homem assumir a responsabilidade de refazer o mundo à sua própria imagem. “Deus estava morto, e já passava da hora do homem assumir Seu lugar.”73

Esta vanguarda era afetada por histórias de fracasso na vida profissional e social, perversão e desastre na vida privada, semelhantes às dos líderes da ralé. Antes ainda que o sistema de classes entrasse em colapso, ela já se situava fora dele. Já antes da 1ª Grande Guerra proclamavam rejeitar a cultura, desejar “fazer a vida desmoronar em tempestades de aço”, e ver a ruína deste mundo de segurança, cultura e vida falsas. A destruição sem piedade e o caos assumiram para ela a dignidade de valores supremos contra o odiado mundo da falsa respeitabilidade. Eram os adoradores da guerra que exaltavam a destruição pura e simples e aspiravam serem apenas peças da grande máquina da carnificina.74

Mórbida e niilista, a elite do pós-guerra demonstrou um doentio ódio do espírito contra si mesmo ao aceitar as idéias da ralé. 75 Desejou obliterar as diferenças individuais, perder-se a si mesma, incorporar-se a qualquer massa sem distinções nacionais. Segundo Bakunin, o desejo era: “não quero ser eu, quero ser nós”76. A violência, o poder e a crueldade eram louvados como supremas aptidões do homem. Multiplicavam-se as demonstrações “científicas” de que a lei do universo é a luta de todos contra todos. A crueldade, o descaso pelos valores e a amoralidade geral foram promovidas à categoria de virtude revolucionária maior porque contradiziam a hipocrisia humanitária e liberal da sociedade. Pelo menos destruíam a duplicidade do mundo mesquinho da burguesia. Para Hannah Arendt,

72 Unidades paramilitares voluntárias que formaram a vanguarda do movimento nazista. Muitos dos futuros líderes do Partido nazista serviram no Freikorps, tais como Ernst Röhm, Himmler e Rudolf Höss, o futuro comandante do campo de concentração de Auschwitz.

73 Jonah GOLDBERG, Fascismo de esquerda, p. 41.

74 Cf. Hannah ARENDT , Origens do Totalitarismo, p. 377-8. 75 Ibid., p. 379-80.

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O mergulho voluntário nas forças sobre-humanas da destruição parecia salvá-los da identificação automática com as funções pré-estabelecidas da sociedade e sua completa banalidade. [...] Esses homens sentiam-se atraídos pelo pronunciado ativismo dos movimentos totalitários, pela [...] insistência no primado simultâneo da ação pura e da força irresistível da necessidade. [...] a experiência da atividade constante dentro da estrutura da fatalidade inelutável 77.

É assim que atuam as Ideologias: como núcleos de sistemas de lógica nos quais, como nos sistemas dos paranóicos, tudo se segue uma vez que se aceita a primeira premissa. A insanidade destes sistemas reside na própria lógica em que se baseiam. São irrefutáveis. Desprezam a realidade e os fatos por serem consistentes. A verdade do raciocínio lógico não precisa do eu, dos outros, nem do mundo para funcionar. O bom senso, treinado no pensamento utilitário, é impotente contra esse supersentido ideológico. É um mundo demente que funciona dentro de uma coerência. A agressividade do totalitarismo não advém do desejo do poder. Ele se expande para tornar o mundo coerente .78

A ideologia, um fenômeno muito recente, é a lógica de uma idéia que pretende explicar o movimento da história a partir de uma única premissa79. Apresenta-se como uma filosofia científica. Reduz as questões históricas a elementos da natureza. Esta explicação total a liberta da experiência e da realidade, insistindo numa realidade mais verdadeira que se esconde por trás das coisas perceptíveis.

Tanto Hitler quanto Stalin levavam a sério as suas ideologias com as quais os governados eram obrigados a entrar em harmonia. Hitler orgulhava-se de seu “raciocínio frio como o gelo” e Stalin de sua “impiedade da dialética”, armas com as quais as implicações ideológicas eram levadas aos extremos da coerência lógica, quais sejam: matar as “classes agonizantes” para a realização da sociedade sem classes ou matar as “raças indignas de viver” para impor a raça dominante.80

A propaganda totalitária atua neste clima de fuga da realidade, de desprezo pelos fatos, substituindo-os por uma ficção dotada de coerência ideológica. Ao chegar ao poder, o movimento altera a realidade através da propaganda, segundo as suas afirmações

77 Hannah ARENDT , Origens do Totalitarismo, p. 381. 78

Ibid., p. 509. 79 Cf. ibid., p. 521. 80 Cf. ibid., p. 524.

78 ideológicas.81 A coerência da ficção e o rigor organizacional permitiam à generalização sobreviver ao desmascaramento das mentiras.82

A revolta das massas contra o “realismo” e o bom senso resultou da sua atomização, da perda do status social e das relações comunitárias em cuja estrutura o bom senso faz sentido. O propósito da propaganda é o de criar um mundo fictício à imagem da doutrina, embora com elementos de plausibilidade. O extremo de loucura artificialmente forjada, a organização de toda a textura da vida segundo uma ideologia, só pode ser atingida num mundo inteiramente totalitário.83 Para as massas crédulas, isoladas do mundo real, este mundo fictício faz sentido.

Foi assim que a propaganda nazista comandada por Goebbels, atingiu as massas. Ela apregoava doutrinas vulgares que exprimiam frustração, ressentimento e ódio cego, com temas de conspirações, ocultismo, mistério e influências secretas. As mentiras eram apresentadas como fatos incontestáveis e o passado podia ser mudado à vontade. Esta forma de atuação marcou o crescente triunfo das atitudes e convicções da ralé – as mesmas da burguesia – despidas de fingimento.84 A ralé, crédula e cínica, características que se tornaram também um fenômeno das massas, aderiu à ficção ideológica central, pois diante de um mundo incompreensível, acredita-se em tudo e em nada. Tudo é possível e nada é verdadeiro. A propaganda de massas descobriu que seu público estava sempre disposto a acreditar no pior, por mais absurda a alegação, apoiado na convicção de que tudo é mesmo mentira e que a política, de qualquer forma, é um jogo de trapaças necessárias aos fins da política mundial.85 Porém, a propaganda totalitária só é empregada nos estágios iniciais, pois quando o regime totalitário detém o poder absoluto, ele substitui a propaganda pela doutrinação. Quando o terror atinge a perfeição, como nos campos de concentração, a propaganda desaparece inteiramente.86

81 Cf. Hannah ARENDT , Origens do Totalitarismo, p. 523. 82 Cf. ibid., p. 408.

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Ibid., p. 402. 84 Cf. ibid., p. 383. 85 Cf. ibid., p. 432.

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