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Capítulo 2. O Nazismo e Holocausto, ocorrências de Mal Banal

2.6 A corporificação da Banalidade do Mal

Hitler assistiu a ópera Rienzi, de Wagner30, quando contava por volta de 15 anos e contou mais tarde que “foi naquela hora que tudo começou”. Hitler dizia: “só entende o Nacional Socialismo quem conhece Wagner”31. Dele absorveu o antissemitismo, o culto ao legado nórdico e o mito do sangue puro. O enredo trata da vida de Cola di Rienzi, o Tribuno, um personagem popular da Itália do século XIV que tenta restabelecer a ordem contra os nobres e exige que o poder seja atribuído a ele e ao povo. Com seu dom de empolgar as multidões, Rienzi reúne o povo em armas para ao seu lado combater os inimigos. Subjugados, os jovens de grandes famílias romanas desfilam diante de si como forma de garantir que os confrontos cessaram, mas Rienzi é traído por eles, e porque ele havia cometido o erro de os perdoar, eles agora ocupam e devastam a cidade.

Apesar de haver quem julgue imoral tentar “entender” psicologicamente Hitler, como se isto o absolvesse de seus atos absolutamente criminosos, seria importante especular o que este adolescente doentio e ressentido, com imensas fantasias e pretensões de um poder sobre- humano, teria reconhecido no enredo e no personagem, com o qual se identificou, que o abalaram tanto e que lhe teriam servido de inspiração e modelo de conduta por toda a vida. E, mais importante, especular em quais traços de Hitler esta sociedade se espelhou e porque ela aceitou e necessitou, como uma criança irresponsável, conceder a alguém como ele a onisciência de um deus que haveria de conduzí-la por caminhos medonhos.

A tese do documentário Arquitetura da Destruição, do cineasta Peter Cohen, é de que Hitler tinha um projeto que o guiou em sua obra de destruição. Seu programa essencial era de embelezamento e higienização. A arte deveria ser o espelho da saúde racial ariana e combater a decadência e o bolchevismo cultural instigado pelos judeus. Vemos no filme o que Hitler, um artista frustrado e ressentido, concebia por beleza: o sentimentalismo kitsch e vulgar do gosto.

Salta aos olhos o ridículo e a mediocridade daquilo que ele considerava sublime e em nome do que empreendeu a mais cruel e terrível destruição. Desfile com carros alegóricos em Munique, em 1939, por exemplo, no Dia das Artes: estandartes, águias, suásticas; Hitler solene balançando a cabeça com aprovação à passagem dos carros, tendo as demais

30 Rienzi, libreto de Wagner, foi baseado no “Último Tribuno Romano" de Bulwer-Lytton e na peça de teatro de Mary Russell Mitford. O manuscrito original se perdeu, sendo dado como seu último paradeiro a biblioteca particular de Hitler.

48 autoridades nazistas ao lado; uma monótona música de banda. Inúmeras referências à Grécia e à Roma Antiga num revival lamentável: jovens e louras arianas vestidas de gregas, uma cabeça grega gigantesca sobre uma liteira, estátuas de guerreiros de capacete com o olhar severo perdido ao longe, arqueiros, cavalos alados, um cisne de asas abertas encimando um barco, um homem forte montado num cavalo que empina, etc. Saúde, força física, um mundo racialmente limpo, nenhuma contradição. Nos escultores que promoveu e na sua coleção particular de pintura com mais de 1500 quadros, uma arte acadêmica quase pornográfica da pior qualidade: homens musculosos, grandes peitorais e armaduras, cupidos, ruínas romanas, grupos de mulheres nuas voluptuosas de mãos postas, olhos para o céu. Pretendeu reconstruir toda Berlim e, com a ajuda do arquiteto Albert Speer, as construções que concebeu e realizou eram todas monumentais, pesadas, tristes.

Os comícios tinham proporções astronômicas e neles, segundo Peter Cohen, Hitler era o cenógrafo, o diretor e o ator principal. Vêem-se os desfiles das tropas marchando a passo de ganso, impressionante pela precisão, pela assustadora coreografia que anunciava um poder tremendo e unificado: o mito do “Corpo do Povo”. Era este o desejo do Führer: “criar o novo homem alemão”32.

Por meio de uma engenharia social radical, Hitler almejava implantar um programa de higienização que consistia em limpar o mundo da sujeira e da doença. Seu sonho: purificar o que considerava o mal, o estrangeiro, o incompreensível, em nome de uma raça ariana branca de fortes, a única a merecer habitar e dominar o planeta. Havia os seres humanos superiores e os inferiores, e estes teriam ou que ser eliminados ou escravizados para uso dos superiores. Hitler imaginava estar reescrevendo a história a partir do ponto de vista racial.

A linguagem do Terceiro Reich era pomposa, vazia, toda feita de clichês. Refletia um mundo irreal, o mundo que teria que caber na concepção de um psicopata com um poder absoluto. Este foi o papel espantoso e incompreensível de um líder que conseguiu levar toda uma nação a embarcar no seu sonho cruel e delirante. E quando o líder morreu, disse Hannah Arendt, o projeto nazista morreu também – a vigência do projeto dependia dele. Mais tarde ela afirmará que a política, para voltar a ser nobre e confiável, deve repousar sobre os homens, e não sobre uma teoria do homem, e criticará as ideologias, pois elas têm como pretensão fazer o mundo caber num molde: os grandiosos sistemas totalizantes que definem, de antemão, o que merece e o que não merece existir e recusam a pluralidade de vistas e a

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possibilidade do novo que reaparece a cada nascimento, o que servirá de base para que ela desenvolva o conceito de “natalidade” a partir de seu livro A Condição Humana.